Longa estrada

Justiça de Rondônia ainda enfrenta vários percalços

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10 de setembro de 2004, 18h25

Imaginem Rondônia das décadas de 60 e 70, tempos em que o próprio governador tinha uma função na Justiça: transportar os processos do interior para a capital, Porto Velho. Imaginem juízes extremamente preocupados com o social em locais onde o governo não tinha presença regular.

Entre outros, lembram esses aspectos os desembargadores aposentados Francisco César Soares de Montenegro e Hélio Fonseca. Conhecer a identidade da magistratura rondoniense significa um mergulho nesse passado. Na sua maioridade, ela apresenta nomes e fatos importantes, alguns deles decisivos para a instalação do estado.

“A vida do juiz era dificílima. Praticamente, a justiça era feita no núcleo dos municípios, porque não havia condição de se judicar em relação a Vilhena, distante mais de 700 quilômetros. Os juízes não iam para essas localidades, mas os processos vinham. O governador tinha uma função: ele trazia os processos”, conta Montenegro. “Só não havia possibilidade de trazer as testemunhas”. Acrescente-se: o percurso era de 700 quilômetros de estrada primária, poeirenta no verão e barrenta no “inverno amazônico”; uma BR-364 (ex-BR-29) esburacada, sofrível.

Nilza Menezes, do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia, resgatou esses fatos nas fichas de cadastro do Conselho da Magistratura. E foi a partir daí que ela ofereceu ao país um pouco do retrato rondoniense. Brevemente, será publicada a segunda edição da Memória Judiciária.

Examinando esse passado, Nilza constata um “poço mais profundo” o período que antecedeu a transformação do Território em Estado. Vê, por exemplo, que o terceiro juiz da primeira fase da Justiça, o lendário Pedro Alcântara Baptista de Oliveira, na sua missão em Guajará Mirim (1933-1943), na fronteira brasileira com a Bolívia, exercia o cargo com personalidade crítica, deixando transparecer vasta cultura.

Suas sentenças e despachos, ela descreve, exibem valiosos documentos para análise não apenas do Judiciário como da história do período. Por quê razão? Pedro Alcântara tinha por hábito registrar em atas de audiência acontecimentos políticos, falecimentos de colegas, elogios e críticas a funcionários e fatos diversos.

Em atas de audiência do momento de criação do Território Federal do Guaporé (em 1947), Baptista de Oliveira comenta a política nacional e local, distante mais de 3 mil quilômetros da então capital, Rio de Janeiro.

Foi glorioso para ele o momento de transição (registrado em ata de audiência). O juiz enalteceu o presidente Getulio Vargas e o governador Aluízio Ferreira. E sentiu aquele momento como “a libertação do povo que ficava livre politicamente de Mato Grosso”. Para ele, Mato Grosso era um empecilho para o desenvolvimento regional.

A autora lembra a instalação das comarcas de Santo Antonio do Rio Madeira, em 1912, e Guajará Mirim, em 1929; a criação do Território Federal do Guaporé, em 1947, e do Território Federal de Rondônia, em 1956.

E o poço profundo ao qual se refere estende-se pelas décadas de 40, 50 e 60, tempos de “um Poder Judiciário apagado”, com ações de pouca relevância social, econômica ou política. “A todo tempo foram nomeados promotores, advogados e servidores ad hoc (para determinada função)”.

Diante da pobreza de documentos desse período, Nilza observa uma transferência de poder, que passa a ser exercido pelo representante político do Estado. “Parece que a população não mais precisou do Judiciário, não mais cometeu crimes, ou teria então a região se despovoado, ficando o atendimento jurisdicional relegado a ações de execução fiscal, pedidos de retificação de nome e registros de nascimento”.

O desembargador aposentado Hélio Fonseca recorda que, depois de Alcântara, trabalharam em Guajará Mirim os juízes Paulino Amorim de Brito e José de Melo e Silva, até 1959. A comarca ficou sem juiz até 1967, época em que assumiu César Montenegro.

“A população daqui (Guajará) era tão pobre, não havia a inveja. Os grandes seringalistas, coitados, eram tão escravos da terra quanto os seringueiros, porque viviam ‘pendurados’ no Banco da Amazônia, lutando para receber financiamentos, e tinham que pagar juros, tomando prejuízos nos seringais que se quisessem vender, não conseguiam. É aquilo que Euclides da Cunha dizia: ‘o seringalista é um escravo da gleba’, igual nos tempos medievais; eles tinham aquele seringal, aquele império aparentemente gigantesco, mas não tinham base econômica e não conseguiam vender, porque era inconversível em moeda. Os seringueiros tinham consciência dessas dificuldades, sabiam que o padrão de vida dos seringalistas também era baixo, não possuíam riqueza, só tinham dinheiro quando recebiam o financiamento, depois passavam o resto do ano afogados em dívidas, esperando uma boa colheita de seringa que nunca correspondia às expectativas”, diz.

A saber que nos confins do Guaporé ainda há pessoas que nem certidão de nascimento possuem (!), podemos supor o quanto a estrada é longa para elas alcançarem a cidadania. De parte do ministro da Previdência Social, Amir Lando, essa ferida poderá cicatrizar-se num futuro muito próximo, com a aplicação de um projeto voltado para regiões de fronteira e do qual Rondônia será laboratório. No projeto “Previdência sem fronteira”, torna-se indispensável a participação do Judiciário, dos Cartórios e das prefeituras. Sem burocracia, mas com muita boa vontade.

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