Filtro do Leão

Legislador não tem autonomia para definir limite de dedução do IR

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23 de setembro de 2004, 14h51

Independentemente de ser ou não o mais importante dos impostos existentes na nossa ordem jurídica em termos de volume de arrecadação — o IPI e, na esfera estadual, o ICMS o superam nesses padrões — o imposto de renda é, no Brasil, tal como acontece na generalidade dos demais países, aquele tributo que fala mais de perto aos “corações e mentes” dos cidadãos.

Isto porque ele se destina a atingir diretamente os ganhos patrimoniais de pessoas e empresas, golpeando-os justamente na raiz de suas conquistas econômicas. Ele é visto como o mais agressivo e o mais antipático talvez dos tributos, imposto direto, que alcança sem intermediários as raízes de nossa subsistência e progresso econômicos.

A Constituição se omite quanto à conceituação do imposto nos seus componentes essenciais de hipótese de incidência e de base de cálculo, por não ser sabidamente ali o local para essas demarcações, sobrando na Carta apenas a formulação genérica da estrutura medular dele: é um imposto federal sobre a renda e proventos de qualquer natureza (artigo 153, III).

No contexto orgânico da Constituição Federal, conforme parâmetros de seu artigo 146, cabe à lei complementar desenhar as regras gerais de estrutura sobre o IR, falando então de seu modelo de incidência e de sua base de cálculo.

Para isso, o artigo 43 do atual Código Tributário Nacional, funcionando, conforme genericamente conhecido, com carga de lei qualificada, traz de modo coerente com a matriz constitucional a conceituação do fato gerador, ou hipótese de incidência do IR, como:

“A aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica (a) de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, ou (b) de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.

No seguinte artigo 44, o CTN descreve a base de cálculo do imposto como:

“o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis “

Aqui se verifica que renda e proventos, tendo suas disponibilidades econômicas ou jurídicas conquistadas, adquiridas por alguém, provoca a incidência do IR. A dimensão quantitativa do imposto vai se dar diante do montante real, presumido ou arbitrado da renda ou dos proventos assim considerados.

Entre nó,s o grande Rubens Gomes de Souza (“A Evolução do Conceito de Rendimento Tributável” na Ver. De Direito Publico n.14, págs 339 e segs) acedeu à idéia de que, para fins tributários, a renda seria tudo o que a legislação de cada país assim o determinasse.

Diante da realidade trazida na época pela extrema minúcia e especificação, sempre ampliativa, por parte do legislador comum — na ocasião, no quadro da Constituição de 1967 e sua alteração em 1968, mediante decretos executivos com força de lei — o mestre acolhia as técnicas legais de adições ao lucro líquido para cálculo do valor tributável, da desconsideração de certas despesas, ainda que efetivas, enquadrando-as como ficções legais, mas advertindo que deveriam tais adendos extras ao conceito mais puro de renda, serem sempre interpretadas restritivamente.

Nunca estivemos animados com essa concepção tão concessiva e insegura do conceito de renda tributável. E já podemos talvez entender a adesão do grande mestre paulista à influência deletéria daquela ordem jurídica muito autoritária, normativista e não principiológica, ao contrário do que ocorre na atual quadra do fenômeno jurídico no Brasil.

Mesmo com a advertência da interpretação compulsoriamente restrita desses adendos legais “não técnicos”, ficções arbitrárias do legislador comum, a idéia não concede segurança jurídica.

Prevalece certamente entre nós, nos estudos tributários, a chamada teoria legalista em sentido amplo que a professora paulista Gisele Lemke assim sintetiza:

“Já em se adotando a teoria legalista em sentido amplo, tem-se que não poderá a lei ordinária instituir IR, tomando por base fatos que evidentemente não constituem renda, pois há que se pressupor a incorporação pela Constituição do significado mínimo dos vocábulos por ela utilizados”.

Ao que se pode acrescer que, de igual modo, a lei complementar, no caso dos tributos, o CTN define renda e proventos em padrões gerais, atendendo ao comando do artigo 146 da Carta atual, não podendo a lei ordinária fugir de tais padrões ao tratar da base de cálculo do IR.

No Brasil, a tipificação dos fatos passíveis de serem tributados é rígida, não permitindo qualquer extensão infraconstitucional, estando a competência residual da União federal (artigo 154, inciso I, da Constituição) excepcionada dessa regra desde que exercida obedecendo-se os limites impostos pela Carta Magna.

De igual modo, Luiz Eduardo Schoueri (“Distribuição disfarçada de Lucros”, Ed Dialética, 1996, pág 130) afirma a constitucionalidade das ficções somente quando:


“…a descrição da hipótese ficta se conformar –ela mesma—com o desenho constitucional do campo de competência tributária e com a definição do fato gerador na lei complementar(art 146,III, da CF)”

Ora, seja na configuração correta da hipótese de incidência do tributo, seja na determinação de sua base de cálculo, ou “base imponível” há que se observar sempre essas limitações claras ao uso das ficções legais.

O que se observa, então, é que, no aspecto pessoal, temporal, no termo espacial e na vertente material da hipótese de incidência — e na ultima delas temos o fenômeno jurídico da base imponível — em todos esses quadrantes há que se observar os princípios constitucionais tributários como limitadores do uso, pelo legislador comum, das ficções tributárias.

Tome-se o art. 1o ‘caput’ e parágrafo único da lei 9316 de22.11.96, que determina ser indedutível, como custo ou despesa, no cálculo do lucro real tributável da empresa, o valor da contribuição social sobre o lucro líquido que onere aquela empresa.

O legislador ordinário entendeu pois que para se determinar a base imponível do imposto de renda de uma pessoa jurídica o valor daquele tributo incidente sobre tal pessoa jurídica não pode ser debitado.

Como a CSLL, contribuição social federal, há de ser devida, sofrida e efetivamente paga, despendida economicamente pela pessoa jurídica, entende-se que o legislador comum desprezou tal realidade fática, empírica, tendo-a como irrelevante para efeitos fiscais. Seria, portanto, nos moldes dos conceitos dogmáticos acima expostos, e generalizadamente aceitos na ordem jurídica, uma hipótese clara de uma ficção adotada pela lei ordinária.

Como se assim se entendesse o parâmetro adotado pela lei 9316: Não importa que essa despesa, ou esse custo tributário exista; para fins de cálculo da base imponível do IRPJ ele é inexistente.

Voltados à moldura constitucional explicitada pelo CTN, este como lei complementar, vemos que o imposto de renda só pode ter como base imponível a renda-produto do trabalho, do capital ou de ambos combinados — e os proventos de qualquer natureza — acréscimos patrimoniais não caracterizados como renda.

Assim, só com sustento em uma concepção estritamente legalista de renda (tudo aquilo que o legislador assim o declarar) podemos aceitar a idéia de que alguém vá pagar IR sobre um valor que na verdade o próprio credor político federal recebeu do contribuinte, a título de contribuição social. Para isso o legislador inequivocamente valeu-se de uma ficção.

Mas, já vimos acima, que ficções legais usadas na determinação da hipótese de incidência de tributos, ou na determinação de suas bases imponíveis, ou bases de cálculo, sofrem limites claros, determinados pelos princípios constitucionais da legalidade, capacidade contributiva, etc.

Como especificamente anotado acima, a ficção adotada pelo legislador tem que se amoldar à diretriz geral do art 146 da Carta, quando a Lei Complementar traça os padrões de hipótese de incidência e de base imponível.

Se, na verdade empírica, real, inquestionável, um tributo legalmente exigível, pago pelo contribuinte, não pode integrar o montante de sua renda nem de acréscimo patrimonial outro, a norma da lei comum não pode, decididamente, desconsiderar tal realidade, sob pena de afrontar o princípio constitucional da legalidade, o artigo 146 da Carta, e o artigo 43 do CTN.

Provavelmente é nessa diretriz acima que o artigo 41 da lei 8981/95 declara, formalmente que “os tributos e contribuições (sic) são dedutíveis, na determinação do lucro real, segundo o regime de competência”.

Assim como uma norma já clássica entre nós se mostra, desde 1964 (Lei 4.506, artigo 47), como a primeira diretriz em matéria de custos e despesas operacionais dedutíveis no cálculo da base imponível do imposto de renda (hoje o art 299 do RIR):

“São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e à manutenção da respectiva fonte produtora”.

Ninguém de bom senso há de negar que os tributos incidentes são necessários à manutenção correta e legal das atividades produtivas da pessoa jurídica. Simples assim.

Com muita clareza e precisão também Hiromi Higuchi, Fábio Hiroshi Higuchi e Celso Higuchi, no seu “IMPOSTO DE RENDA DAS EMPRESAS interpretação e prática”, IR publicações ltda, 2004, pág. 297 tratam desse problema:

“A lei pode limitar ou impedir a dedutibilidade de despesas cuja realização fique ao arbítrio do contribuinte, como ocorre com doações, remunerações de dirigentes, etc. O mesmo não poderá ser feito com os tributos cobrados pela União, Estados e Municípios, porque fere o disposto no art 43 do CTN. Sendo este lei complementar à Constituição, a lei que contraria o CTN é inconstitucional.”


Na verdade, pois, a lei comum optou por determinar que aquela específica despesa tributária não pode ser considerada no cálculo do lucro (renda) sujeito à incidência do imposto de renda.

A matéria, até aqui, tem sido tratada de modo favorável ao Fisco, com base em acórdão do STJ no recurso especial nº 395842-SC, onde a 2a Turma daquela Corte Superior, à unanimidade, com base no voto da Min Eliana Calmon assim ementou (D.J. U. de 31.03.03, pág 198):

“A inclusão de valor da contribuição na sua própria base de cálculo não vulnera o conceito de renda constante do art 43do CTN).”

No corpo da decisão, explica a Ministra Relatora:

“Observe-se que não há no dispositivo transcrito (artigo 43 do CTN) nenhum empecilho à prática da dedução, sendo certo que, em matéria de Imposto de Renda (a mesma base de cálculo para a contribuição), a renda real, arbitrada ou presumida, foi deixada a critério do legislador ordinário, que pode traçar os limites da dedução de despesas, “necessários à obtenção de um resultado econômico”.

Infelizmente, não se pode, em sã consciência jurídica, concordar com a tese esposada pelo acórdão, nem certamente com seus fundamentos.

Vamos de logo desconsiderar a afirmação contida no relatório supra transcrito de que o imposto de renda tem a mesma base de cálculo da CSLL, pois isto se opõe frontalmente ao entendimento conhecido do próprio STJ e também do STF quando decidiram pela pertinência dessa contribuição justamente por não apresentar identidade de base imponível com o imposto de renda.

Mas não se pode descartar uma crítica jurídica evidente à assertiva de que o legislador comum “pode traçar os limites de dedução de despesas, necessários à tenção de um resultado econômico”.

O legislador ordinário não só pode, mas realmente deve estipular limites de dedução de despesas e custos para fins de obtenção do lucro real, mas não dispõe ele de carta branca, de discricionariedade plena para assim proceder. Afinal, é reconhecimento tranqüilo na nossa ordem jurídica,como se viu, que existem princípios constitucionais claros a determinar a ação do legislador nessa matéria.

Sabe-se, e o acórdão se omite a respeito, que o citado artigo 43 do CTN, conceituando renda e proventos, se acoberta na norma do artigo 146 da Carta de 1988, e, portanto, a lei infra não pode dispor de um modo que torne a base imponível do IRPJ destoante do conceito disposto na lei complementar.

Todas as limitações da lei comum para proibir deduções de custos e despesas devem marcar coerência com a regra geral conceituadora do artigo 43 do CTN. A se seguir o entendimento do acórdão uma lei comum pode determinar que o custo de aquisição de matéria primas e insumos de uma empresa fabril, por exemplo, não seria passível de dedução do IRPJ dessa empresa. O que seria uma afronta evidente ao conceito de renda do artigo 43 do CTN e, francamente, ao próprio bom senso.

E é o que acontece no caso presente: o ônus da CSLL não é uma opção do contribuinte. Ele é uma obrigação tributária, séria, compulsória, e essencial a sua atividade, para que possa licitamente atuar e explorar suas atividades. Proibir seu cômputo a débito no cálculo da renda, do lucro real da empresa é um contrasenso ilógico, ética e juridicamente condenável.

O cuidadoso Noé Winkler anota, no seu precioso “Imposto de Renda”, Ed Forense, 2001, pág. 430 sobre a regra paramétrica do atual art 299 do RIR:

“Tendo presente esta premissa (do caráter objetivo do conceito de despesas necessárias), podemos dizer que uma despesa é necessária quando for inerente à atividade da empresa ou dela decorrente, ou com ela relacionada, ou até mesmo que surja em virtude da simples existência da empresa e do papel social que ela representa.”

O que mais se precisa para se ter como celular ao conceito de renda tributável a dedução de seu cálculo, dos tributos que incidem compulsoriamente sobre aquele contribuinte pessoa jurídica, que este precisa recolher para continuar produzindo receitas?

O Acórdão acima parece subscrever a inaceitável e simplista tese de que renda é aquilo que o legislador comum determinar, passando por cima dos regramentos constitucionais e dos limites genéricos da lei complementar.

Em outro ponto, o “decisum” acima se expressa, no voto da Min Relatora:

“Afinal, lucro não é o que sobra do resultado da atividade econômica, pois tudo que é retirado do capital é lucro, independentemente do destino”.

Difícil se concordar, com tal conclusão. A uma porque o valor do tributo, da CSLL paga, não sai do capital, mas do patrimônio geral da pessoa jurídica, e certamente, indiscutivelmente, tributo, contribuição social, não é parcela de lucro líquido, quando muito será parte de um lucro operacional bruto, e tanto a base de cálculo do IRPJ quanto a da própria CSLL estão assentadas no conceito de lucro líquido, pois aí verificamos a real identificação da renda.

Melhor julgou o TRF da 2a Região, em 2000, pela sua 5ª Turma, em acórdão unânime no agravo de instrumento nº 47524, Rel. Juíza Vera Lucia Lima:

“Para o cálculo do IRPJ há que se fazer deduções e exclusões das parcelas que não representem renda e, neste caminho,a princípio, há que se excluir da base de cálculo do IRPJ os valores a título de CSLL”.

Espera-se que tanto o STJ, que nos tem mostrado competência decisória muito superior a essa acima referida, quanto o STF, tragam uma solução para esse aqbuso da lei fiscal, anulando essa abusiva imposição de tributo sobre custos tributários, ao fim, um ilegal tributo sobre patrimônio.

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