Causa e conseqüência

Greve na Justiça paulista não justifica intervenção federal

Autor

  • Renato Bernardi

    é bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino doutor em Direito do Estado (sub-área Direito Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e procurador do estado de São Paulo desde 1994

27 de setembro de 2004, 17h12

As recentes declarações do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, causaram polêmica nos meios políticos e constitucionais do País.

De acordo com ele, o movimento grevista deflagrado pelos servidores dos quadros do Poder Judiciário do Estado de São Paulo seria fato suficiente para a decretação de intervenção federal no Estado de São Paulo, haja vista que o Poder Judiciário estaria impossibilitado de exercer suas funções constitucionais (Folhaonline – 20/09/2004 – 20h19min – capturado na mesma data em www1.folha.uol.com.br/folha/Brasil/ult96u64269.shtml).

Sem que se entre na questão da Justiça ou da legalidade do movimento paredista em curso, temas que escapam do objeto do presente trabalho, há que se verificar se a intervenção pode ser originada pela ocorrência de greve de servidores públicos.

De acordo com a Doutrina constitucional, o Estado Federal é caracterizado pela presença de, entre outros, dois elementos básicos: a existência de governo próprio e a repartição constitucional de competência a cada um dos membros da Federação.

A conferência, pela Constituição Federal, de competência própria aos entes da Federação, gera a autonomia de cada um deles, o que importa na possibilidade de cada um dos membros poder praticar os atos de governo que a Constituição lhe possibilita, sem interferência, seja da ordem jurídica central, seja de outro membro componente da Federação.

Apesar de autônomas, essas entidades devem obedecer a certos princípios, com o fim de manter o equilíbrio federativo, sob pena de sofrerem a supressão temporária da respectiva autonomia, sendo obrigadas a suportar a ingerência da União Federal em seus negócios governamentais.

Tal supressão temporária da autonomia é, exatamente naquilo que pertine ao tema objeto de estudo, a chamada Intervenção Federal, ato eminentemente político carregado de forte excepcionalidade, já que no Estado Federal a regra é a posse de competências exclusivas conferidas às partes componentes do pacto federativo; o princípio constitucional é o da não intervenção, o que se extrai da redação do “caput” do art 34 da Constituição Federal: A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:.(destacado).

Lembre-se, contudo, que a possibilidade de intervenção não importa na existência de hierarquia entre os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), já que, como explicitado, esses são autônomos, pois detentores de poderes próprios previstos na Constituição Federal.

As ocorrências fáticas que podem autorizar a decretação de intervenção federal estão catalogadas taxativamente no artigo 34 da Constituição Federal. Sendo assim, a intervenção federal somente pode ser decretada para:

I – manter a integridade nacional;

II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;

III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;

V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:

a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;

b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;

VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

b) direitos da pessoa humana;

c) autonomia municipal;

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

Nos termos da declaração do Excelentíssimo Ministro, a intervenção deveria ser decretada no Estado de São Paulo nos termos da disposição tipificada no inciso IV do artigo 34 da Constituição Federal, haja vista que o Poder Judiciário estaria impossibilitado de exercer seu mister constitucional.

Fundamentada em tal dispositivo constitucional, a intervenção poderia ser decretada pelo Presidente da República, desde que provocado por requisição expedida pelo Poder Judiciário.

Resta, então, analisar se a greve dos servidores do Judiciário paulista impede que referido Poder exerça sua função típica de distribuir Justiça. A resposta parece apontar para a insuficiência do movimento paredista como causa da supressão temporária da autonomia do Estado de São Paulo.

Por primeiro, constata-se que o Poder Judiciário no Estado de São Paulo não está impedido de exercer suas funções constitucionais. Há comarcas onde inexistem servidores em greve, outras em que a paralisação é parcial e, na grande maioria delas, inclusive naquelas onde a greve foi deflagrada por servidores locais, os processos cuja tramitação reclama urgência continuam sendo movidos, como os casos de réus presos, as ações em que seja necessária cognição sumária e as ações nas quais se postulam alimentos.

Mandados de prisão e alvarás de soltura continuam sendo expedidos e os atos da justiça eleitoral, muitos deles praticados por servidores do Judiciário estadual, permanecem sendo praticados. Certo é que a grande maioria dos processos não está tramitando, mas isso não é indicativo de existência de coerção ao Poder Judiciário capaz de impedi-lo de entregar a jurisdição.

Por outro lado, poder-se-ia considerar a possibilidade da decretação da supressão temporária da autonomia do Estado de São Paulo, pela ocorrência da greve dos servidores do Judiciário, como autorizada pelas hipóteses previstas nas alíneas “a” e “b”, do inciso VII, do artigo 34 da Constituição Federal.

Nesses casos (desobediência aos princípios constitucionais sensíveis), a decretação de intervenção pelo Presidente da República depende do provimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva proposta pelo procurador-geral da República perante o Supremo Tribunal Federal (artigo 34, inciso VII, da Constituição Federal).

Ainda assim, não se verificam presentes as hipóteses previstas, já que a forma republicana (poder exercido pelo povo, por meio de mandatários eleitos temporariamente), o sistema representativo (a existência do mandato representativo) e o regime democrático (acessibilidade do povo, dos governados ao processo de formação da vontade estatal) não se encontram violados com a deflagração da greve.

No entanto, no Estado de São Paulo, mesmo com a greve dos servidores, os direitos da pessoa humana continuam sendo respeitados. Aliás, poder-se-ia cogitar, até mesmo, de desrespeito aos direitos da pessoa humana pela omissão do legislador federal infraconstitucional ao não regulamentar a norma constitucional de eficácia limitada do inciso VII, do artigo 37, da Constituição Federal.

Respeitadas as opiniões em sentido contrário, o movimento grevista dos servidores do Judiciário paulista não é causa suficiente à decretação da intervenção federal no Estado de São Paulo, uma vez que a situação fática não se amolda às hipóteses autorizadoras taxativamente previstas no artigo 34 da Constituição Federal.

Autores

  • Brave

    é procurador do estado de São Paulo, mestre em Direito Constitucional, professor das Faculdades Integradas de Ourinhos, da Escola da Magistratura do estado do Paraná (núcleo de Jacarezinho) e do curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Alta Paulista (Tupã/SP) -- nível de especialização.

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