Questão ambiental

Juiz anula licenças a portos da Hidrovia Paraguai-Paraná

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8 de setembro de 2004, 10h03

O Ibama, a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso e a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Pantanal/MS) estão proibidos de conceder licenças ambientais para portos da Hidrovia Paraguai-Paraná. As Fundações deram licenças a mais de cinco portos sob o fundamento de que eles são partes distintas da hidrovia.

O juiz federal Julier Sebastião da Silva, de Mato Grosso, anulou as licenças concedidas pelos órgãos. “Ora, não se pode imaginar uma hidrovia sem portos. Ou, contrariamente, os segundos sem a implantação da hidrovia. É como pensar um corpo sem cabeça e membros. Em resumo, a alegação é meramente fantasiosa. Basicamente não há como o projeto ser dividido dessa forma e, mais obviamente ainda, tem-se por impossível a segregação dos eventuais impactos ambientais da hidrovia dos seus portos, já que se está a tratar de uma mesma intervenção humana em um ecossistema extremamente sensível que é o Pantanal Mato-Grossense”, afirmou o juiz. Ainda cabe recurso.

Ele entendeu, também, que o Ibama deve “exigir um único Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA para a totalidade da Hidrovia Paraguai-Paraná e ainda a considerar a vontade das populações diretamente atingidas pela obra quanto à permissão para a sua instalação e operação”.

O funcionamento dos portos, no entanto, está garantido até decisão definitiva. O custo da hidrovia está estimado em US$ 1,3 bilhão.

Leia a sentença

PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL

SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MATO GROSSO

JUÍZO DA PRIMEIRA VARA

Sentença nº _____/2004/JSS/JF/1ªVara

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Reqte: Ministério Público Federal e outro

Reqto: IBAMA e outros

S E N T E N Ç A

Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA intentada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO em desfavor do INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS – IBAMA, FUNDAÇÃO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE – FEMA/MT, MACROLOGÍSTICA CONSULTORIA S/C, FUNDAÇÃO ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE – PANTANAL/MS, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DE MATO GROSSO, MINERAÇÃO CORUMBAENSE REUNIDA S/A, COMPANHIA DE CIMENTO PORTLAND ITAÚ, URUCUM MINERAÇÃO S/A e GRANEL QUÍMICA LTDA, todos devidamente qualificados nestes, no intuito de que seja determinado aos Primeiro , Segundo e Quarto Requeridos que se abstenham de conceder qualquer licença ambiental a empreendimentos, atividades e equipamentos isolados pertinentes à Hidrovia Paraguai-Paraná, incluindo-se o Porto de Morrinhos, no município de Cáceres/MT, compreendendo-se o trecho iniciado neste último atá a Foz do Rio Apa, Mato Grosso do Sul, na divisa do Brasil com o Paraguai, suspendendo-se e declarando-se a nulidade daquelas já concedidas e dos procedimentos administrativos que lhes deram origem e daqueles ainda em curso; bem como que seja reconhecida a competência administrativa do IBAMA para proceder o licenciamento ambiental da referida malha hidroviária e de seus vários componentes (portos, terminais portuários e outras intervenções), condenando-se a autarquia federal a exigir um único Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA para toda a mencionada edificação e ainda a considerar a vontade das populações diretamente atingidas pela obra quanto à permissão para a sua instalação e operação; tudo sob o fundamento de que a Hidrovia Paraguai-Paraná e seus vários elementos constitutivos devem ser licenciados pelo IBAMA, ora suplicado, mediante a confecção de um único estudo prévio de impacto ao meio ambiente pelos empreendedores, e não pelos órgãos ambientais dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Segundo os Requerentes, todo o processo administrativo necessário ao licenciamento para a implantação da Hidrovia Paraguai-Paraná é de competência federal, o que inclui a autorização para a construção do Porto de Morrinhos, em Cáceres/MT, e a operação dos demais terminais portuários localizados ao longo do trecho acima identificado, uma vez que o empreendimento, que ultrapassa os limites territoriais de mais de uma unidade federal e de vários países do cone sul americano, além de ser fruto de parceria internacional do Brasil concretizada no Acordo de Transporte Fluvial que culminou com a criação do Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná, deverá ter avaliado o seu potencial de dano ao meio ambiente em um único Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental – EIA-RIMA. Por isso, não poderiam as Fundações Estaduais de Meio Ambiente dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, usurpando competência do IBAMA, licenciar isoladamente um dos componentes do complexo hidroviário em implantação. Nesse contexto, recebeu a FEMA/MT ilegalmente pedido de licenciamento ambiental prévio do Porto de Morrinhos, em Cáceres/MT, formulado pela terceira Requerida, já que não tem competência para o ato administrativo e nem a unidade portuária poderia ser licenciada isoladamente do restante da hidrovia e seus demais componentes.


Sustentam também os Autores que já foram iniciadas intervenções no Rio Paraguai, no intuito de proporcionar a operação da referida hidrovia e melhorar-lhe a sua infra-estrutura física e portuária, podendo-se declinar obras de sinalização, balizamento, dragagens, alteração do curso dos rios, remoção de material rochoso, canalização, construção de estradas de acesso e edificação de portos no trecho entre o município de Cáceres/MT e a Foz do Rio Apa/MS, na fronteira brasileira. Estas ações, entretanto, causam impactos ao meio ambiente e sociais significativos, não tendo, até o momento, o IBAMA recebido qualquer pedido de licenciamento ambiental do empreendimento como um todo ou sequer de seus vários componentes.

Entendendo presentes os requisitos, requereram a concessão de medida liminar para suspender as licenças concedidas e procedimentos instaurados pelos entes estaduais e federal ilegalmente, determinando-se ainda que se abstenham da prática desses atos administrativos. No mérito, protestaram pela procedência do pedido inicial, condenando-se ainda os Requeridos nos ônus decorrentes da sucumbência. Juntaram os documentos de fls. 28/38.

Ouvidos os representantes judiciais dos entes estatais, restou a liminar deferida às fls. 63/69 e 99/102, parcialmente mantida pelo TRF – 1ª Região ( fls. 677/709).

Os Requeridos foram devidamente citados. O Estado de Mato Grosso, às fls. 109/128, suscitou preliminarmente a incompetência deste Juízo e, no mérito, asseverou não haver impedimento jurídico a que o licenciamento ambiental da hidrovia se faça por partes e pelos órgãos ambientais estaduais, sendo legal, portanto, o procedimento instaurado pela FEMA/MT para o Porto de Morrinhos, em Cáceres/MT. Verbera que a competência administrativa ambiental é concorrente entre União e Estados e que a edificação questionada não tem impacto nacional ou regional, o que fundamentaria a intervenção do IBAMA, devendo-se ainda serem respeitadas as licenças atualmente existentes, pugnando derradeiramente pela improcedência do pleito inicial e condenação dos Requerentes nas verbas de estilo.

Às fls. 241/245, a Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEMA/MT contesta o feito, argumentando que a Hidrovia Paraguai-Paraná e os portos, como o de Morrinhos, são empreendimentos e atividades distintos, estando no âmbito de sua competência administrativa o licenciamento ambiental dos terminais portuários localizados no território mato-grossense, conforme legislação e resolução do CONAMA específicas, razão pela qual roga pelo não acolhimento do pedido vestibular e pela imposição aos Autores dos ônus decorrentes da sucumbência.

A co-ré Macrologística Consultoria S/C Ltda ofertou a contestação de fls. 279/289, protestando, preambularmente, pelo reconhecimento de sua ilegitimidade passiva ad causam. Meritoriamente, afirma que o art. 10 da Lei nº 7.804/89 concede competência aos órgãos ambientais estaduais para o licenciamento do Porto de Morrinhos e demais componentes da hidrovia objeto deste feito, requerendo ainda a improcedência do pleito inicial e a incidência dos ônus processuais de estilo.

Já a Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS, às fls. 335/367, retoma a tese de incompetência do Juízo, suscita as preliminares de ilegitimidade ativa ad causam, nulidade da emenda à petição inicial que incluiu a contestante no pólo passivo da demanda e cerceamento de defesa. Na discussão substantiva reprisa o argumento de que os portos e a hidrovia estão sujeitos a licenciamentos distintos e que as licenças já concretizadas estão amparadas no conceito de ato jurídico perfeito e direito adquirido. Ao final, requer a improcedência do pedido vestibular e a aplicação dos consectários processuais respectivos.

A empresa Mineração Corumbaense Reunida S/A, por sua vez, em petição de fls. 537/566, assegura, como preliminar, ser inepta a inicial por terem os Autores formulado pedidos já contemplados na ação cautelar inominada preparatória a este feito, sendo assim incompatíveis os ritos em questão, e que da narração dos fatos não decorre a conclusão vertida na ação intentada, protestando ainda pelo reconhecimento de sua ilegitimidade passiva ad causam. Abordando a questão principal destes autos, sustenta inexistir a necessidade de que o licenciamento da hidrovia e de seus demais componentes (portos, terminais portuários e intervenções no rio e adjacências) se faça mediante um único EIA/RIMA. Alega que hidrovias e portos são atividades distintas e que inexistem danos ambientais proporcionados pelo empreendimento, razão suficiente para requerer a improcedência do pleito exordial.

A União Federal e o IBAMA, na peça contestatória de fls. 767/779, admitem que a competência para o licenciamento ambiental da Hidrovia Paraguai-Paraná e seus portos, empreendimentos, atividades e equipamentos , de fato, pertence à autarquia federal, inclusive quanto ao Porto de Morrinhos em Cáceres/MT. Contudo, dizem ser inviável a confecção de um único EIA/RIMA para a totalidade do complexo hidroviário e que as licenças concedidas para os serviços rotineiros de limpeza de canal e sinalização devem ser mantidas, questionando, por fim, a necessidade de que a vontade das populações locais atingidas pelo empreendimento seja considerada para a instalação e operação deste.


A empresa Granel Química, às fls. 868/876, assegura não ter legitimidade passiva ad causam e que o licenciamento de seu empreendimento portuário foi obtido regularmente.

Em contestação de fls. 1.218/1.242, a empresa Companhia de Cimento Portland Itaú sustenta ser tempestiva a sua defesa ante a inexistência do termo de juntada aos autos da carta precatória que a citou. Seguindo em sua defesa, invoca preliminarmente a ausência de interesse de agir por parte dos Autores ante a não demonstração do possível dano ambiental e ainda porque não fora identificado o agressor ao meio ambiente. No mérito, informa que o seu porto existe desde o ano de 1.995.

Finalmente, às fls. 1.257/1.282, a empresa Urucum Mineração S/A contesta a lide formulando as preliminares de nulidade da citação, cujo mandado não estava acompanhado das decisões liminares; de incompetência do Juízo; ilegitimidade ativa ad causam; de inépcia da petição inicial, que não conteria pedido; e ilegitimidade passiva ad causam. Substancialmente, repete os argumentos de que o seu porto é pre-existente à obra ora em debate, pertencendo ao órgão ambiental a competência administrativa para o seu licenciamento, e que hidrovia e portos são elementos distintos.

Impugnação das contestações às fls. 1.200/1.213, 1.403/1.417 e 1.420/1.426.

Após, os autos vieram-me conclusos.

Eis o relatório, consoante o qual, decido.

F U N D A M E N T A Ç Ã O

A solução da lide demanda apenas a análise de matéria de direito, prescindindo de produção probatória além daquelas já presentes nos autos, restando autorizado o seu julgamento antecipado, nos termos do art. 330, I, do CPC.

Há preliminares a serem dirimidas pelo Juízo e, desse modo, passo a analisá-las.

Desde logo, afasto a tese de incompetência do Juízo, uma vez que a lide tem no pólo ativo o Ministério Público Federal e, no passivo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, autarquia federal, e a União Federal, além do próprio objeto da demanda reportar-se a interesse desta última, qual seja, intervenção em rio de domínio público federal, atingindo mais de uma unidade federada, para atender projeto de índole nacional e internacional e ainda com repercussão ambiental em bem protegido diretamente pela Carta Política como patrimônio nacional. Portanto, impossível negar-se a competência da Justiça Federal ante a previsão do art. 109, I, da Constituição Federal.

De sua parte, quanto ao disposto no art. 2º da Lei nº 7.347/85, a sua devida interpretação e alcance foram dados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 228955/RS, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, cujo acórdão fora publicado no DJU do dia 14/02/2000, que atribuiu à Justiça Federal a competência para o julgamento de ações civis públicas e respectivas cautelares promovidas pelo Ministério Público Federal na defesa do patrimônio ambiental de interesse da União. Na questão, o artigo da lei ordinária deve ser compatibilizado com o texto constitucional acima destacado. Logo, sob essa ótica, também está materializada a titularidade jurisdicional da Justiça Federal para o processamento e julgamento deste feito.

Seguindo com a apreciação das defesas processuais, não acato a arguição de inépcia da inicial, em qualquer das modalidades formuladas. A conclusão da exordial guarda harmonia com a narrativa fática e as razões apresentadas na processo cautelar preparatório a esta ação civil pública podem perfeitamente subsidiar os pleitos formulados nesta lide. É bom que se registre que o processo cautelar tem natureza jurídica autônoma e independente em relação ao feito principal, bem como distinto objeto mediato e imediato.

De outra parte, evidenciado o interesse da Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS, que concedeu inúmeras licenças ambientais a empreendimentos encartados no trecho compreendido pela Hidrovia Paraguai-Paraná, legítimo foi o seu chamamento à lide mediante a emenda a inicial da ação e sua citação correspondente, não havendo qualquer nulidade nos atos processuais mencionados, restando também afastada essa defesa não meritória e descaraterizado o argumento de cerceamento de defesa.

Nego albergue também à alegação das empresas Companhia de Cimento Portland Itaú e Urucum Mineração S/A quanto à tempestividade de suas contestações. Conforme a certidão de fl. 854, verso, a carta precatória expedida para a citação das referidas Requeridas foi juntada aos autos na data de 16/07/2002, sendo que as peças contestatórias de fls. 1.218/1.242 e 1.257/1.282 foram protocoladas em Juízo, respectivamente, em 16/07/2003 e 18/08/2003. Flagrante, destarte, a intempestividade das defesas colacionadas aos autos. A suposta ausência de cópias das decisões liminares não restou demonstrada e, mesmo se existisse, não autoriza o reconhecimento de nulidade no ato citatório, já que o mandado respectivo observou todos os parâmetros legais, estando ainda escoltado pela petição inicial deste feito e sua emenda. Assim, decreto a revelia das Suplicadas em questão, deixando de reconhecer seus efeitos ante a pluralidade de réus vertida neste processo, a teor do disposto nos artigos 319 e 320, I, do CPC.


As várias preliminares de ilegitimidade ad causam tanto ativa quanto passiva, por sua vez, estão desamparadas de suporte jurídico. Tratando-se de dano ambiental em ecossistema legalmente protegido e de interesse da União, de omissão atribuída à autarquia federal e de bem público de domínio federal, obviamente que a Constituição Federal e legislação ordinária atribuem legitimidade ativa ad causam ao Ministério Público Federal para demandar em juízo na proteção dos interesses difusos manifestos no caso.

De outro passo, a empresa Macrologística Consultoria S/C Ltda foi quem requereu à Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEMA a instauração do procedimento administrativo para o licenciamento ambiental do Porto de Morrinhos, em Cáceres/MT, sendo patente o seu interesse e legitimidade ad causam nesta lide. Já a Requerida Mineração Corumbaense Reunida S/A teceu uma série de motivos a ensejar a sua participação na demanda, dentre estes o fato de ser titular de terminal portuário, integrante da hidrovia questionada nestes e licenciado pelo órgão ambiental do Estado de Mato Grosso do Sul. O mesmo deve-se dizer quanto à empresa Granel Química Ltda. Assim, restam indeferidas as preliminares assim formuladas.

Passo ao mérito da lide.

O fato vertido nesta demanda refere-se à competência administrativa para o licenciamento da Hidrovia Paraguai-Paraná e de seus componentes, incluindo os empreendimentos, atividades e equipamentos, consistentes em portos (entre eles, Morrinhos no município de Cáceres/MT), terminais portuários, estradas de acesso, dragagens, sinalização, tipos de transportes permitidos etc.

Neste tópico, há que se verificar se o Porto de Morrinhos, no município de Cáceres/MT, poderia ser licenciado pela Fundação Estadual do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso – FEMA/MT e se as unidades portuárias localizadas no Estado do Mato Grosso do Sul poderiam ter obtido licenças ambientais da Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS para operarem. Alegam os Autores que os atos administrativos praticados pelos órgãos ambientais estaduais são nulos de pleno direito, porquanto a competência para praticá-los pertence ao IBAMA, órgão responsável pelo licenciamento do projeto denominado Hidrovia Paraguai-Paraná.

Ainda, superado o primeiro percalço acima, sustentam os Requerentes que a hidrovia em xeque e seus componentes devem ser objeto de licenciamento ambiental para a totalidade do projeto, fundamentando-se este, conseqüentemente, também em um único EIA/RIMA, compreendendo todos os aspectos relacionados ao potencial de dano ao meio ambiente e mais notadamente ao Pantanal Mato-Grossense.

Por fim, a última controvérsia refere-se à necessidade de que a vontade das populações locais atingidas pelo empreendimento e seus desdobramentos seja considerada para fins de instalação e operação da dita hidrovia.

Ao que se nota, até o presente momento, a polêmica quanto à implantação da Hidrovia Paraguai-Paraná ainda não versa concretamente sobre o seu mérito, mas sim instala-se no tocante à formalidade inicial para o seu licenciamento. Ou seja, esta demanda tem por objeto apenas o aspecto formal do procedimento administrativo necessário ao licenciamento ambiental da obra, não contemplando as razões favoráveis ou contrárias à hidrovia pantaneira. O esclarecimento é oportuno na medida em que não está em discussão se a hidrovia deve ou não ser concretizada, mas sim quem poderá licenciá-la e de que forma.

O empreendimento hidroviário em questão tem sua origem na criação pelos Países da Bacia do Prata, contando com a participação brasileira, do Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná, sendo delegada a este a atribuição de órgão executivo do projeto. Como se vê, o complexo hidroviário é de interesse internacional, principalmente por envolver vários países da América do Sul, cortando o território destes. De outro giro, no território nacional, a hidrovia afetará os interesses de mais de um Estado, como exemplos, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O projeto estende as suas ramificações por mais de uma unidade federativa e deve ser implementado em um rio federal. Por fim, o projeto governamental insere-se em ecossistema de interesse nacional e diretamente tutelado pelo art. 225, § 4º, da Constituição Federal, no caso, o Pantanal Mato-Grossense.

Os aspectos destacados tornam lídima a responsabilidade da União Federal na implantação do projeto hidroviário, incluindo-se nesta a necessidade de que o seu órgão ambiental, ora demandado, proceda o licenciamento do empreendimento, de forma global, de acordo com os artigos 225, IV, da Constituição Federal; 10, § 4º, da Lei nº 6.938/81; e 5º, incisos III e IV, da Resolução CONAMA nº 01/89. A competência para a prática do ato administrativo do licenciamento, sem qualquer dúvida, é do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA ante o impacto internacional e nacional da Hidrovia Paraguai-Paraná, notadamente por impactar um bem público da União, que é o Rio Paraguai.


Decorre daí que o EIA-RIMA respectivo deve reportar-se à totalidade do empreendimento, contemplando a parte viária propriamente dita, balizamentos, construção de portos, afetação das populações locais, fauna, flora, aspectos climáticos e geográficos etc. Não se pode desconhecer o sinergismo presente no que se refere aos eventuais danos ambientais decorrentes da implantação da hidrovia. Os danos não podem ser analisados individual e isoladamente, como se existisse uma barreira a limitar a ocorrência dos mesmos.

Os possíveis prejuízos ao ecossistema são indivisíveis material e juridicamente. Impossível assim o fatiamento do projeto, já que o impacto deste deve ser analisado e relatado em um único EIA-RIMA, documento este essencial do ponto de vista da legislação ambiental para a viabilização da vontade administrativa de edificar a obra questionada, o qual deve ser apresentado ao IBAMA dentro do procedimento administrativo de licenciamento federal.

Mesmo se admitindo, em tese, a possibilidade de licenciamento solitário para construção do Porto de Morrinhos e de outros ao longo do trecho compreendido pela hidrovia, o processo autorizativo continuaria albergado sob a esfera de competência federal, ante a imperatividade das normas já reportadas nesta peça processual.

Ressalte-se que o Ibama, em sua contestação, reconheceu expressamente a sua competência para a licenciamento da totalidade da hidrovia, informando, inclusive, já ter notificado às demais Suplicadas para que cessassem o prosseguimento dos atos administrativos questionados nesta lide.

Não poderia, portanto, a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso – FEMA/MT ter instaurado processo de licenciamento de partes isoladas da hidrovia transnacional, tanto por não ter competência administrativa para a prática de referido ato quanto porque o projeto é insuscetível de parcelamento de seus vários componentes. Destarte, o Porto de Morrinhos é parte da Hidrovia Paraguai-Paraná e o seu licenciamento deve ser deferido pelo IBAMA como parte integrante daquela, como já assentado acima.

O mesmo se reserva aos licenciamentos patrocinados pela Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS, os quais encontram-se maculados pelo pecado da incompetência administrativa do órgão estadual para a consecução daqueles, bem como porque referem-se a empreendimentos e atividades isolados da hidrovia, o que não se admite ante o princípio do sinergismo presente nesse tipo de intervenção humana danosa ao meio ambiente.

A assertiva de que a hidrovia e seus portos são elementos distintos não resiste à própria justificativa apresentada pelos Requeridos para a necessidade de concretização do projeto questionado nesta lide. Ora, não se pode imaginar uma hidrovia sem portos. Ou, contrariamente, os segundos sem a implantação da hidrovia. É como pensar um corpo sem cabeça e membros. Em resumo, a alegação é meramente fantasiosa. Basicamente não há como o projeto ser dividido dessa forma e, mais obviamente ainda, tem-se por impossível a segregação dos eventuais impactos ambientais da hidrovia dos seus portos, já que se está a tratar de uma mesma intervenção humana em um ecossistema extremamente sensível que é o Pantanal Mato-Grossense.

São nulos, portanto, os licenciamentos e processos administrativos patrocinados pela Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEMA e pela Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS, já que ausente a devida competência para a prática dos referidos atos. Da mesma maneira, apresentam-se descomprometidas com a legalidade e sofrem também de nulidade as licenças ambientais concedidas pelo IBAMA a empreendimentos, atividades e/ou equipamentos isolados da Hidrovia Paraguai-Paraná, uma vez que esta deve ser licenciada globalmente a partir de um único EIA-RIMA. Excepcionam-se a este comando apenas as atividades tendentes a garantir a navegabilidade atual do Rio Paraguai, como dragagens rotineiras, limpeza de canais e sinalizações.

Tratando-se de projeto com potencial de dano ambiental e social a abranger as comunidades locais assentadas ao longo do trecho compreendido entre o município de Cáceres/MT e a Foz do Rio Apa/MS, na fronteira com o Paraguai, reserva-lhes a Constituição Federal, por seu art. 225, IV e § 4º, o direito de terem suas vontades consideradas para o fim de licenciamento da hidrovia que cortará o Pantanal Mato-Grossense. A intenção constitucional materializou-se nos dispositivos da Lei nº 7.804/89 e resoluções do CONAMA. Logo, é imprescindível que a vontade das populações atingidas pela implantação da hidrovia seja considerada quando do seu licenciamento ambiental, inclusive no EIA-RIMA a ser confeccionado pelos empreendedores.

Derradeiramente, devo registrar que os pedidos de suspensão dos processos e licenciamentos realizados em desconformidade com esta sentença já foram atendidos pela decisão que concedeu a liminar requestada na peça vestibular deste feito. A suspensão permanecerá até o trânsito em julgado desta, nos moldes em que confirmada pela Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.


D I S P O S I T I V O

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial, ratificando a liminar anteriormente deferida, e determino aos Primeiro , Segundo e Quarto Requeridos que se abstenham de conceder qualquer licença ambiental a empreendimentos, atividades e equipamentos isolados pertinentes à Hidrovia Paraguai-Paraná, incluindo-se o Porto de Morrinhos, no município de Cáceres/MT, compreendendo-se o trecho iniciado neste último até a Foz do Rio Apa, Mato Grosso do Sul, na divisa do Brasil com o Paraguai, restando suspensas e declarada a nulidade daquelas já concedidas e dos procedimentos administrativos que lhes deram origem e daqueles ainda em curso, dentre estes os portos licenciados pela Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEMA e pela Fundação Estadual de Meio Ambiente – Pantanal/MS e ainda as atividades com licença do Ibama que não tenham por objeto a manutenção do atual nível de navegabilidade do Rio Paraguai, as dragagens de rotina e a sinalização respectiva.

Declaro também a competência administrativa do IBAMA para proceder o licenciamento ambiental da referida malha hidroviária e de seus vários componentes (portos, terminais portuários e demais intervenções), condenando-o a exigir um único Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA para a totalidade da Hidrovia Paraguai-Paraná e ainda a considerar a vontade das populações diretamente atingidas pela obra quanto à permissão para a sua instalação e operação.

Condeno os Requeridos no pagamento de honorários advocatícios, que arbitro em 20% do valor atribuído à causa, cabendo ainda às empresas privadas pagar proporcionalmente o valor das custas processuais, excluindo-se as parcelas pertinentes aos entes estatais estaduais e federais que estão isentos desse último ônus processual, tudo em consonância com o artigo 20, § 4º, do CPC.

Os portos e terminais portuários descritos às fls. 91, 631/634 e no item II do despacho de fls. 574/578 deverão cessar suas atividades com o trânsito em julgado desta. Até lá, poderão funcionar por força do acórdão de fls. 677/709, não podendo, entretanto, expandir suas operações, observando ainda as prescrições oriundas do TRF – 1ª Região no tocante a não utilização de “grandes embarcações, grandes comboios de chatas”, sendo que “as embarcações não poderão usar as margens do Rio Paraguai como elemento de apoio à manobra; e que deverão empregar propulsores azimutais nos empurradores’ e elementos de produção de empuxo lateral avante do comboio, a fim de não danificarem as margens dos rios, nas curvas”, sob pena de terem interrompido o respectivo funcionamento. Intime-se o Ibama a verificar, no prazo de 20 dias, se estas prescrições estão sendo observadas.

Resta cominada, desde logo, a multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para a hipótese de descumprimento desta.

Sentença sujeita ao reexame necessário.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Cuiabá, 02 de setembro de 2.004.

JULIER SEBASTIÃO DA SILVA

Juiz Federal

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