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Gestantes de feto sem cérebro não podem mais abortar, decide STF.

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20 de outubro de 2004, 19h27

As gestantes de feto anencefálico (sem cérebro) não estão mais autorizadas a abortar. O Supremo Tribunal Federal revogou, por 7 votos a 4, nesta quarta-feira (20/10), liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS). O julgamento foi um dos mais acalorados do ano, com direito a faíscas entre Marco Aurélio, Eros Grau e Joaquim Barbosa.

Votaram pela manutenção da liminar, que ficou em vigor durante quatro meses, os ministros Marco Aurélio (relator do caso), Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Foram contrários a ela, o presidente do STF, Nelson Jobim, Eros Grau, Ellen Gracie, Carlos Velloso, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso. A liminar foi cassada em caráter ex nunc, ou seja, é inválida daqui em diante.

O preceito da liminar de Marco Aurélio que sobrestava todas as ações sobre o tema que pendem de julgamento não foi cassado. Nesse ponto, o voto do ministro Peluso foi vencido pelos outros integrantes do Supremo.

A maioria da Corte seguiu voto do ministro Eros Grau, que depois do pedido de vista de Ayres Britto sobre a admissibilidade da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no caso dos anencefálicos, colocou a validade da liminar em questão. A ADPF é um instrumento usado para levar ao julgamento do Supremo normas anteriores à Constituição Federal de 88, caso do Código Penal.

Para Eros Grau, a manutenção da liminar não se justifica, pois o Código Penal não pode ser reescrito pelo Judiciário e permitir uma “terceira modalidade de aborto”. Hoje, a interrupção da gravidez é prevista legalmente em caso de estupro ou risco de vida para a gestante. Ele também colocou em questão o fato de a discussão sobre a admissibilidade da ADPF preceder a apreciação da medida liminar.

Em 2 de agosto deste ano, os ministros decidiram que a matéria discutida na ADPF seria julgada, no mérito, sem a necessidade do referendo da liminar concedida por Marco Aurélio. No entanto, o argumento de Grau também foi usado por Joaquim Barbosa, para quem “não teria cabimento conceder a cautelar antes de apreciar o cabimento da ação”, e por Ellen Gracie. De acordo com a ministra, “o exame da admissibilidade da ADPF deveria preceder o provimento da liminar, que é por natureza precário”. Ela afirmou, ainda, não ver “urgência para autorizar” a cautelar.

O caráter de urgência foi defendido por Marco Aurélio e pelo advogado da CNTS, Luís Roberto Barroso, já que muitas vezes não há tempo hábil nos tribunais para julgar o direito pelo aborto ou não antes do nascimento da criança.

A liminar de Marco Aurélio foi igualmente combatida por Peluso. Segundo ele, não “há probabilidade necessária para conceder cautelar que crie uma norma penal em contradição com o expresso nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal” e que “exclua a ilicitude da conduta”. Para o ministro, a criminalização do aborto existe para preservar a vida intra-uterina, “independentemente das deformidades que sempre se apresentaram na história, que não são novidades”. Segundo ele, a única novidade pode “estar nos diagnósticos”.

Peluso também opôs-se à alegação de que a gravidez de feto anencefálico pode causar sofrimento à mãe, já que as probabilidades de o bebê nascer morto ou ter poucos dias de vida são grandes. “O advogado [Barroso] pretende dar nova interpretação a velhíssimas normas de caráter penal. Mas o sofrimento não degrada a dignidade humana”, é, ao contrário, “essencial na vida humana. O remorso também é sofrimento. O sistema judiciário só repudia o sofrimento por atos injustos, o que não é o caso”, disse.

O ministro embasou seu voto, ainda, no limite de atuação da Corte para interpretar a Constituição Federal, ao ter uma leitura diferente de norma que “jamais sofreu qualquer dúvida no registro da jurisprudência” do STF. Segundo ele, a intenção é que o Supremo tenha competência para decidir sobre a matéria sob o pretexto de que certas normas não são adequadas ao tempo e à evolução científica, o que “não deixa dúvida quanto à impossibilidade”.

Gilmar Mendes afirmou que não é admissível que seja promovida mutação no sistema jurídico para permitir a interrupção da gravidez em caso de feto anencefálico. Também, para ele, não há razão para que a mudança seja feita “em sede de cautelar”.

Discussão polêmica

A legalização do aborto nos casos dos fetos sem cérebro é uma das questões mais polêmicas que chegaram ao Supremo neste ano. A proposta de ação foi inspirada pelo caso de uma gestante que, depois de percorrer todas as instâncias do Judiciário, obtendo decisões conflitantes, teve o filho antes que o Habeas Corpus 84.025-6 fosse julgado pelo STF. A criança morreu sete minutos depois de nascer. O relator, ministro Joaquim Barbosa, chegou a elaborar o voto favorável à interrupção da gravidez. Mas já era tarde.

A defesa de Barroso é baseada em pilares como o que prega que a impossibilidade legal do aborto nesses casos viola a dignidade da condição feminina ao obrigar a mulher a levar a gestação de um feto, segundo ele, natimorto. O advogado também lança mão do princípio da liberdade jurídica, segundo o qual “ninguém deve ser obrigado a obedecer qualquer vontade que não seja a da lei”.

Para ele, o Direito brasileiro considera uma pessoa morta quando há falência cerebral. Tanto que autoriza, neste contexto, o transplante de órgãos, “mesmo que o coração esteja batendo e o sangue fluindo”. O feto anencefálico, não poderia assim, ser “considerado ser vivo”. Segundo Barroso, o feto anencefálico se mantém vivo por estar ligado a aparelho — no caso, o corpo da mãe.

O terceiro fundamento alegado pelo advogado é o do direito à saúde e bem-estar físico. “Não há na farmacologia médica nada que se possa fazer para salvar esse feto, só se pode fazer algo para preservar mãe, que terá gravidez de mais alto risco, sim”, argumenta. Barroso também pede a aplicação do periculum in mora para evitar a insegurança jurídica provocada por decisões judiciais divergentes — como no caso da gestante do HC 84.025-6.

Contrário à permissão do aborto, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, defende que o Judiciário não pode se sobrepor aos legisladores, estes sim responsáveis por mudanças no Código Penal atacado pela CNTS. “É vedado aos juízes a feitura de nova lei com conteúdo diferente da anterior”, disse ele em seu pronunciamento na abertura da sessão desta quarta.

Para Fonteles, o Código Civil e a Carta Magna preservam a vida desde o momento da concepção do nascituro. “A vida intra-uterina existe sim. O feto anencéfalo se forma com boca, unhas, coração. O sangue corre na veia”. Ele argumentou, ainda, que o direito à vida é atemporal e não depender se a criança vai sobreviver por dias ou semanas. Além disso, disse Fonteles, “o coração [do anencéfalico] pode ir para outro bebê” por meio de transplante.

Ressaltando diversas vezes sua perplexidade diante do rumo que o debate tomou nesta quarta, o relator Marco Aurélio colocou em dúvida a coragem de o Supremo tomar decisão tendo em conta a pressão eclesiástica. “Apesar de ainda existir um Cristo entre nós [no alto esquerdo da parede da Corte, atrás da mesa do presidente do STF está afixado um crucifixo], há muito houve a separação Estado-Igreja”. Há de se embasar, segundo ele, “em parâmetros técnicos, constitucionais e não em visões fundamentalistas, morais e religiosas sobre o tema”.

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