O feitiço da mulata

Justiça manda penhorar marca JB para pagar ex-dançarina do Sargentelli

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2 de setembro de 2004, 22h00

A Justiça autorizou a penhora da marca “Jornal do Brasil” e o bloqueio de verba publicitária das Casas Bahia para garantir a execução da sentença do processo movido contra o diário por Adele Fátima, ex-integrante do grupo de mulatas, do célebre sambista Osvaldo Sargentelli.

O valor pleiteado pela autora foi de 5 mil salários mínimos por danos morais e materiais, mas a decisão de segunda instância reconheceu apenas o dano moral e arbitrou a indenização em 300 salários mínimos. O JB não pode mais recorrer da sentença, pois o processo já está em fase de execução.

A ex-dançarina impetrou a ação motivada pela entrevista publicada na edição de 8 de outubro de 1997, sob o título “O polêmico requebrado – Dançarinas de samba ganham dia e festa, mas perdem espaço nas casas noturnas”.

À época, Adele iniciava a constituição de uma empresa de produções artísticas e alegou que a publicação de informações inverídicas acarretou prejuízos financeiros decorrentes da dificuldade em fechar negócios. Afirmou ainda que, a partir da publicação, teria passado a receber “somente propostas indecorosas”.

A artista disse ter sido ofendida pela divulgação da falsa declaração, segundo a qual teria dito à repórter que, em virtude de sua atividade como produtora de eventos, “arrumava de tudo, garçom, cantor, segurança e “michê”, gíria utilizada para designar a prostituição ou o preço de serviços pago a prostitutas.

A ex-dançarina, hoje com 50 anos, foi lançada na carreira artística por Osvaldo Sargentelli. Morto em 2002, o empresário ficou conhecido no Brasil e no exterior devido ao grande sucesso dos shows que promovia com dançarinas mulatas em suas boates: Sambão, Sucata e Oba-Oba. Adele, uma de suas preferidas, alcançou fama nacional e internacional. É lembrada também pela atuação em produções picantes do cinema brasileiro na década de 70.

Marca

A marca “Jornal do Brasil”, conforme noticiado pelo jornal O Globo, havia também sido penhorada, em fevereiro, por autorização do juiz Roberto da Silva Fragale Filho, da 33ª Vara do Trabalho, como garantia de quitação de uma dívida trabalhista.

A decisão que favorece Adele foi proferida pelo juiz Oswaldo Henrique Freixinho, da 29ª Vara Cível do Rio de Janeiro. O magistrado expediu ofício ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) determinando a penhora da marca.

O advogado da artista, José Antônio de Souza Batista, inicialmente, pediu o bloqueio da receita da anunciante Patrimóvel, que se negou a cumprir a ordem judicial. A segunda alternativa foi garantir a execução pedindo os créditos das Casas Bahia. Com a decisão, as Casas Bahia deverá depositar a quantia correspondente em juízo.

Em 2002, o JB impetrou Agravo de Instrumento no STJ contra decisão que negou um Recurso Especial. O relator do processo, Ministro Aldir Passarinho Jr., entendeu que “a jurisprudência do STJ não admite a tarifação da indenização por danos morais, com fundamento na Lei de Imprensa”.

O JB tem capital social registrado no valor de R$ 21 milhões e enfrenta grave crise financeira com diversas dívidas pendentes no mercado — são mais de 160 protestos registrados em cartórios. Além de uma avalanche de ações trabalhistas movidas por jornalistas e colaboradores, o diário responde também por uma ação de execução na 12ª Vara Cível e outras na Justiça Federal.

A indenização deverá ser paga pela sua sucessora, a holding CBM (Cia Brasileira de Multimídia). Com um capital social de R$ 46 milhões, a associação agrega a JB Comercial, Agência Multimídia, Editora JB, JB Online, Phidias S/A, a Boavista e a Docas Investimentos. Segundo informações do advogado da autora, a CBM aluga a marca “Jornal do Brasil”.

Processo nº 1997.001.145080-8

Leia a transcrição da reportagem que originou o processo

O polêmico requebrado da mulata

Dançarinas de samba ganham dia e festa, mas perdem espaço nas casas noturnas.

ANABELA PAIVA

Como aconteceu com os índios, que ganharam espaço no calendário oficial à medida em que perderam terreno na sociedade, o 7 de outubro, instituído Dia Estadual da Mulata do Samba pelo governo do Rio e comemorado hoje numa festa no Asa Branca, chega para oficializar que as mulatas já não estão no mapa da cidade. Seus habitats naturais – casas como o Oba-Oba e o Scala – fecharam. Só no segundo andar da churrascaria Plataforma, sobre saltos idem, elas ainda deixam caídos os queixos dos turistas. Lutando para não perder o rebolado num mercado anêmico, mulatas, seus admiradores e empresários da noite se dividiram quanto à instituição de um dia homenageando as mulatas que ganham a vida dançando samba. “É um caminho para a profissionalização”, opinou a bailarina Luciana Sargentelli. “Acho discriminatório. É como se fizessem um dia só para o cantor de rock”, compara Jorge Perlingeiro, apresentador do programa Samba de Primeira, exibido na TV Bandeirantes.

Nem no programa do Jorge a mulata ainda é a tal. Transferido para as madrugadas de sexta-feira, Samba de Primeira deixou de exibir dançarinas. “Optei por um programa de variedades, que atrai um público mais amplo”, justifica, contando que há meses não faz uma apresentação do show Samba de Primeira. “Pagam muito pouco”. Luciana Sargentelli que o diga. Para apresentar seu show, em que samba, faz concursos de cantada e ensina a sambar ao som de playback, ela cobra cerca de R$ 1 mil. Com acompanhamento de músicos e outras mulatas, o valor sobe para R$ 3 mil. “Às vezes vou por menos. Não tem muita opção”, admite a bailarina de 27 anos, que tenta a carreira de cantora do conjunto de pagode Sambatom, formado só por mulatas. Nada de biquíni de paetês. “Usamos uma roupa moderninha, nada muito nua. Tipo “Spice Girls”, garante Luciana, lembrando o conjunto inglês.

No show da Plataforma, as dançarinas ganham apenas R$ 350 por mês. “As mais bonitas vão trabalhar fora, fazer até quatro apresentações por dia para ganhar US$ 2 mil”, explica Alberico, que contabiliza 30 companhias de shows de mulatas atuando na Europa, no Japão e nos EUA. Um caminho que o pai de Luciana, Oswaldo Sargentelli, conhece de cor e continua a percorrer. Sargentelli até aprova o Dia da Mulata do Samba. Só lamenta não ter sido convidado a participar: “Estou marginalizado, não sabem mais que eu existo”, reclamou. Afinal, há pelo menos 15 anos o criador do Oba-Oba instituiu o seu aniversário, 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, como Dia Nacional da Mulata. “Ele reunia todas nós, de branco, para ir à praia jogar flores para Nossa Senhora”, lembra a lendária Adele Fátima, uma das mais belas dançarinas que integrou o elenco do Oba-Oba, hoje dona de uma empresa de produção de festas (“Arrumo tudo, garçom, cantor, segurança, michê”).

Hoje as mulatas não são como Adele, explica Alberico Campana, dono da Plataforma: “Elas não têm mais aquelas coxonas. São mais magras. A mulata do Lan acabou”, garante, referindo-se ao chargista do JORNAL DO BRASIL, que fez da mulata um dos seus temas principais. Lan achou “completamente estúpida”’ a idéia. “Dia da mulata é todo dia”’, diz o argentino, que vê na mestiça um símbolo da cidade. Sua musa Adele a princípio gostou da data oficial. “Deve-se festejar o que tem valor, e mulata é patrimônio nacional porque traz divisas”, disse, orgulhosa de ter sido a primeira a fazer comercial e filme de James Bond. Mas, quando percebeu que o nome se referia às dançarinas de samba, fechou a cara. “A profissão mulata nunca existiu. Existe cantora, atriz e bailarina. Mulata é apelido que português deu para a mula e que a gente aceita porque mídia é mídia”.

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