Estado e religião

Não cabe ao STF decidir se aborto de feto anencefálico é pecado

Autor

24 de outubro de 2004, 17h18

O fundamentalismo religioso é corolário abominável do monoteísmo.

Os gregos e romanos da antiguidade eram extremamente tolerantes com as religiões dos estrangeiros, pelo simples fato de adotarem o politeísmo que, por essência, não exclui a existência de outras divindades.

As religiões ocidentais monoteístas – cristianismo, islamismo e judaísmo – por outro lado, freqüentemente estiveram associadas a regimes ditatoriais de todos os gêneros.

O Iluminismo e, posteriormente, a Revolução Francesa, consolidaram a idéia de Estado laico, separando, pelo menos em tese, o poder político (temporal) do religioso.

No Brasil, o Estado confessional do Império foi abolido com a República e, atualmente, a Constituição Federal de 1988 consagra a separação do Estado e da religião dispondo que:

“art.19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”

A Carta Magna afirma não só a laicidade do Estado brasileiro, mas também a tolerância religiosa ao estabelecer que:

“art.5º, VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”

Tais princípios constitucionais, porém, parecem ser esquecidos quando o assunto em pauta é bioética e biodireito.

As discussões, no Congresso Nacional, sobre o uso científico de embriões congelados para pesquisas com células-tronco e, no Supremo Tribunal Federal, sobre o aborto de fetos anencéfalos, demonstram plenamente a profunda influência religiosa sobre as decisões dos poderes legislativo e judiciário que, em tese, deveriam manter-se neutros em relação a questões religiosas.

A votação no Senado sobre o uso de células-tronco em experiências científicas teve motivações predominantemente religiosas, levando os senadores Marco Maciel (PFL-PE) e Flávio Arns (PT-PR) — em tese, de correntes ideológicas absolutamente antagônicas — a combaterem enfaticamente as pesquisas com células-tronco.

Também no Supremo Tribunal Federal o debate sobre a autorização judicial para o aborto de fetos anencéfalos parece ganhar cunho predominantemente religioso, em detrimento de uma discussão meramente jurídica.

No Congresso Nacional chega-se ao cúmulo de se falar em uma “bancada evangélica” e não é de hoje que o governo do estado do Rio de Janeiro tornou-se uma verdadeira teocracia, em uma demonstração explícita do fundamentalismo cristão.

A mídia, longe de buscar informar seus leitores sobre a necessidade inerente dos estados democráticos de separar religião de política em prol da tolerância religiosa, busca acirrar ainda mais o caráter teológico do debate, cedendo espaço para líderes religiosos se pronunciarem a respeito do tema.

No Estado Democrático de Direito não há espaço para a imposição de crenças religiosas travestidas de leis ou sentenças, pois a base da democracia é a pluralidade e a tolerância ao diferente.

Se as pesquisas com células-tronco e os abortos de anencéfalos são ou não pecado não cabe aos políticos e aos ministros do STF decidirem, mas aos clérigos, a partir da interpretação dos livros sagrados de sua fé.

A licitude de tais pesquisas e a criminalização de tais abortos, por outro lado, são questões de natureza política e jurídica e, portanto, de natureza temporal, não havendo, pois, como serem impedidas por contrariarem qualquer religião.

A imposição da fé de uma maioria de cidadãos brasileiros cristãos a uma minoria não cristã é um fundamentalismo religioso absolutamente incompatível com a idéia de Estado Democrático de Direito. Assim como o Estado não deve se intrometer na crença de seus cidadãos, é evidente também que as religiões não devem e não podem interferir nas decisões políticas e jurídicas dos órgãos públicos.

Ao negar a reencarnação, o cristianismo tende a supervalorizar o direito à vida, ainda que acompanhado de um profundo e constante sofrimento. Por esta crença, é natural que não se conceba o sacrifício de um blastocisto, mesmo que, por hipótese, este possa ser usado para restaurar os movimentos de alguém condenado a viver em uma cadeira de rodas. Também coerente com este ponto de vista, se pode exigir que uma mulher seja obrigada a gestar um feto anencéfalo.

Estas imposições religiosas, no entanto, devem ser limitadas aos fiéis, que em momento algum serão obrigados a doarem blastocistos, tratarem-se com células-tronco e, principalmente, abortarem.

O estado brasileiro é laico e, por sua natureza, também garante o direito aos infiéis de pecarem, não se submetendo à fé de uma parcela de seus cidadãos, mesmo que majoritária, pois não há democracia sem tolerância religiosa.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!