Questão de independência

Magistratura brasileira precisa de mais independência

Autor

  • Luiz Mário de Góes Moutinho

    é juiz em Recife membro da Associação Juízes para a Democracia. Professor de Direito do Consumidor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco e diretor regional do Instituto Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor.

28 de outubro de 2004, 13h37

Recentemente tivemos a visita do relator da ONU para independência dos juízes e advogados. Tenho percebido que o inimigo da independência dos juízes muitas vezes são os próprios magistrados. É o que demonstraremos no presente texto. Michel Foucault, em uma de suas concorridas conferências, analisou a estrutura para o estabelecimento da verdade na tragédia Grega Édipo Rei, de Sófocles.

Em resumo, o filósofo francês contemporâneo afirma que a verdade dos fatos não é monolítica, é dividida em partes e essas partes são aprisionadas por pessoas, só sendo revelada quando alguém consegue reunir essas frações.

No curso da história as personagens vão se encontrando e a verdade é construída através de testemunhos. Foucault divide as personagens em três grupos: o primeiro formado pelo Deus e o adivinho, o segundo por Édipo e Jocasta e o terceiro pelos pastores escravos.

O discurso do Deus e do adivinho é predito, profético, é todo posto no futuro, assim como a fala de Édipo e Jocasta. A verdade do escravo é toda no passado. São testemunhos do que foi visto, presenciado.

A história de Édipo só é revelada para ele quando a verdade dos Deuses se comunica, se encontra com a verdade testemunhada pelos escravos. Nesse instante Édipo, o Rei, cai em desgraça.Édipo, que nada sabia e tudo podia, agora não pode mais, apesar de tudo saber.

Interessante é a conclusão de Foucault. A verdade e o testemunho de um fato presenciado e narrado por um escravo que não tinha poder coloca em cheque e destrona o Rei que nada sabia, mas tudo podia. Assim como o filho que matou o pai, a verdade é que os magistrados diuturnamente matam a instituição da qual fazem parte. Essa é a verdade que quero realçar.

Para tanto trago depoimentos de Magistrados que um dia foram vítimas dessas práticas atentatórias, além de meu próprio testemunho.Essas falas, como a dos escravos, são postas no passado e todas elas são de pessoas que tudo sabiam mas nada podiam fazer, a não ser resistir quixotescamente. Hoje alguns daqueles ‘escravos’ ocupam a cadeira do Rei, sabem de tudo e podem tudo, porém, ao invés de libertarem, passaram a escravizar os mais novos.

A reunião dos fragmentos de verdades profetizadas pelos Deuses constituintes e legisladores internacionais e os testemunhos de magistrados revela que muitas vezes os juízes são os algozes de sua própria independência. Essa constatação é parte da explicação da opinião negativa que os jurisdicionados têm sobre os seus magistrados.

Mão o que vem a ser a independência do Magistrado? Na linguagem comum e jurídica independência significa: o estado de quem está livre de qualquer subordinação; a condição daquele que tem autonomia e liberdade ou do que rejeita qualquer sujeição; a restituição ao estado livre; autonomia; libertação.

A independência de que aqui trato diz respeito à faculdade de os magistrados ditarem suas decisões. “Seguirem apenas as normas jurídicas e os ditames de sua convicção pessoal, não se sujeitando a qualquer autoridade”.(1)

A Declaração Universal dos Direitos do Homem constitui um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. Nela está profetizada que: “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja eqüitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.(2)

Na mesma linha o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos também profetiza: “Todas as pessoas são iguais diante dos tribunais e cortes de justiça. Toda pessoa terá direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na defesa de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela e para a determinação de seus direitos ou obrigações de caráter civil”.

Na Constituição Federal de 1988 não é diferente: “Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, considerando-se como tal juiz imparcial e independente”.

Antes de constituir um Direito da Magistratura, do Magistrado ou do Poder Judiciário, como visto, a independência de que trato é um Direito Universal de todos os povos, de todas as sociedades civilizadas. É, em verdade, um dever de todo magistrado defender sua independência.

O Direito é um mundo criado pela inteligência humana para regular a vida em sociedade no presente e para o futuro. É um mundo ideal que nem sempre se efetiva.


Todos os operadores do Direito lutam, ou deveriam lutar, para que as proféticas palavras da Lei se tornassem realidade, se concretizassem, saíssem do papel e fossem vividas plenamente pelos sujeitos a quem se dirigem. Nem sempre é assim.

À independência do Poder Judiciário e da Magistratura que o integra, existem regramentos normativos constitucionais e infraconstitucionais que anunciam esse Direito da sociedade brasileira.

No plano internacional, não é diferente. Normas jurídicas principiológicas predizem a independência da Magistratura, como um direito e uma garantia universal.

Pincei algumas dessas regras, começando pelos diplomas internacionais para, em seguida, apresentar as regras pátrias. No Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Milão, no ano de 1985, ficou dito:

A independência da magistratura deve ser garantida pelo Estado e consagrada na Constituição e ou na legislação nacional, constituindo dever de todas as instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a independência da magistratura.

Os juízes devem decidir todos os casos que lhes são submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo.

Não deve haver quaisquer interferências indevidas ou injustificadas no processo judicial. Os magistrados têm o direito e o dever de garantir que os procedimentos judiciais sejam conduzidos em conformidade com a lei e que os direitos das partes sejam respeitados.

O mandato dos juízes, a sua independência, segurança, remuneração adequada, condições de serviço, pensões e jubilação serão adequadamente garantidos pela lei, constituindo a inamovibilidade dos juízes, quer sejam nomeados ou eleitos, garantia até que atinjam a idade da jubilação obrigatória ou expire o seu mandato.

A promoção dos juízes deve basear-se em fatores objetivos, especialmente na capacidade profissional, na integridade e na experiência.

Os magistrados gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, de crença, de associação e de reunião; devem se comportar sempre de forma a preservar a dignidade do seu cargo e a imparcialidade e a independência da magistratura.

Os juízes gozam do direito de constituirem ou de se filiarem em associações de juízes, ou outras organizações, para defenderem os seus interesses, promoverem a sua formação profissional e protegerem a independência da magistratura.

A Constituição Cidadã de 1988 alinha-se, na essência, com os princípios internacionalmente consagrados. No texto constitucional existe um conjunto de regras que formalmente garantem a independência do Poder Judiciário e da Magistratura. Destaco primeiro alguns dispositivos que revelam a independência do Poder:

A decretação de intervenção dependerá de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário. É vedado ao Presidente da República adotar medidas provisórias sobre matéria relativa à organização do Poder Judiciário.

As leis delegadas elaboradas pelo Presidente da República, cuja delegação deverá ser solicitada ao Congresso Nacional, também não podem tratar da organização do Poder Judiciário.

É crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o livre exercício do Poder Judiciário.

Ao Poder Judiciário é assegurada a autonomia administrativa e financeira, competindo-lhe: Eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados; prover os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição; propor a criação de novas varas judiciárias; prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos os cargos necessários à administração da Justiça; conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados.

Propor ao Poder Legislativo respectivo: a alteração do número de membros dos tribunais inferiores; a criação e a extinção de cargos e a fixação de subsídios de seus membros e dos juízes que lhes forem vinculados; a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares; a criação ou extinção dos tribunais inferiores; a alteração da organização e da divisão judiciárias. É do Supremo Tribunal Federal a iniciativa de Lei Complementar instituidora do Estatuto da Magistratura.


A independência da Instituição formalmente garantida só seria alcançada se houvesse meios para garantir a independência dos homens que a integram. Não existe Instituição livre, se livres não forem os seus talentos humanos.

O texto da Lei Maior, seguindo essa premissa, traz mecanismos legais garantidores da independência do Juiz para protegê-lo de pressões internas e ou externas. Destaco algumas normas:

Ingresso na carreira, através de concurso público de provas e títulos, obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação; promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento, sendo obrigatória a Promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento; promoção somente depois de dois anos de exercício na entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o lugar vago; aferição do merecimento pelos critérios da presteza e segurança no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento; a recusa do juiz mais antigo somente pelo voto de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio, repetindo-se a votação até fixar-se a indicação; acesso aos tribunais de segundo grau por antigüidade e merecimento, alternadamente; cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento do Magistrado como requisitos para ingresso e promoção na carreira; os vencimentos previamente escalonados; aposentadoria com proventos integrais; remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, somente por prática de ato de indisciplina, por voto de dois terços do respectivo tribunal, assegurada ampla defesa; decisões administrativas disciplinares contra os juízes motivadas e tomadas pelo voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal; garantias da vitaliciedade; da inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, por voto de dois terços do Tribunal, garantida a ampla defesa, assim como, garantia da irredutibilidade de subsídio.

Há na Constituição Federal algumas regras que no meu entender distanciam-se do princípio da independência e da imparcialidade do julgador.

Penso que o processo de escolha dos ministros da Suprema Corte e dos Tribunais Superiores poderia ser aperfeiçoado, principalmente, no que tange à transparência. A inadequação revela-se, por exemplo, todas as vezes que nos referimos a um membro do STF como sendo ministro do Presidente da República que o nomeou: aquele ministro é de Sarney; aquele outro é de Itamar; o outro foi de Collor; aqueles são de Fernando Henrique.

Outra regra que no meu entender é resquício da histórica dependência do Judiciário aos outros Poderes da República são as cadeiras do quinto constitucional. O processo de escolha padece do mesmo vício de transparência já referido. Forças políticas interferem desde a formação da lista na Ordem dos Advogados do Brasil e na Procuradoria, a depender da cadeira ser destinada a Advogado ou ao Ministério Público. Não basta ser imparcial. É imprescindível que também se pareça imparcial.

A sociedade brasileira efetivamente não acredita na imparcialidade do julgador que passa por todo esse processo de escolha, mormente naquelas decisões que podem atentar contra o imediato interesse da coletividade, quando em confronto com os interesses do Governo e ou de toda e qualquer outra força que tenha contribuído para a sua nomeação de julgador.

Apesar das regras definidoras de direitos e garantias da independência do Magistrado, o fato é que os testemunhos do passa revelam uma cultura de subserviência, de quebra desse direito da sociedade, por parte dos próprios integrantes da Magistratura.

Para construir a verdade por inteiro precisamos reunir à verdade passada, retratada nos testemunhos de alguns juízes, à verdade das normas, assim como aconteceu na tragédia grega do Rei Édipo, quando a verdade profética do Deus e do adivinho encontrou a verdade passada testemunhada pelos escravos e construiu toda a história do filho que matou o próprio pai.

Lanço mão do depoimento público de alguns Magistrados que retrataram a verdade passada de dependência por eles vivida. As normas internacionais recomendam a adoção de critérios objetivos na promoção de Magistrados. A promoção dos juízes (movimentação vertical na carreira) se faz alternadamente pelo critério da antiguidade e do merecimento.

A impessoal administração deve nortear-se pelos critérios da presteza e segurança no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento. É o que diz o texto constitucional, mas não é o que acontece na prática.

Certa vez um Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco confessou durante um sessão na qual se discutia a constitucionalidade da remoção de juízes pela alternância dos critérios de merecimento e antiguidade: “Entendo eu que se o critério da antigüidade não é legal ou constitucional, muito menos é, na prática, o critério de merecimento. Não se aplica no Tribunal o critério de merecimento. Qualquer um pode perguntar: qual foi o merecimento de “A”, “B” ou “C”? Ninguém sabe dizer. Então não está se aplicando o critério de merecimento. A Lei não fala critério de amizade, a Lei não fala em critério disso ou daquilo, fala em critério de merecimento, e para aplicar o critério de merecimento precisava ter critério de avaliação. Qual é o merecimento, em que consiste esse merecimento? Como ninguém sabe dizer nós não estamos aplicando critério de merecimento nenhum. Nenhum. É uma enganação. Não há nenhum critério, deixa-se à cabeça de cada um, deixa-se a critério da amizade, deixa-se a critério de políticas interna corporis, ou até, externa corporis…”


A explicitude do testemunho dispensa maiores digressões. Naquela rica sessão, por mim testemunhada, gravada e perpetuada em notas taquigráficas, vários Desembargadores relataram suas experiências pessoais, que bem demonstram qual é a verdadeira independência da Magistratura.

Eis os testemunhos de tempos passados, vividos por oprimidos juízes e agora relatados na condição de Desembargadores. Assim se pronunciou outro Magistrado da segunda instância: “Eu quero contar uma história real para que todos nós entendamos o que é o princípio da conveniência aqui no Tribunal, ontem, hoje e tenho a tristeza de saber que amanhã será do mesmo jeito. A conveniência se dá aqui da seguinte forma: eu era juiz da comarca de Exu, juntamente com o Desembargador …., que era juiz de Riacho das Almas e outro colega nosso de turma que faleceu em Vitória, …., que era juiz também numa cidade do alto Araripe. Eu pedi a remoção para Riacho das Almas juntamente com o Desembargador … e pedi também para São João, juntamente com o Juiz hoje falecido…. E eu fui chamado na Presidência, na época o Desembargador …., e ele me disse com aquele jeito muito peculiar de falar – meu jovem, eu quero ajudá-lo – ô Desembargador! Fico muito sensibilizado de ser chamado para isso, o que é que Vossa Excelência quer fazer por mim? – e ele disse – eu quero que você desista de Riacho das Almas e de São João porque é da minha conveniência trazer Dr. …. para Riacho das Almas e o juiz … para São João. E eu disse a ele que não desistiria e ele fizesse o que bem entendesse. Conclusão, é que nunca mais tive uma remoção, a não ser para Palmerina porque era o único inscrito”. Outro significativo testemunho foi prestado por mais um membro da Corte pernambucana:

“Eu era juiz. São 36 anos de magistrado – conveniência da administração e interesse público eu tenho muitos exemplos que não devo citá-los, pelo menos um, permitam-me. Juiz da comarca de Exu, por coincidência a mesma do Desembargador …. – requeri remoção para 7 comarcas. Essa conveniência da administração, esse interesse público eu não vi, eu vi sim conveniência que não é da administração. Foi conveniência para favorecimento de certos juízes. Vi também não interesse público, mas interesse particular, interesse daqueles que aprenderam a andar em corredores, a abrir portas de gabinetes, então não havendo proibição eu não vejo nenhum mal em se estabelecer critérios para remoção. Se aquele juiz, o mais antigo no momento, não serve para determinada vara nós temos a forma de recusar sua remoção, mas que a injustiça não continue a ser feita…”. Outros fatos que revelam a cultura que fere a independência dos juízes.

No Mato Grosso, por exemplo, é possível modificar a competência de uma vara por simples resolução do TJ. O Superior Tribunal entendeu que isso era absolutamente constitucional.(3)

Discordo frontalmente do entendimento da Corte Superior. Alinho-me ao entendimento esposado pelo voto vencido do Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO e chamo a atenção para a constatação por ele feita publicamente. Disse sua Excelência:

“Sr. Presidente, votei no sentido da inconstitucionalidade do texto da Lei nº 4.964/85, do Estado de Mato Grosso, cujo art. 58 estabelece: “Nas comarcas de mais de uma vara, a competência será determinada pela resolução do Tribunal Pleno”. O texto afigura-se-me muito flexível, porquanto, por meio de resolução, o Tribunal pode suprimir processos que estão distribuídos a um determinado magistrado, violando, pela via direta, o princípio da inamovibilidade e até mesmo do juiz natural. Sabemos como isso ocorre: há uma causa de grande relevância e há algum motivo nem sempre bem conhecido, com relação ao modo de conduzir o feito. Então, por meio de uma resolução, exclui-se o juiz a pretexto de desdobramento, de alteração de competência de vara. … Sabemos que isso acontece com freqüência até no âmbito da Justiça Federal, mas entendo que é um proceder contrário ao princípio da legalidade e do juiz natural. Portanto, penso ser uma regra um pouco perigosa em termos de garantia das partes no processo”.

Aqui em Pernambuco um desembargador também ressaltou a inconveniência da flexibilidade da movimentação de juízes, afastando-o ou designando para conduzir um determinado acervo processual. Sua excelência fez suas considerações na mesma sessão na qual se discutia a conveniência do meu artigo, antes mencionado. Disse o Desembargador:

“Eminente Presidente. Eminentes Pares. Permito-me, antes de dar o pronunciamento final, a fazer algumas reflexões”. (…) Antes de tudo, é imperioso imaginar que a figura do Juiz Substituto de Capital, diferente daquele Juiz Substituto não vitaliciado, não me se afigura dentro do princípio do Juiz natural. Juiz vitaliciado na Capital que é substituto, ele tem por direito, já que não é titular da Vara, de vincular-se àquela Vara onde o acervo de serviço judiciário reclame, não Juiz Auxiliar, mas um Juiz que possa concorrer para a otimização dos trabalhos no tocante à prestação jurisdicional. Então, na verdade, um Juiz designado que com menos de 15 (quinze) dias vem proferir uma sentença num processo extremamente rumoroso, sem tempo hábil para ter a segurança real do acerto de sua decisão, pode sugerir, efetivamente, a falta de segurança na prestação jurisdicional. (…) Em verdade a cada mês um Juiz é designado e, por uma situação fática, extravagante (…) ele vai para uma Vara, julga um processo de repercussão, no mês seguinte ele está noutra Vara, julga outro processo de repercussão, então qual o critério objetivo que nós temos para que o Juiz tenha esta segurança no seu exercício profissional?(…)


Também é motivo de violência contra a independência da Magistratura e contra a sociedade a lentidão com que caminham os processos contra juízes, principalmente os afastados, cuja punição é perpetrada todos os dias. Há casos em que o magistrado afastado morre ou se aposenta sem que uma decisão final confirme a decisão cautelar do afastamento inicial.

Concordo com o Professor Dallari: Um dos principais algozes da independência da Magistratura são os próprios juízes. Por maior que seja a incoerência, alguns juízes, passiva ou ativamente, atentam contra a sua própria independência, permitem serem usados como instrumentos.

Quais são as causas dessa violação à independência da Magistratura praticada pelos próprios Magistrados? Essa situação, a toda evidência, é fruto de uma cultura velha, alimentada pelos próprios juízes.

Há normas jurídicas protetoras da independência da Magistratura; o que falta, além da consciência do juiz e daqueles que têm o papel de conduzir os destinos da Instituição é, principalmente, o desmonte dos mecanismos de sujeição ou de subserviência em troca de vantagens ou conveniências e um sistema de controle e ou observação da vítima última dessa realidade: a sociedade.

A falta de critérios legais objetivos na movimentação da carreira dos juízes explica, mas não justifica o cenário de arbítrio e de subserviência.

Os princípios constitucionais, apesar de serem abertos, de conteúdos vagos, têm força normativa e as escolhas administrativas poderiam e deveriam materializar a idéia ali exposta.

Porém não é isso que acontece na prática. Muitos daqueles juízes que um dia foram escravizados, rapidamente, se esquecem do que passaram quando alcançam o Poder e passam a agir como agiam os seus algozes, mantendo uma cultura de subserviência.

Não é raro ouvirmos desembargadores afirmando que não votaram num determinado candidato à promoção ou remoção simplesmente porque esse não foi até ele pedir, não se contentando com a simples inscrição no edital do certame. Pedir para quê? Pedir por quê? Essas são respostas que precisam ser dadas por aqueles que fazem a exigência.

A busca cega pela Poder, fruto de um desejo dos homens, invariavelmente fala muito mais alto do que determinados valores. Como Édipo, são capazes de matar a própria instituição e o que é pior, conscientemente.

Juízes passam a vida agradando a um e a outro, esperando serem o próximo escolhido. Não raras vezes esses magistrados são apunhalados, sem piedade, pelos próprios cortejados. Tivemos vários casos. Magistrado foi excluído da lista para desembargador depois de ter figurado por duas vezes consecutivas.

Como se sabe, se o candidato figura três vezes na lista de promoção por merecimento é necessariamente promovido. Do dia para a noite, sem que motivo superveniente houvesse, aquele juiz não era mais merecedor para ingressar a terceira vez. É uma punição sem processo. Já ouvi algumas pessoas afirmarem que as coisas estão mudando porque novos juízes estão ingressando na Magistratura. Isso é verdade em termos.

Alguns poucos jovens juízes, com toda a vida pela frente, não pensam em outra coisa a não ser chegar ao Tribunal. São capazes de tudo e isso significa ‘jogar’ a regra do jogo. Um outro câncer da independência da Magistratura é o nepotismo. No Poder Judiciário há cargos em comissão que pagam salários próximos a R$ 5 mil.

Em plena República, coisa pública, os cargos em comissão são distribuídos com os parentes dos Magistrados. Alguns beneficiários são jovens de pouco mais de 18 anos. São verdadeiros ‘reizinhos’, que chegam ao cúmulo de desafiarem os próprios juízes.

Tenho dó desses jovens porque podem não aprender a pescar e tenha mais pena do pai que trocou o cargo em comissão pela sua liberdade, pois, não há maior instrumento de tortura para o nepota do que a caneta e o diário oficial do poderoso de plantão. Eis aí mais uma manifestação de violência à independência da Magistratura, perpetrada pelos seus próprios membros. O resultado dessa e de outras mazelas do Poder Judiciário é que o povo não acredita na Instituição.

Os Juízes, ao contrário dos membros dos outros Poderes, não se submetem a eleições; sua legitimação está no respeito que o povo lhe tenha. A decisão proferida por um Poder desacreditado não tem qualquer legitimidade.

Pesquisa feita pelo instituto Toledo & Associados, de São Paulo, encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil, sobre o Poder Judiciário, mostra que:

84% dos entrevistados citaram razões negativas, enquanto apenas 22% fizeram considerações positivas.

38% das pessoas ouvidas desconfiam do Poder Judiciário.

41% não acreditam na Justiça brasileira.

17% disseram que os juízes se empenham para aplicar a lei e promover justiça.


5%, dos ouvidos disseram que os juízes são sérios, honestos e dignos.

6%, isso mesmo, 6 em cada 100 brasileiros, acreditam existir profissionais honestos, corretos, que lutam pela honra da classe.

Segundo pesquisa encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, a imagem do Judiciário é de uma ‘caixa preta’, misteriosa, pouco acessível ao indivíduo comum e que contém segredos que apenas seres especiais (os juízes) podem decodificar.

Os principais traços do Poder e de seus membros, na visão do povo, é de muito poder e autoridade, conhecimento, abstração e mistério, distanciamento das pessoas comuns. Parece um mundo à parte, tanto da sociedade quanto dos outros Poderes.

Os sentimentos gerados diante dessa percepção são de respeito, mas também de insegurança, desconfiança e temor, intensificados quanto menos esclarecida e/ou experiente for a pessoa. A imagem do Poder Judiciário na atualidade tende mais para o negativo.

Quais as soluções? A verdadeira independência da Magistratura não será alcançada se ficar na dependência de alguns poucos abnegados. É preciso quebrar os mecanismos de corrosão do homem.

A criação de controles sociais da atuação administrativa dos Magistrados, inclusive na carreira; eleição direta para mesa diretora dos Tribunais; mandato para os Juízes dos Tribunais; o fim do nepotismo; a extinção do quinto constitucional; o fim das cadeiras de advogados nos Tribunais Regionais Eleitorais; s definição de critérios objetivos para promoção e remoção de juízes, inclusive nos Tribunais; a ampliação dos Tribunais, fragmentando o Poder, tomando-se por base a relação juiz/população/processos e maior transparência, são algumas medidas importantes.

Reunidos todos esses fragmentos de verdades, concluo que infelizmente a Magistratura não é independente. É instrumento e continua a servir aos Reis.

Nesse sentido, faço minha as palavras do Senador Cristóvão Buarque:

“Se Nabuco estivesse vivo, ele pensaria que seu trabalho estava incompleto. Ao trilhar ao redor, veria que a Justiça brasileira continua tratando de maneira diferente as pessoas, conforme o dinheiro e a influência que têm, como diferente era o tratamento entre escravos e homens livres.

Se antes os donos de terra controlavam a justiça diretamente, agora os ricos elegem os parlamentares para fazerem as leis que lhes interessam e pagam os advogados para contorná-las quando é preciso”.(4)

O lamentável cenário pode ser outro, entretanto, os novos tempos da verdadeira independência da magistratura só virão se removermos os mecanismos de corrosão, de tentação. Enquanto eles existirem, passo a passo, os homens que se sucederem no exercício da função irão se rendendo. Devemos lutar contra esses engenhos de homens, essa verdadeira fábrica de bagaços humanos. Enquanto essa reforma não vem, faço um apelo aos jovens juízes e, para tanto, louvo-me do poeta Maximiliano Campos:

Que sejam assim:

alegres sem desconhecer a tristeza, capaz de uma ilusão.

Fortes sem apedrejar derrotas, rebeldes, sem destruir a mansidão.

Servo apenas do ideal e sonho, e rei da sua vontade.

Amando as pessoas sem deixar que nenhum medo o faça desconhecer a liberdade.

Também clamo aos juízes mais antigos:

Não deixem que a armadura enferruje. Principalmente no peito, que é perto do coração.

Segurem a espada, larguem o escudo, pois o medo não é proteção.

Permitam que o sol bata na poeira e o vento leve o sujo do aço que te cobre.

Na loucura, só na loucura, estarão libertos.

O mito é sol, liberdade e céu aberto.

Notas de rodapé

(1)Diniz, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo : Saraiva,1998.

(2)Declaração Universal dos Direitos do Homem. Art. 10

(3) AIROMS 6068 / MT INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RESOLUÇÃO 17/93 DO TJMT. 3ª VARA CÍVEL DE VÁRZEA GRANDE. ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA. LEI ESTADUAL 4964/85 (COJE). CF/88, ART. 125, § 1º, E CEMT, ART. 96, III. 1. A CF/88, em seu art. 125, § 1º, estabelece que a Constituição do Estado definirá a competência do Tribunal de Justiça sendo deste a iniciativa da lei de organização judiciária. 2. A Lei Mato-Grossense 4964/85, promulgada sob a égide da CF/67, com a redação da EC 1/69, determinava incumbir ao TJMT propor ao Poder legislativo alterações da organização e da divisão judiciárias, salvo aquelas que implicassem em aumento de despesas (art. 144, § 5º), sendo que, nas Comarcas onde houver mais de uma Vara, a competência destas será determinada por Resolução do Tribunal Pleno (art. 58). 3. Tendo em vista ainda o disposto no art. 96, III, da CEMT, a Resolução 17/93 do TJMT, que modificou a competência da 3ª Vara Cível da Comarca de Várzea Grande, é constitucional devendo ser mantida. 4.Arguição de inconstitucionalidade da referida resolução julgada improcedente. Decisão por maioria.

(4) BUARQUE, Cristovam Revista Massangana Recife, 19.08.04.

Autores

  • é juiz em Recife, membro da Associação Juízes para a Democracia. Professor de Direito do Consumidor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco e diretor regional do Instituto Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor.

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