Acesso à Internet

Habeas Corpus não protege liberdade de locomoção virtual

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19 de abril de 2005, 7h52

Habeas Corpus não pode ser ajuizado para proteger a liberdade de locomoção na Internet. O instrumento só protege a liberdade física das pessoas. O entendimento é da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Cabe recurso.

O TJ mineiro confirmou sentença da 2ª Vara Criminal de Uberlândia, que rejeitou HC a uma usuária da AOL Brasil. Ela entrou na Justiça porque não conseguia acessar sites gratuitos de provedores concorrentes.

A advogada Laine Moraes Souza ajuizou o HC em Uberlândia. Alegou que, como assinante da AOL Brasil, estava tendo sua liberdade de locomoção na Internet restringida. O provedor bloqueava o seu acesso a diversos sites gratuitos de provedores concorrentes.

A AOL esclareceu que realmente bloqueia, por meio de seu programa de navegação, o acesso dos usuários a e-mails, salas de bate-papo e algumas páginas de outros provedores. Alegou que garante “a integridade das informações e a segurança on-line de seus assinantes”.

O desembargador William Silvestrini, relator do recurso, entendeu que, de acordo com a legislação, não há como abranger a ação do Habeas Corpus a casos que não se relacionam com a liberdade de locomoção física. Segundo ele, “a liberação de acesso a determinados sites pelos provedores de serviços de internet é matéria absolutamente estranha ao Habeas Corpus”.

O desembargador afirmou que a usuária de Internet teria de ajuizar a ação própria na área cível para garantir seus supostos direitos. Os desembargadores Delmival de Almeida Campos e Eli Lucas de Mendonça acompanharam o voto do relator.

Processo nº 472032-9

Leia a íntegra do acórdão

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos de RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 472.032-9, da Comarca de UBERLÂNDIA, sendo Recorrente (s): LAINE MORAES SOUZA e Recorrido (a) (os) (as): AOL BRASIL LTDA,

ACORDA, em Turma, a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais NEGAR PROVIMENTO.

Presidiu o julgamento o Desembargador ROSAURO JÚNIOR (1º Vogal) e dele participaram os Desembargadores WILLIAM SILVESTRINI (Relator) e DELMIVAL DE ALMEIDA CAMPOS (2º Vogal).

Belo Horizonte, 30 de março de 2005.

DESEMBARGADOR WILLIAM SILVESTRINI

Relator

DESEMBARGADOR ELI LUCAS DE MENDONÇA

2º Vogal

V O T O S

O SR. DESEMBARGADOR WILLIAM SILVESTRINI:

Interpôs Laine Moraes Souza recurso em sentido estrito, inconformada com a decisão de f. 44/50, que indeferiu liminarmente o pedido, denegando a ordem de habeas corpus impetrada, recurso no qual constam acusações de que a recorrida estaria impondo barreiras técnicas à liberdade de ir e vir no ciberespaço, através de seu programa de navegação.

Em suas razões, alega a recorrente (f. 56/66), em síntese, que em momento algum os legisladores descreveram que a garantida de liberdade de locomoção deveria ser necessariamente física, merecendo total guarida sua pretensão de obter o reconhecimento de seu direito, constitucionalmente garantido, de se locomover livremente dentro do ciberespaço, deslocando-se de um ponto a outro.

Contra-razões às f. 68/76, em óbvia infirmação, alegando que os usuários têm a faculdade de se utilizarem de outros navegadores, estando o direito de ir e vir relacionado à pessoa e seu corpo físico, não sendo o habeas corpus o instrumento hábil para o alcance do direito pretendido, tratando-se de um instituto de Direito Penal, inaplicável às relações puramente de âmbito Civil.

Exercendo o juízo de retratabilidade, o d. Juiz a quo entendeu por bem em manter a decisão objurgada (f. 86).

Em parecer de f. 92/100, a douta Procuradoria-Geral de Justiça opina pelo desprovimento do recurso.

Conheço do recurso por presentes os pressupostos de admissibilidade e processamento.

Estabelece a lei processual penal, em seu art. 647 que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”.

Trata-se de inquestionável segurança de caráter constitucional, sendo o mais idôneo instrumento de atuação para servir de garantia especial do cidadão na defesa de sua liberdade.

Como enfatiza o Ministro Celso de Mello:

“Trata-se de um instrumento constitucional, de essencialidade inquestionável, destinado a ativar a tutela jurisdicional do Estado e a resguardar, de modo eficaz, a imediata liberdade de locomoção física das pessoas naturais, preservando-lhes o exercício do direito de ir, de vir e permanecer” (HC 80.575 — RJ) — grifos nossos.

Deste modo, não há como abranger a sua ação a casos que não se relacionam com a liberdade de locomoção física, não sendo esta via adequada para atendimento de liberação de acesso a determinados sites pelos provedores de serviços de internet, se tal matéria é absolutamente estranha ao remédio heróico, garantidor do direito de ir e vir.


Sobre o assunto :

“O remédio processual do habeas corpus possui destinação constitucional específica, achando-se vocacionado à imediata tutela jurisdicional do direito de ir, vir e permanecer das pessoas. Não pode ser utilizado como sucedâneo de outras ações judiciais, notadamente naquelas hipóteses em que o direito-fim não se identifica com a própria liberdade de locomoção física” (STF — 1ª T. — HC 71.631-8 — Rel. Celso de Mello — j. 30.08.1994 — DJU 14.05.2001, p. 169) — grifos nossos.

“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem salientado que, inocorrendo situação de risco efetivo para a liberdade de locomoção física, não tem pertinência o remédio constitucional do habeas corpus, cuja utilização supõe concreta configuração de ofensa, atual ou potencial, ao direito de ir, vir e permanecer do paciente. Precedentes. Considerações em torno da doutrina brasileira do habeas corpus” (STF — HC 69.854 — Rel. Celso de Mello — j. 16.03.1993 — RTJ 177/1207).

“O habeas corpus constitui instrumento processual juridicamente vocacionado à estrita tutela jurisdicional do imediato direito de ir, vir e permanecer das pessoas físicas” (STF – HC 70.328-3 – Rel. Celso de Mello – DJU 17/6/1994, p. 15.708).

“É exclusiva missão do HC garantir a liberdade individual, na acepção restrita, a liberdade física, a liberdade de locomoção. Nenhum direito mais se defende; nenhuma questão estranha se resolve, por seu intermédio” (RT 479/335) — grifos nossos.

“Ação de habeas corpus visa a preservar o direito de locomoção, ameaçado, ou ofendido por ilegalidade ou abuso de poder (CF, art. 5º, LXVIII). Dela não se conhece se nem remotamente restarem configuradas as hipóteses normativas” (STJ – 6ª T. – RHC 7729 – Rel. Luiz Vicente Cernicchiaro – j. 6/8/1998 – DJU – 8/9/1998, p. 120).

Portanto, não vislumbrando possibilidade de lesão ao direito de ir e vir de pessoa física, que é o fundamento do habeas corpus, estou para manter o posicionamento adotado pelo Julgador monocrático, por entender que não tem conotação penal a medida adotada pela empresa provedora de serviços de internet, havendo de ser manejada ação própria perante a esfera cível para a tutela de eventuais direitos, não relacionados com a liberdade corpórea, o direito de locomoção.

Ante tais considerações, nego provimento ao recurso, mantendo a r. decisão hostilizada em seus próprios e jurídicos fundamentos.

Custas ex lege.

O SR. DESEMBARGADOR DELMIVAL DE ALMEIDA CAMPOS:

De acordo.

O SR. DESEMBARGADOR ELI LUCAS DE MENDONÇA:

Sr. Presidente:

Revi os autos.

A tese, conquanto interessante, não me convence, data venia. Pode até evoluir vir a ser abarcada pela legislação penal. Por enquanto não o é. Sequer a interpretação mais avançada, como sugere a recorrente, pode ter o alcance por ela desejado, já que a interpretação não pode substituir a norma ou supri-la.

A questão sob foco, para mim, diz respeito ao direito de expressão e não ao direito de locomoção. Os fatos, em tese, melhor se amoldam à situação de violação de relação contratual, afetos ao debate na esfera cível. De fato, como a cada direito corresponde uma ação que o assegure, in casu, é absolutamente certo que a ação eleita não é a adequada, visto que o habeas corpus protege a liberdade de locomoção física das pessoas naturais, e não a virtual — sobre o que convergem doutrina e jurisprudência (ver citação bastante, feita pelo douto Juízo monocrático e douto Relator, cuja repetição evito).

Até me parece, respeitosamente, que elege a recorrente o foro judicial como tribuna acadêmica. Muito embora decisão judicial seja ato de autoridade, permito-me abordar a tese reiterada no recurso. E o faço para reconhecer nela — na tese — erro palmar, ligado à análise do fenômeno telemático, que envolve computadores (máquinas), e não pessoas.

Para demonstrá-lo, prefiro buscar a lição autorizada do ilustre e reconhecido Magistrado Dr. Fernando Neto Botelho (MM. Juiz Titular da 4ª Vara dos Feitos Tributários da Comarca de Belo Horizonte-MG, Membro da Comissão de Informática do eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Membro da Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicação — ABDI-MG), que, com sua autoridade na matéria, orienta aos que por ela se interessam, ou tenham que se manifestar.

Vejamos a revelação técnica do mestre, constante dos arquivos de sua “máquina”:

“1 — Internet é o nome final, ou melhor, a sigla (que, em inglês, sintetiza inter-networks, ou conexão de redes computacionais) que se atribuiu após uma progressiva evolução de conexão de redes (primeiro se chamou ARPANET — com aplicação militar — em seguida, NSFnet-Network Science Foudation — com aplicação educarional-universitária — e, finalmente, INTERNET).


2 — A Internet não é nada mais que uma conexão de redes locais ou regionais de computadores, computadores estes que são identificados, uns pelos outros, com base em números que lhe são atribuídos (denominados números IP-Internet Protocol) que vão sendo alocados a cada rede por uma norma internacional de tráfego de informações eletrônicas (denominada TCP-IP, ou, Transission Control Protocol/Internet Protocol).

3 — Cada computador passa, assim, a ter (instalada em seu sistema operacional interno) um protocolo Internet (um programa denominado TCP-IP) e, com ele, obtém o número IP, com o qual passa a poder ‘entrar’ na Internet, isto é, ingressar na rede computacional mundial, através de um código-identificador numérico (hoje, coordenado, no Brasil pelo CGR-Comitê Gestor da Internet) e com uso do protocolo lógico TCP/IP.

4 — Como o computador, por si, não consegue obter diretamente esse número de protocolo Internet (que estão em poder de ente designado pelo CGR — a FAPESP-SP), ele (e seu usuário) se utilizam, então, de Provedores de Acesso (à Internet), nome que se convencionou atribuir a empresas prestadoras de serviços, de distribuição de números IP para computadores, mediante contraprestação pecuniária.

5 — Estes provedores de acesso (ou empresas que prestam serviços de provimento de acesso à internet), além de locarem números identificadores Internet (IP) a usuários de computadores, concedem acesso a suas linhas telefônicas dedicadas (linhas telefônicas dedicadas são canais exclusivos de chamadas para qualquer outro número IP do mundo), sem que tenhamos, nós mesmos, de instalar linhas dedicadas para acesso Internet, em nossas casas e escritórios. Com essas linhas dedicadas e computadores de porte, eles (os provedores) passam então a receber os ‘pedidos’ de acesso à Internet, para os quais eles alocam os números IP que obtiveram do CGR.

6 — Assim, com um provedor de acesso à Internet (que nos concede um número IP), o nosso computador se conecta à Internet (à rede mundial de computadores, formada a partir da união de redes menores do mundo inteiro, que, em conjunto, criam uma grande e universal ‘teia’ de redes, unificadas pela adoção de um único protocolo lógico, que é o TCP/IP, que todos os computadores estarão usando).

7 — Após conectado, como o computador efetivamente ‘navega’ na Internet, acessando sites, enviando e recebendo mensagens, realizando downloads (busca de informações remotas) e uploads (envio de mensagens)? Ele o faz através de um processo físico-eletrônico, de telemática. E o que é telemática? Telemática é a transmissão , codificada, de sinais elétricos, através dos elementos físicos das redes computacionais inter-conectadas (cabos, ligações sem-fio, por satélites, etc.).

8 — Isto significa que o que trafega pela Internet não é mais do que um imenso volume de sinais puramente elétricos. Nada mais. São sinais elétricos que significarão, nos destinos, códigos que, decifrados, se transformarão em mensagens, que serão ‘lidas’, ou interpretadas, pelos programas de computação instalados em cada computador, e, assim, reveladas aos nossos olhos e à nossa leitura visual (nas telas dos monitores agregados aos micro-computadores).

9 — Por isso, a comunicação via Internet é uma comunicação exclusiva entre máquinas, e é exclusivamente eletrônica-codificada-lógica, nunca entre pessoas, ou, no máximo, uma comunicação entre pessoas, mas intermediada por máquinas processadoras e armazenadoras de códigos, programas e informações lógicas (chamadas computadores).

11 — Isto leva à convicção de que o que ‘passa’ fisicamente pelas redes que integram o conceito Internet são apenas os sinais elétricos. Nem mais nem menos.

12 — Estes sinais transportam, pela codificação, conteúdos intelectuais (comandados por pessoas, mas que não são mais do que expressões do pensamento e da vontade humanas — escritos, músicas, fotos, etc.).

13 — Logo, a Internet é um meio de acesso exclusivo para emissão de expressão, ou para livre expressão intelectual, jamais um meio de acesso físico-pessoal. Por isso, não é possível, senão por erro de análise do fenômeno telemático, intuir que o deslocamento (de sinais elétricos, emitidos e recebidos por máquinas processadoras conectadas à Internet) equivalha a deslocamento físico-pessoal, equiparável à mobilidade física de pessoas, como expressão da liberdade física-pessoal, de deambulação, de deslocamento livre.

14 – O que se desloca são sinais elétricos emitidos por computadores acionados por pessoas, e não as próprias pessoas (quando mando um e-mail, usando a Internet, e seus protocolos, eu continuo livre para deslocamentos físicos, independentemente do êxito do envio da mensagem eletrônica).

15 — Assim, os direitos que ‘trafegam’ pela Internet identificam-se apenas com manifestações da livre expressão (do pensamento), em formulações patrimoniais ou não-patrimoniais. Jamais poderão ser tutelados, mesmo que em tentativas de proteção interdital-mandamental, por Habeas corpus, já que se referem a outra esfera da personalidade (propriedade intelectual — livre expressão — ou patrimonial).

16 — Website norte-americano, de defesa dos direitos civis na Internet, cuja pedra-de-toque é exatamente a declaração universal dos direitos humanos, quanto à proteção da liberdade de expressão (freedom speach), nunca da liberdade física. Isto mostra que, não apenas aqui, mas lá fora também se dá à Internet conceituação de meio de acesso para expressão puramente intelectual via troca de sinais elétricos-codificados, o que impede qualquer tentativa de equivaler-se, a ela, a liberdade individual-pessoal-física”.

São as razões pelas quais, redobrada vênia, nego provimento ao recurso, acompanhando o eminente Relator, e confirmo a excelente sentença recorrida, que, por versar tema de evidente atualidade e interesse, recomendo a sua publicação.

O SR. DESEMBARGADOR DELMIVAL DE ALMEIDA CAMPOS:

Determino, na qualidade de Presidente, que se publique a sentença e o acórdão, eis que também entendo que o assunto tratado nestes autos está a merecer o acurado exame pelos operadores do Direito, já que se trata de locomoção virtual e não do direito de ir e vir, locomoção física.

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