Feras feridas

Juízes querem de volta direitos previdenciários reformados

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23 de setembro de 2004, 16h31

As reforma da Previdência feita em 1998 está imbuída de um vício regimental. Por esse motivo, a magistratura nacional deve voltar à situação que tinha anteriormente: valor da aposentadoria correspondente ao último salário integral e regras previdenciárias disciplinadas, exclusivamente, pelo Estatuto da Magistratura.

Este é o teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), na quarta-feira (22/9), — veja a íntegra abaixo. O vício regimental ocorreu quando o Senado Federal aprovou o texto da Emenda Constitucional 20/98, modificando-o em apenas um turno de votação, segundo a Anamatra.

No primeiro turno, o texto estabelecia que os magistrados estariam sujeitos às regras do regime geral da Previdência dos servidores públicos “no que coubesse”. No segundo turno, esta expressão foi retirada do texto e os magistrados, desse modo, foram automaticamente transferidos do regime público para o regime geral.

Grijalbo Coutinho, presidente da Anamatra, lembra, no entanto, que as emendas devem ser aprovadas em dois turnos de votação, por maioria qualificada de 3/5 dos integrantes de ambas as casas: Senado e Câmara dos Deputados. Além disso, o segundo turno não comporta modificações de mérito, o que acabou ocorrendo com o dispositivo em questão.

A equiparação dos magistrados aos servidores, no regime geral e não mais no regime público da Previdência, acabaria por reduzir-lhes também o valor dos benefícios de aposentadoria. Com a Emenda Constitucional 41/03, aprovada no ano passado, eles passaram a ter o direito ao teto previdenciário na aposentadoria, algo entorno de R$ 2,5 mil atualmente, em lugar do último salário integral.

Isto explica o fato de a Anamatra denunciar a inconstitucionalidade da Emenda 20/98, seis anos depois. A ADI também aponta que a emenda feriu o artigo 93 da Constituição. Era bem claro ao determinar que, tal matéria, apenas poderia ser disciplinada pelo Estatuto da Magistratura, a partir de lei complementar de iniciativa exclusiva do STF. Desse modo, segundo a petição, a emenda interferiu na separação dos Poderes, que é cláusula pétrea da Constituição.

Leia a íntegra da Ação Direta de Inconstitucionalidade

EXMO. SR. MINISTRO PRESIDENTE DO EG. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO – ANAMATRA, associação representativa dos interesses dos magistrados da Justiça do Trabalho, com sede no SCS Q. 7, bloco A, Edifício Executive Tower, salas 825/827, Brasília-DF, CEP.: 70.311-911, vem, respeitosamente, por seus advogados (doc. 1), propor a presente ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 102, I, a), com pedido de medida cautelar (CF., art. 102, I, “p”, e Lei nº 9.868/99, art. 10º), contra o art. 1º, da EC nº 20/98, na parte em que alterou a redação do art. 93, VI, da Constituição, e contra os §§ 2º e 3º, do art. 2º, da EC nº 41/2003, nos termos e pelos motivos que passa a expor.

I – O OBJETO DA PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: EMENDA CONSTITUCIONAL QUE, ALÉM DE NÃO ATENDER ÀS EXIGÊNCIAS FORMAIS DO ART. 60, § 2º, DA CF, AINDA VIOLA A INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO E DOS SEUS MEMBROS

1. A presente ação direta de inconstitucionalidade tem a finalidade principal de impugnar o art. 1º, da EC nº 20/98 (doc. 3), na parte em que alterou o art. 93, VI, da Constituição, cuja redação original era a seguinte:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observado o seguinte princípio:

VI – a aposentadoria com proventos integrais é compulsória por invalidez ou aos setenta anos de idade, e facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercício efetivo na judicatura.”

2. Com a EC nº 20/98, o inciso VI, do referido art. 93, da Constituição, passou a dispor que “a aposentadoria dos magistrados e a pensão dos seus dependentes observarão o disposto no art. 40.” Conseqüentemente, a magistratura foi submetida ao regime geral de aposentadoria dos servidores públicos.

3. Ocorre que a referida alteração, apesar da sua importância e relevância – não apenas para a magistratura, mas também para o Poder Judiciário e para o próprio Estado Democrático de Direito -, não foi aprovada em dois turnos por cada uma das Casas do Congresso, nos termos da exigência do art. 60, § 2º, da Constituição.

4. Não obstante esta manifesta inconstitucionalidade formal, a referida EC ainda adentrou em matéria que a Constituição reservou à iniciativa exclusiva do Poder Judiciário, como forma de preservar a autonomia deste e a independência dos Poderes, cláusulas pétreas da Constituição.

5. Em face das inconstitucionalidades apontadas, justifica-se a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, para o fim principal de declarar a inconstitucionalidade do art. 1º, da EC nº 20/98, na parte em que modificou o art. 93, VI, da Constituição.


* * *

6. A conseqüência da declaração de inconstitucionalidade acima exposta certamente será a de excluir a magistratura da reforma da previdência iniciada pela EC nº 20/98 e depois continuada pela EC nº 41/2003 (doc. 4).

7. Ocorre que esta última EC nº 41/2003 faz menção aos magistrados em seu art. 2º, ao tratar das regras gerais de transição. Os seus §§ 2º e 3º deixam claro que as referidas regras aplicam-se igualmente aos magistrados e prevêem inclusive critérios de cálculo do tempo de serviço, no seguintes termos:

“Art. 2º. Observado o disposto no art. 4º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, é assegurado o direito de opção pela aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, §§ 3º e 17, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação daquela Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

I – tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher;

II – tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria;

III – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data de publicação daquela Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea a deste inciso.

§ 2º Aplica-se ao magistrado e ao membro do Ministério Público e de Tribunal de Contas o disposto neste artigo.

§ 3º Na aplicação do disposto no § 2º deste artigo, o magistrado ou o membro do Ministério Público ou de Tribunal de Contas, se homem, terá o tempo de serviço exercido até a data de publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, contado com acréscimo de dezessete por cento, observado o disposto no § 1º deste artigo.”

8. Ora, entende a autora que é conseqüência lógica da declaração de inconstitucionalidade do art. 1º, da EC nº 20/98, na parte em que altera o regime de previdência dos magistrados, a inconstitucionalidade de todos os dispositivos que são desdobramentos desta alteração, como é o caso dos §§ 2º e 3º, do art. 2º da EC nº 41/2003.

9. No entanto, para o fim de evitar qualquer dúvida porventura existente, a presente ação está impugnando igualmente os dispositivos da EC nº 41/2003, uma vez que, diante da inconstitucionalidade da alteração de regime prevista pela EC nº 20/98, não podem subsistir em relação aos magistrados nenhuma de suas conseqüências, como é o caso dos §§ 2º e 3º do art. 2º da EC nº 41/2003.

II – A LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DA AUTORA, NA QUALIDADE DE ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MAGISTRADOS TRABALHISTAS, E A PERTINÊNCIA TEMÁTICA DA AÇÃO COM AS SUAS FINALIDADES INSTITUCIONAIS

10. A legitimidade ativa ad causam da autora decorre do art. 103, IX, da Constituição Federal, e do art. 2º, IX, da Lei 9.868/99, que autorizam a propositura da ação direta de inconstitucionalidade por “entidade de classe de âmbito nacional.” É exatamente esse o caso da autora, que representa, em âmbito nacional, a classe dos magistrados da Justiça do Trabalho (doc. 2).

11. Vale ressaltar que a autora é uma verdadeira associação de classe, não sendo quer uma associação de associações, quer uma associação híbrida, pois apenas possui como associados os próprios juízes do trabalho, nos exatos termos do art. 6º, do seu Estatuto.

12. Assim, é indiscutível a sua legitimidade para propor a presente ação direta de inconstitucionalidade, ainda mais em hipótese na qual também é clara a pertinência temática entre o objeto da ação e os fins sociais da associação autora, que é entidade de âmbito nacional representativa dos magistrados da Justiça do Trabalho brasileiros e apresenta, dentre os seus objetivos institucionais, a defesa do regular funcionamento da Justiça do Trabalho e das prerrogativas funcionais dos seus membros (Estatuto da autora, art. 2º, doc. 2).

13. No caso concreto, os dispositivos impugnados dizem respeito não apenas aos direitos e garantias institucionais dos magistrados, mas, e principalmente, à preservação da própria autonomia e independência do Poder Judiciário, motivo pelo qual dúvida não pode haver quanto à pertinência temática e a conseqüente legitimidade ativa ad causam por parte da autora.

III – A EC Nº 20/98, NA PARTE EM QUE ALTEROU O ART. 93, VI, DA CONSTITUIÇÃO, NÃO FOI VOTADA EM DOIS TURNOS, COMO DETERMINA O ART. 60, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO

14. Para se entender as modificações ao regime de previdência dos magistrados que foram introduzidas apenas no segundo turno de votação, é necessário fazer uma breve retrospectiva cronológica da tramitação do projeto que acabou se convertendo na EC nº 20/98.


15. A EC nº 20/98 decorreu da Proposta de Emenda Constitucional nº 33/96, de iniciativa do Presidente da República que, na sua redação original, não previa a modificação do art. 93, VI, da Constituição (doc. 5).

16. Assim que se cogitou de incluir os magistrados no mesmo regime geral de previdência dos demais servidores públicos, foi apresentada a Emenda nº 16, que propugnava que a redação do art. 93, VI, da Constituição fosse alterada, para o fim de que o dispositivo passasse a ter a seguinte redação (doc. 5, p. 37):

“Art. 93.

VI – a aposentadoria dos membros da magistratura e a pensão dos seus dependentes observarão o disposto no art. 40, no que couber.”

17. Vale ressaltar que a expressão “no que couber” foi prevista exatamente para preservar a iniciativa de lei do eg. STF, tal como prevista no art. 93, da Constituição. A justificação da Emenda nº 16 é clara neste sentido (doc. 5, p. 37):

“Tratando-se de matéria de iniciativa do STF, o acréscimo da expressão “no que couber” visa resguardar a hierarquia legislativa, compatibilizando, dessa forma, o art. 40 e seus parágrafos, com o disposto no art. 93.”

18. Impende ressaltar que, mesmo com o adendo “no que couber” – de sorte a se preservar a iniciativa do STF para as normas de regência da aposentação dos magistrados –, a alteração de redação do inciso VI do art. 93 da Constituição seria inconstitucional, pois subtrairia ao STF a obrigatoriedade de observância dos parâmetros de jubilamento originariamente expressos pelos constituintes – por eles alçados ao status de “princípio” – de obrigatória observância pelo próprio STF, e insuscetível de modificação pelo Parlamento quando das deliberações referentes ao processo legislativo atinente ao Estatuto da Magistratura, que haveria e ainda haverá de ocorrer.

19. Assim é que, para afastar qualquer eiva de inconstitucionalidade, apenas seria admissível a reprodução da redação originária do inciso VI do art. 93, acrescentando-se, eventualmente, a remissão, quanto ao mais, “no que couber”, ao regime dos servidores contemplado no art. 40 da Constituição.

20. Ressalvado este aspecto, é clara a preocupação inicial do Congresso em compatibilizar as normas do art. 40, da Constituição, com o regime específico dos magistrados, que apenas poderia ser disciplinado mediante lei de iniciativa desse eg. STF. Por essa razão, a emenda supramencionada deixava claro que o regime geral apenas se aplicaria aos magistrados no que coubesse.

21. E foi com esta redação, sujeitando os magistrados ao regime geral de previdência apenas “no que couber”, que o dispositivo foi votado em primeiro turno pelo Senado.

22. Como é de fácil constatação, a redação do dispositivo votado em primeiro turno jamais teve a finalidade de substituir o regime próprio dos juízes e inclui-los indistintamente no regime geral dos demais servidores públicos. Pretendeu tão somente determinar a aplicação subsidiária do regime geral de previdência aos juízes. Daí a utilização da expressão “no que couber.”

23. O fato é que apenas no segundo turno de votação, o Senado Federal resolveu acatar sugestão do seu então Presidente, Senador Antonio Carlos Magalhães, para o fim de excluir a expressão “no que couber”.

24. Ora, a retirada da expressão implicava a mudança radical do sentido e da extensão da reforma previdenciária em relação aos magistrados: o regime geral de previdência dos servidores públicos, que até então teria aplicação subsidiária e apenas “no que coubesse”, passaria a ser o próprio regime geral da magistratura.

25. Tal circunstância não passou despercebida para o saudoso Senador Josaphat Marinho, que assim se insurgiu quanto à proposta do Presidente do Senado (doc. 6, fl. 21334):

“Por outro lado, creio que toda a Casa quando votou essa matéria, na sessão do primeiro turno, o fez na certeza de que a expressão “no que couber”, constante do texto, ressalvava a situação da magistratura. Por isso, manifesto também a estranheza diante da notícia de que sustentará o nobre Relator no sentido de que tal expressão não tinha o sentido dessa ressalva e que, por isso, proporá a modificação da redação da matéria. Não se trata de mudar a redação, mas de alterar o mérito da matéria.

Se, como votamos naquele momento, a expressão “no que couber” for modificada a esta altura, estaremos alterando a substância do que votamos no primeiro turno.”

26. No entanto, a opinião do Senador Josaphat Marinho acabou não prevalecendo, tendo o Senado suprimido, apenas em segundo turno, a expressão “no que couber”. A circunstância de a matéria ter sido modificada somente no segundo turno de votação foi amplamente noticiada pela imprensa, inclusive pelo próprio Jornal do Senado. Sob a manchete “APROVADA A REFORMA, JUÍZES PERDEM APOSENTADORIA ESPECIAL, foi divulgada a seguinte notícia (doc. 7):


“Ao votar ontem em segundo turno a reforma da Previdência Social, o Senado eliminou a possibilidade de juízes e promotores terem aposentadorias diferenciadas do restante do funcionalismo público. A decisão foi tomada pelo Plenário ao votar destaque proposto pelo Presidente da Casa, Antonio Carlos Magalhães.

A matéria, que agora segue para a Câmara dos Deputados, foi discutida durante quase seis hora por 21 oradores. Pela manhã, a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania( CCJ) já havia dado o passo final para a votação da matéria em Plenário, ao apreciar emendas sugeridas durante a fase de discussão.”

27. A matéria prossegue, advertindo que mesmo as normas regimentais impedem alteração material da proposta de emenda constitucional no segundo turno. Mas, ainda assim, o Senado admitiu a supressão da expressão “no que couber”, conforme documentou o Jornal daquela Casa Legislativa, nos seguintes termos (doc. 7, p. 2):

“Depois de quase seis horas de debates, o plenário aprovou ontem, em segundo turno, a reforma da Previdência. Os senadores concordaram em eliminar, em votação de destaque em separado proposta pelo presidente da Casa, Antonio Carlos Magalhães, uma expressão que, na prática, permitia que juízes e promotores pudessem ter aposentadoria diferenciada do restante do funcionalismo.

(…)

A votação foi precedida por longas discussões sobre o Regimento e a possibilidade de se suprimir, em segundo turno, por votação em separado, algum trecho de emenda constitucional aprovada em primeiro turno. O senador Antonio Carlos Magalhães desencadeou as discussões ao apresentar requerimento propondo a supressão, por votação em destaque, de três palavras do substitutivo que permitiram aposentadorias diferenciadas dos juízes. Antonio Carlos citou precedentes do Senado para propor a supressão.

O Regimento do Senado não permite emenda de mérito na votação de segundo turno de proposta de alteração constitucional. Depois de muito debate, o presidente em exercício da sessão, senador Geraldo Melo (PSDB-RN), vice-presidente do Senado, entendeu que o requerimento de supressão das três palavras (“no que couber”) era pertinente e não feria o Regimento.”

28. Como se pode observar, o Senado descumpriu flagrantemente as suas próprias normas regimentais, admitindo emenda de mérito no segundo turno de proposta de alteração constitucional.

29. Mas o que aconteceu de mais grave foi a frontal e deliberada violação às normas constitucionais que disciplinam a tramitação da emenda constitucional, como se passará a demonstrar.

IV – A REDAÇÃO QUE A EC Nº 20/98 ATRIBUIU AO ART. 93, VI, DA CONSTITUIÇÃO APENAS FOI VOTADA EM SEGUNDO TURNO: OFENSA MANIFESTA AO ART. 60, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO

30. Como se comprovou no capítulo anterior, o Senado aprovou, em primeiro turno, nova redação ao art. 93, VI, da Constituição, que submetia a aposentadoria dos magistrados ao regime geral de previdência dos servidores públicos apenas no que fosse cabível. Somente no segundo turno é que os magistrados foram submetidos efetivamente ao regime geral de previdência dos demais servidores públicos.

31. Ora, não se trata de mera filigrana gramatical. A supressão da expressão “no que couber” inverteu totalmente o sentido da redação que foi aprovada no primeiro turno. É por essa razão que jamais poderia ter prevalecido no texto final da EC nº 20/98, pela simples circunstância de não ter sido submetida a dois turnos de votação em uma das Casas Legislativas (o Senado).

32. É de saber trivial que, dentre as cláusulas pétreas da Constituição Federal, estão as concernentes às garantias procedimentais para o exercício do poder constituinte derivado, que submete a aprovação de uma emenda constitucional a um processo legislativo muito mais rigoroso.

33. Uma destas garantias é a prevista no art. 60, § 2º, da Constituição, ao determinar que “a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.”

34. A regra não poderia ser mais clara: cada Casa deve aprovar, em dois turnos, a matéria contida na proposta de emenda constitucional, com maioria qualificada de três quintos.

35. Dessa maneira, é inequívoco que foi frontalmente descumprido o preceito constante do art. 60, § 2º, da Constituição Federal, tendo em vista que a submissão dos magistrados ao regime geral de previdência dos servidores públicos apenas foi votada, pelo Senado, em segundo turno.

36. Não é demais ressaltar a natureza manifestamente constitucional da questão ora apresentada, como já decidiu esse eg. STF em algumas oportunidades, dentre as quais a ADI 2666, cuja ementa é a seguinte (Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 06.12.2002):


“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO OU TRANSMISSÃO DE VALORES E DE CRÉDITOS E DIREITOS DE NATUREZA FINANCEIRA-CPMF (ARTS. 84 E 85, ACRESCENTADOS AO ADCT PELO ART. 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 37, DE 12 DE JUNHO DE 2002).

1 – Impertinência da preliminar suscitada pelo Advogado-Geral da União, de que a matéria controvertida tem caráter interna corporis do Congresso Nacional, por dizer respeito à interpretação de normas regimentais, matéria imune à crítica judiciária. Questão que diz respeito ao processo legislativo previsto na Constituição Federal, em especial às regras atinentes ao trâmite de emenda constitucional (art. 60), tendo clara estatura constitucional.

2 – Proposta de emenda que, votada e aprovada na Câmara dos Deputados, sofreu alteração no Senado Federal, tendo sido promulgada sem que tivesse retornado à Casa iniciadora para nova votação quanto à parte objeto de modificação. Inexistência de ofensa ao art. 60, § 2º da Constituição Federal no tocante à supressão, no Senado Federal, da expressão “observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal”, que constava do texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 2 (dois) turnos de votação, tendo em vista que essa alteração não importou em mudança substancial do sentido do texto (Precedente: ADC nº 3, rel. Min. Nelson Jobim). Ocorrência de mera prorrogação da Lei nº 9.311/96, modificada pela Lei nº 9.539/97, não tendo aplicação ao caso o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal. O princípio da anterioridade nonagesimal aplica-se somente aos casos de instituição ou modificação da contribuição social, e não ao caso de simples prorrogação da lei que a houver instituído ou modificado.

3 – Ausência de inconstitucionalidade material. O § 4º, inciso IV do art. 60 da Constituição veda a deliberação quanto a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Proibida, assim, estaria a deliberação de emenda que se destinasse a suprimir do texto constitucional o § 6º do art. 195, ou que excluísse a aplicação desse preceito a uma hipótese em que, pela vontade do constituinte originário, devesse ele ser aplicado. A presente hipótese, no entanto, versa sobre a incidência ou não desse dispositivo, que se mantém incólume no corpo da Carta, a um caso concreto. Não houve, no texto promulgado da emenda em debate, qualquer negativa explícita ou implícita de aplicação do princípio contido no § 6º do art. 195 da Constituição.

4 – Ação direta julgada improcedente.”

37. No precedente citado, o voto da em. Ministra Ellen Gracie, que prevaleceu por unanimidade, é claro ao mostrar que a tramitação de emenda constitucional é matéria de natureza constitucional e não regimental:

“Afasto a questão preliminar suscitada pelo Advogado-Geral da União, de que a matéria controvertida tem caráter interna corporis do Congresso Nacional, por dizer respeito à interpretação de normas regimentais, matéria imune à crítica judiciária.A questão levantada pelo requerente alude ao processo legislativo previsto na Constituição Federal, em especial às regras atinentes ao trâmite de emenda constitucional (art. 60). O autor aponta vício na Proposta de Emenda Constitucional em foco porque teria sido desrespeitado o disposto no § 2º do art. 60 da Carta, segundo o qual “a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.”

A impugnação não se restringe a questões meramente regimentais, mas tem clara estatura constitucional.”

38. Embora tenha conhecido da ação direta nesse ponto, sob o argumento da natureza constitucional da matéria, esse eg. STF não reconheceu a inconstitucionalidade apontada sob o argumento de que modificação que não altere substancialmente o texto já aprovado em primeiro turno pode ser deliberada apenas no segundo. É o que consta igualmente do voto da em. Ministra Ellen Gracie:

“Esta Corte já firmou o entendimento de que, quando a modificação do texto por uma das Casas Legislativas não importa em mudança substancial do seu sentido, a Proposta de Emenda Constitucional não precisa retornar à Casa iniciadora. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3, o eminente relator, Min. Nelson Jobim, ao examinar questão idêntica à presente, asseverou com propriedade:

“(…) O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado.,

Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica.

Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada.

Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou especial.”


39. Ocorre que, no caso concreto, a alteração promovida pelo Senado apenas no segundo turno implicou a total alteração do sentido do dispositivo votado no primeiro turno, permitindo que o regime geral de previdência dos servidores públicos deixasse de ser subsidiário – apenas aplicável aos magistrados no que cabível – e passasse a ser o regime geral de previdência dos magistrados, extinguindo o regime próprio já existente e pretendendo impedir que o eg. STF, ao exercer a iniciativa legal prevista no art. 93, pudesse dispor de forma contrária.

40. A alteração de sentido foi tão significativa que chegou a inverter a finalidade do dispositivo aprovado em primeiro turno de votação. Tal circunstância foi percebida pelo então senador Josaphat Marinho, nos debates orais que antecederam a votação, oportunidade em que o saudoso congressista demonstrou que a exclusão da expressão “no que couber” implicaria a alteração da substância do que fora votado no primeiro turno (supra, 23).

41. Não é sem razão que a melhor doutrina vem mostrando a sua inconformidade com o processo de tramitação da EC nº 20/98, como se observa pela exposição de Vander Zambeli (doc. 8):

“No segundo turno de votação no Senado, propôs-se destaque suprimindo a expressão “no que couber”, isto é, alterou-se o texto aprovado em primeiro turno. Com o famigerado destaque, modificou-se sensivelmente o texto aprovado em primeiro turno. Eis outra flagrante inconstitucionalidade.

O processo legislativo de elaboração de emenda constitucional estabelecido pelo art. 60 da Constituição Federal, tão importante que considerado pela doutrina como inserido nas limitações implícitas à atuação do poder constituinte derivado, exige, para aprovação, a obtenção de 3/5 dos votos dos respectivos membros EM AMBOS OS TURNOS. Ora, a alteração do regime previdenciário dos Juízes (e dos militares também) não foi aprovada no primeiro turno. No primeiro turno se aprovou um texto; e no segundo turno, outro. O texto aprovado no segundo vale tanto quanto o aprovado no primeiro, ou seja, NADA.

A redação do § 2º do art. 60 não dá margem para dúvidas:

“A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.”

Se a Constituição Federal votada por Assembléia investida de poder constituinte originário determina que para aprovação de proposta de emenda é necessária a obtenção de 3/5 dos votos dos respectivos membros em cada turno de votação, a proposta ora analisada padece do vício formal de descumprimento do processo legislativo constitucional.

Emenda Constitucional é assunto sério, não só político, mas também jurídico, não se sujeitando às arbitrariedades e picuinhas dos legisladores de ocasião, que devem ser corrigidas pelo guardião da Constituição, sob pena de se colocar em risco a Democracia. O cumprimento do processo legislativo para alteração da Constituição é o mínimo que se deve esperar do Congresso Nacional. Muito mais se diz em relação ao Supremo Tribunal Federal quanto à guarda da Constituição, pois, se o país retroceder, que não contribua o Poder Judiciário.

Os tais destaques do segundo turno, embora possam integrar normalmente o processo de elaboração das leis em sentido estrito, pois, quanto ao processo respectivo, a Constituição dá margem para previsão regimental a respeito, são incompatíveis com o processo legislativo das emendas, porquanto o Texto Magno, expressamente, exige para aprovação da proposta a obtenção de 3/5 nos dois turnos. Se o regimento diz o contrário, é inconstitucional. Em nosso sistema jurídico, a Constituição ocupa na pirâmide hierárquica das leis posição superior ao regimento do Senado Federal. Diante de erro tão crasso do Senado, parece necessário lembrar essa noção básica de Direito.

O Senado não poderia adotar em processo legislativo de Emenda Constitucional as mesmas regras do processo das leis em sentido estrito, uma vez que a Constituição lhes dá tratamento diverso. Coerente com a rigidez constitucional que caracteriza nossa tradição jurídica, exige-se mais (um plus) para a aprovação de emenda constitucional do que para a de lei estrita. Isto justifica a necessidade de aprovação do texto da proposta de emenda quatro vezes no Congresso, duas na Câmara e duas no Senado, conforme determinação expressa do art. 60, § 2º, da Constituição Federal. Daí se depreende irrefutavelmente que, se houver qualquer alteração do texto, deve ser também aprovada duas vezes em cada Casa, sob pena de se tornar a proposta formalmente inconstitucional.”

42. É evidente, portanto, a manifesta inconstitucionalidade formal da EC nº 20/98, na parte em que modificou a redação do art. 93, VI, da Constituição, tendo em vista que houve alteração material significativa – que chegou a inverter o sentido do dispositivo votado no primeiro turno – apenas no segundo turno, o que demonstra a inobservância dos dois turnos de votação exigidos pelo art. 60, § 2º, da Constituição.


V – AS MATÉRIAS QUE A CONSTITUIÇÃO RESERVOU AO ESTATUTO DA MAGISTRATURA, DE INICIATIVA DO STF, TÊM IMPLICAÇÕES DIRETAS COM A INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO E COM A SEPARAÇÃO DOS PODERES

43. O regime previdenciário dos magistrados foi tratado especificamente pela Constituição em seu art. 93, para o fim de deixar claro que tal matéria apenas poderia ser disciplinada pelo Estatuto da Magistratura, lei complementar de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

44. Veja-se que a regra do art. 93, VI, da Constituição, apresenta dois desdobramentos importantes: (a) delimita que a questão da aposentadoria dos magistrados apenas poderá ser tratada no Estatuto da Magistratura, o qual somente poderá ser instituído mediante lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal e (b) desde já estipula os parâmetros que deverão ser observados mesmo pelo STF, quais sejam (b.1.), aposentadoria com proventos integrais compulsória por invalidez ou aos setenta anos de idade e (b.2.), aposentadoria com proventos integrais facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercício efetivo na judicatura.

45. O primeiro desdobramento da regra do art. 93, VI, tem claras implicações sobre a autonomia e independência do Poder Judiciário e sobre a separação de Poderes, motivo pelo qual não poderia ser modificado nem mesmo pelo poder constituinte derivado.

46. Os próprios congressistas sabiam das repercussões da questão da aposentadoria dos magistrados sobre a independência do Poder Judiciário e sobre a separação dos poderes. Vale ressaltar o seguinte trecho do discurso do Senador José Ignácio Ferreira, ao alertar os seus pares quanto à inconstitucionalidade da usurpação da competência constitucional exclusiva conferida pela Constituição à lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal (doc. 6, pp. 21332 e 21333):

“(…) O que se pretende é que venha uma proposta de projeto de lei complementar a ser submetida à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal e à discussão ampla com a sociedade brasileira. Isso é o que queremos.

Desejamos que o estatuto da magistratura seja aqui discutido, contendo essa disposição que está no inciso VI, do art. 93., O que queremos é tão pouco: queremos dar ao magistrado as condições de ter a sua situação debatida com amplitude nas duas Casas, com toda a sociedade e, depois de votado o projeto com quorum especial, submetê-lo à Presidência da República.

(…)

Hoje existe uma cláusula pétrea que impede o Congresso Nacional de tomar uma posição que violente a disposição do art. 93, VI. Qual o motivo? Isso mexeria com a separação dos poderes. Não se pode mexer em cláusula pétrea. Caso houvesse uma ação direta de inconstitucionalidade, proposta perante o Supremo, ela seria provida.”

47. Tal entendimento também não é nenhuma novidade para esse eg. STF. Foi expressamente acolhido nas ADINs 98 e 183, ambas julgadas no mesmo dia e que apresentam idêntica ementa, com o seguinte teor (Relator Ministro Sepúlveda Pertence, ambos os acórdãos publicados em 31.10.97):

I. Separação e independência dos Poderes: critério de identificação do modelo positivo brasileiro.

O princípio da separação e independência dos Poderes não possui uma fórmula universal apriorística e completa: por isso, quando erigido, no ordenamento brasileiro, em dogma constitucional de observância compulsória pelos Estados-membros, o que a estes se há de impor como padrão não são concepções abstratas ou experiências concretas de outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente de separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição da República.

II. Magistrado: aposentadoria compulsória: exclusividade das hipóteses previstas no art. 93, VI, da Constituição: impossibilidade de criação de outra por Constituição Estadual.

1. O art. 93, VI, da Constituição, enumera taxativamente as hipóteses de aposentadoria facultativa e compulsória dos magistrados e veicula normas de absorção necessária pelos Estados-membros, que não as podem nem restringir nem ampliar.

2. Além de ser esse, na atualidade, o regime das normas constitucionais federais sobre os servidores públicos, com mais razão, não há como admitir possam os Estados subtrair garantias inseridas nas regras constitucionais centrais do estatuto da magistratura, entre as quais a da vitaliciedade, à efetividade da qual serve o caráter exaustivo dos casos previstos de aposentadoria compulsória do juiz.

3. Inconstitucionalidade da norma da Constituição Estadual que impõe a transferência obrigatória para a inatividade do Desembargador que, com trinta anos de serviço público, complete dez anos no Tribunal de Justiça.

4. Extensão da declaração de inconstitucionalidade a normas similares relativas aos Procuradores de Justiça e aos Conselheiros do Tribunal de Contas.


III. Poder Judiciário: controle externo por colegiado de formação heterogênea e participação de agentes ou representantes dos outros Poderes: inconstitucionalidade de sua instituição na Constituição de Estado-membro.

1. Na formulação positiva do constitucionalismo republicano brasileiro, o autogoverno do Judiciário – além de espaços variáveis de autonomia financeira e orçamentária – reputa-se corolário da independência do Poder (ADIn 135-Pb, Gallotti, 21.11.96): viola-o, pois, a instituição de órgão do chamado “controle externo”, com participação de agentes ou representantes dos outros Poderes do Estado.

2. A experiência da Europa continental não se pode transplantar sem traumas para o regime brasileiro de poderes: lá, os conselhos superiores da magistratura representaram um avanço significativo no sentido da independência do Judiciário, na medida em que nada lhe tomaram do poder de administrar-se, de que nunca antes dispuseram, mas, ao contrário, transferiram a colegiados onde a magistratura tem presença relevante, quando não majoritária, poderes de administração judicial e sobre os quadros da magistratura que historicamente eram reservados ao Executivo; a mesma instituição, contudo, traduziria retrocesso e violência constitucional, onde, como sucede no Brasil, a idéia da independência do Judiciário está extensamente imbricada com os predicados de autogoverno crescentemente outorgados aos Tribunais.”

48. Vale ressaltar trecho do voto do em. Ministro Sepúlveda Pertence, em que aborda exaustivamente a questão da vinculação entre o art. 93, VI, da Constituição e a própria separação dos poderes:

“O art. 92, V, da Constituição de Mato Grosso criou nova hipótese de aposentadoria compulsória dos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado, que, prescreve, “será transferido obrigatoriamente para a inatividade, com vencimentos integrais, quando completar dez anos de Tribunal, desde que tenha alcançado trinta anos de serviço”.

O art. 50, § 4o, estende a mesma disposição aos Conselheiros do Tribunal de Contas, e o art. 109, aos Procuradores de Justiça.

O art. 42 ADCT é regra de implementação do que a respeito dispôs de novo a Constituição do Estado.

A incompatibilidade entre as normas questionadas e a Constituição da República não demanda vôos maiores.

Na estrutura do constitucionalismo federal brasileiro, se não se quer alçar às alturas conceituais dos princípios constitucionais uma série de normas pontuais, será necessário reconhecer a existência de uma terceira modalidade de limitações à autonomia constitucional dos Estados: além dos grandes princípios e vedações – esses e aqueles, implícitos ou explícitos –, hão de acrescentar-se as normas constitucionais centrais que, não tendo o alcance dos princípios nem o conteúdo negativo das vedações, são, não obstante, de absorção compulsória – com ou sem reprodução expressa – no ordenamento parcial de Estados e Municípios (cf. meus votos na Rcl 370, Gallotti e na Rcl 383, Moreira, RTJ 147/404, 478/495).

Nessa categoria insere-se induvidosamente o art. 93, VI, da Constituição Federal, a teor do qual, cuidando-se de magistrados, “a aposentadoria com proventos integrais é compulsória por invalidez e aos setenta anos de idade”.

Trata-se de norma de absorção forçada pelos Estados, na medida em que se insere – como explícito no caput do art. 93 – entre os “princípios” a serem observados no Estatuto da Magistratura, que é lei complementar cujo campo normativo abrange tanto os magistrados federais quanto os locais, como ressai da estrutura nacional do Poder Judiciário, delineada no art. 92, que compreende os juízes e tribunais da União e dos Estados.

Por seus termos – ao contrário dos outros incisos do mesmo rol –, o art. 93, V” (entenda-se: VI) “ – antecipação do conteúdo de lei complementar de âmbito nacional – não constitui simples limite negativo à leis específicas da União e dos Estados relativas ao regime funcional dos respectivos magistrados: contém trato exaustivo das hipóteses de sua aposentadoria voluntária ou compulsória, que as ordens parciais subordinadas não podem nem restringir nem ampliar: sem razão, no ponto, as informações.

Em regimes constitucionais passados – em particular, no de 1946 – no tocante às normas sobre o funcionalismo público da Constituição Federal, tendia a jurisprudência a reputá-las garantias e direitos mínimos do servidor, aos quais o direito local poderia acrescer outros direitos e garantias (v.g. RE 34.240, 21.11.58, L. Gallotti, RTJ 8/185; RE 38.228, 20.11.58, B. Barreto, RTJ 8/217; RE 55.370, 25.5.65, C. Motta Filho, RTJ 33/498; RE 42.465, 22.4.66, P. Kelly, RTJ 38/306; ERE 47.553, 1o.12.66, P. Kelly, RTJ 40/619).

Essa orientação ficou superada, nos textos posteriores, incluído o atual, com as normas explícitas de extensão compulsória aos Estados e aos Municípios de todo o disposto sobre os servidores públicos na Constituição Federal: mas, ainda quando vigorou, o que se facultava ao direito local era ampliar e não subtrair direitos e garantias funcionais.


Com mais razão, não há como admitir pudessem ou possam, hoje, os Estados subtrair garantias inseridas nas regras constitucionais centrais do estatuto da magistratura: é ponto assente que as garantias constitucionais do juiz se impõem à necessária absorção do ordenamento estadual, sem discussão, pelo menos, desde a Constituição de 1934 – que explicitou, a propósito, o que a construção do Supremo Tribunal Federal já extraíra do dogma da independência do Judiciário (cf. Leda Boechat Rodrigues, História do Supremo Tribunal Federal, v. I, cap. V, p. 82; VIII, cap. 13, p. 215, com farta referência jurisprudencial); Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, 1915, p. 7; Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, 1943, p. 62).

Sob esse prisma, ascende a discussão ao nível de um dos verdadeiros princípios fundamentais da Constituição, o dogma intangível da separação dos poderes (CF, art. 2o e 60, § 4o, III). Com efeito, é patente a imbricação entre a independência do Judiciário e a garantia da vitaliciedade dos juízes. A vitaliciedade é penhor da independência do magistrado, a um só tempo, no âmbito da própria justiça e externamente – no que se reflete sobre a independência do Poder que integra frente aos outros Poderes do Estado.

Desse modo, a vitaliciedade do juiz integra o regime constitucional brasileiro de separação e independência dos Poderes.

O princípio da separação e independência dos Poderes, malgrado constitua um dos signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula universal apriorística: a tripartição das funções estatais, entre três órgãos ou conjuntos diferenciados de órgãos, de um lado, e, tão importante quanto essa divisão funcional básica, o equilíbrio entre os poderes, mediante o jogo recíproco dos freios e contrapesos, presentes ambos em todas elas, apresentam-se em cada formulação positiva do princípio com distintos caracteres e proporções.

Dado que o Judiciário é, por excelência, um Poder de controle dos demais Poderes – sobretudo nos modelos positivos de unidade e universalidade de jurisdição dos Tribunais, como o nosso – parece incontestável, contudo, que a vitaliciedade ou outra forma similar de salvaguardar a permanência do Juiz na sua função será, em cada ordem jurídica considerada, marca característica da sua tradução positiva do princípio da independência dos poderes.

Desafiam o óbvio, nas informações, tanto a tentativa de esvaziar a vitaliciedade da sua substância, qual seja, a permanência na função do cargo – sem a qual não existe o próprio cargo –, quanto o ensaio, audacioso mas canhestro, data venia, de reduzir-lhe o âmbito pessoal a determinadas categorias de magistrados: os membros dos órgãos colegiados de jurisdição são órgãos parciais de sua função judiciária e, como tais, juízes revestidos de todas as correspondentes garantias constitucionais.

Certo, no modelo brasileiro, a vitaliciedade é relativa, cessando a investidura, afora a hipótese de invalidez, aos setenta anos de idade, por força da regra constitucional da aposentadoria compulsória.

Daí não se segue, entretanto, que ao legislador subordinado à Constituição Federal – incluído o titular do poder constituinte instituído dos Estados – possa criar outras modalidades de cessação da investidura vitalícia: as únicas hipóteses previstas na Lei Fundamental – a invalidez e a idade limite – inerem ao estatuto constitucional da vitaliciedade, quais únicas modalidades admissíveis de cessação compulsória da estabilidade no cargo e na função do titular da garantia.

Acrescer-lhes outros casos de inatividade obrigatória é, por tudo isso, afrontar o art. 95, I, que, de modo exaustivo os prescreve, e, via de conseqüência, os arts. 2o e 60, § 4o, III, da Constituição, que erigem a separação e a independência dos poderes a princípio intangível pelo constituinte local.

Vale o mesmo em relação ao Ministério Público, por força dos arts. 128, § 5o, I, e 129, § 4o, e ao Tribunal de Contas do Estado, mercê das regras de extensão aos seus membros das garantias da magistratura, inscritas nos arts. 73, § 3o, e 75 da Lei Fundamental.

Declaro, pois, a inconstitucionalidade dos arts. 92, V; 109, parág. único, 50, § 4o, e 42 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição do Estado do Mato Grosso.”

49. É inequívoco que o precedente supramencionado apresentava contornos um pouco diversos, até por se referir igualmente a questões concernentes ao federalismo e ao poder constituinte dos Estados. Mas o voto do Ministro Pertence mostra claramente que o regime de aposentadoria dos magistrados, por ter nítida vinculação com a vitaliciedade dos juízes – na medida em que consubstancia restrição a ela –, integra o conteúdo do princípio da separação de poderes, cláusula pétrea da Constituição.


50. Conseqüentemente, não poderia o legislador constituinte derivado usurpar a iniciativa de lei que a Constituição reservou com exclusividade ao STF, ainda mais em se tratando de matéria que está intrinsecamente relacionada à separação de poderes e à independência do Poder Judiciário.

51. Vale ressaltar, sobre o tema, notável parecer do Juiz Rodnei Doreto Rodrigues, que aborda exatamente esta questão (doc. 9):

“7. Mas não é só isso. O constituinte derivado, ao intervir em matéria que a Constituição reservava à iniciativa do órgão supremo do Poder Judiciário, inegavelmente afrontou aos princípios da independência e da separação dos Poderes.

8. É irrelevante que essa iniciativa se referisse a lei complementar, e não a emenda constitucional, que em nenhuma circunstância se concede ao Supremo Tribunal Federal. Apenas importa que nenhum Poder possa, ainda que por via transversa, usurpar qualquer atribuição a outro expressa e originariamente conferida pela Carta Magna, pois isso implica em desequilíbrio da situação concebida como base para a convivência harmônica e independente dos Poderes, assentada como princípio fundante da República (CF, art. 2o).

9. A se admitir ingerências dessa ordem, compromete-se, sem dúvida, o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) originariamente concebido, em evidente tendência à abolição da separação dos Poderes.

10. Nem se diga que se aplica à espécie o entendimento sedimentado no âmbito do Supremo Tribunal Federal de que inexiste direito adquirido a regime jurídico. No caso, é o próprio constituinte originário que assegura o direito ao regime especial de aposentação de magistrados, tornando-o intocável, ao menos nos pontos expressamente veiculados no inciso VI do art. 93 da Constituição.”

52. Portanto, independentemente até mesmo do exame a respeito da inconstitucionalidade formal da referida EC nº 20/98, é fácil constatar a sua manifesta inconstitucionalidade material, ao violar as cláusulas pétreas da independência e da separação dos poderes (CF, arts. 2º e 60, § 3o), usurpando competência legislativa que apenas poderia ser exercida mediante lei de iniciativa do eg. Supremo Tribunal Federal (CF, art. 93, caput, e VI), como representante e órgão maior do Poder Judiciário.

V – PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR

53. Diante da gravidade dos fatos aqui narrados, bem como da extensão das repercussões que a inconstitucional EC nº 20/98 vem trazendo para os magistrados, é induvidoso que se trata de hipótese clara de concessão liminar da medida cautelar.

54. Não se pode esquecer que, desde a EC nº 20/98, os magistrados de todo o Brasil vêm sendo submetidos a regras de aposentadoria cuja aplicação é manifestamente inconstitucional em relação aos mesmos. Muitos já se aposentaram de acordo com as novas normas, de forma que até é difícil precisar a extensão do dano, que se amplia a cada dia.

55. Com a edição da EC nº 41/2003, a situação agravou-se ainda mais, pois a referida emenda trouxe grandes modificações ao regime geral de previdência, não respeitando nem mesmo as regras de transição previstas na anterior EC nº 20/98.

56. Mas o há de mais grave é a circunstância de que a independência do Poder Judiciário e a competência privativa desse eg. STF para a iniciativa de lei complementar na qual seria cabível a discussão sobre a aposentadoria dos magistrados – sempre ressalvados os limites intangíveis originariamente previstos -, foram flagrantemente violadas por uma emenda constitucional que não obedeceu sequer aos requisitos formais mínimos exigidos para a sua tramitação.

57. O que há de mais grave é saber que as garantias do Poder Judiciário e da magistratura foram severamente atingidas pelo Congresso Nacional, por meio de um dispositivo que foi modificado apenas no segundo turno, de forma deliberada, em total desrespeito ao art. 60, § 2º, da Constituição.

58. É inequívoco que tal fato, ainda pouco divulgado, mas que certamente virá a público, ainda mais depois do ajuizamento da presente ação, gerará uma compreensível irresignação por parte de todos os magistrados brasileiros, a exigir uma apreciação imediata por parte desse eg. STF.

VI – PEDIDO

59. Por todo o exposto e, igualmente nos termos dos pareceres inclusos, demonstrada a inconstitucionalidade do art. 1º, da EC nº 20/98, na parte em que alterou a redação do art. 93, VI, da Constituição – e conseqüentemente, contra os §§ 2º e 3º, do art. 2º, da EC nº 41/2003 -, bem como a relevância e a urgência da apreciação desse eg. STF sobre a questão, requer a autora que seja deferida a medida cautelar, preferencialmente nos termos do § 3º, do art. 10, da Lei nº 9.868/99, para o fim de suspender ex tunc a eficácia dos dispositivos impugnados.

60. Caso entenda o eminente Relator que a ação ajusta-se à hipótese do art. 12, da Lei 9.868/99, requer que a ação seja submetida a tal rito somente após o deferimento monocrático da liminar, para o fim de sustar as inconstitucionalidades ora descritas.

63. Após serem ouvidos o Congresso Nacional, o Advogado Geral da União e a Procuradoria Geral da República, restando demonstrada a inconstitucionalidade do art. 1º, da EC nº 20/98, na parte em que alterou a redação do art. 93, VI, da Constituição – e conseqüentemente, contra os §§ 2º e 3º, do art. 2º, da EC nº 41/2003 -, requer a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA que esse eg. Supremo Tribunal Federal julgue a presente ação procedente, para declarar a nulidade dos referidos dispositivos com efeito ex tunc, restabelecendo-se a redação original do inciso VI do art. 93 da Constituição Federal.

64. Requer a autora a intimação do eg. Congresso Nacional, a fim de que preste informações e do Advogado Geral da União para defender, querendo, os dispositivos impugnados.

65. Dá-se à presente causa o valor de R$ 1.000,00.

Brasília, 21 de setembro de 2004.

P.p.

ANA FRAZÃO

(OAB-DF, nº 12.847)

P.p.

ALBERTO PAVIE RIBEIRO

(OAB-DF, nº 7.077)

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