Fatos da vida

Revogação de punição de adultério na lei será um avanço

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21 de setembro de 2004, 11h21

Há na Bíblia episódios que dão arrepios, quer pela crueza dos relatos, quer pela forma primitiva com que alguns temas eram examinados. Na modernidade, também, entre uma ou outra civilização mais austera, alguns temas recebem apreciação quase incompreensível, a menos que se venha a entender que o ser humano se mantém, hoje, na mesma medida de antanho. Para quem não captou, ainda, o miolo do assunto, vale a pena uma referência a Projeto de Lei, tramitando na Câmara dos Deputados, que extingue o crime de adultério tipificado no artigo 240. Lê-se ali: “Cometer adultério: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses”. § 1.º. Incorre na mesma pena o co-réu. § 2.º. A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de um mês após o conhecimento do fato”.

Obviamente, o adultério pode incriminar a mulher ou o varão, embora, ao repensá-lo, o intérprete sempre mentalize a mulher que trai e não o homem que prevarica. Tal deformação tem relevo nas denominadas “sociedades machistas”, valendo dizer que em Portugal, séculos atrás, o marido traído era também punido, impondo-se-lhe, em algumas ocasiões, o ônus de só sair à rua portando chifres. Daí, na gíria popular, inclusive no Brasil, a expressão “cornudo” ou “chifrudo”.

Perceba-se, nisso, influência alienígena nos comportamentos dos brasileiros, o que não é assim tão extravagante, porque, na rotina dos nossos doutrinadores, continuamos a imitar a legislação estrangeira, havendo quem, inclusive, importe juízes espanhóis para nos darem lições sobre a necessidade de o Ministério Público ter a seu cargo a investigação e os inquéritos policiais.

Deixando-se de lado tal interferência espúria, volte-se ao adultério em si: certa vez, há quarenta anos, jovem advogado foi contratado por um marido escabujante para autuar e prender em flagrante a esposa, mais o comparsa, que estariam a colocar em risco a honorabilidade marital. Naquele tempo não havia motéis. Existia uma ou outra casa de pensão (v. Aluísio Azevedo). De qualquer maneira, preparou-se a armadilha, após estrita vigilância sobre os traidores. Chegada a madrugada, o advogado, acompanhado de policiais excitados, irrompeu pela janela do hoteleco, colhendo o casal naquela atitude que nunca deixou de assombrar os sonhos do recém-formado.

Realmente, foi em Washington de Barros Monteiro que pela primeira vez, enquanto estudante, o entusiasmado noviço, encontrara a expressão: “solus cum sola, nudus cum nuda, in eodem lecto”. Para os bacharéis de hoje, que não estudaram o latim como o cronista, segue a tradução, em interpretação livre: “Ambos nus, isolados, no mesmo leito”. Prosseguindo: à luz diáfana da lua cheia, dois vultos foram localizados. Os esbirros, agressivos, seguraram o casal. O marido, enfurecido, gritava nomes de baixo calão. A moça era bonita e tinha as feições aterrorizadas.

O co-partícipe não era lá essas coisas atrativas. Aliás, nos anos futuros, nos quais a memória não se anuviara, o advogado entendeu que poderia ser aquele, ou outro qualquer, mas havia, na conduta daquela quase deusa adolescente, um quê de pavor, de desafio e de vingança. Foi então que a moça conseguiu se desvencilhar de um dos policiais e, chorando, ajoelhou-se aos pés daquele advogado recém-saído dos bancos escolares. E implorou: “Faça o que quiser, mas não deixe que os outros saibam o que aconteceu aqui dentro”.

O moço, estupefato, varou com os olhos o compartimento já gasto, aqueles homens hirsutos, o varão assustado e o marido exaltado. Naquele momento, o advogado se transformara em juiz de um drama cujas origens se encontrariam, quem sabe, em muitas madrugadas outras e atrás. Naquela emergência, deixou de lado a condição de pretor. Virou-se para o cliente e disse: “– Melhor seria que você, sozinho, vertesse as lágrimas de seus próprios pecados. Passe amanhã no escritório e pegue seu dinheiro de volta”. Dito isso, saiu daquele quarto de pensão e voltou a pé pela madrugada, decidido a se curvar, sim, à frente de todas as mulheres que por isso tivessem passado na vida.

Já se vê, no episódio da revogação do dispositivo concernente à punição do adultério, que o deputado relator, conhecendo ou não a história, deve ter tido seu instante de reflexão que só vem àqueles que amadureceram suficientemente para entenderem os fatos da vida. No fim das contas, se lapidação houvesse, apedrejados deveriam ser os maridos. Ou então, à moda da velha Portucália, eles mereceriam, quiçá, os ornamentos previstos nas Ordenações.

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