Direito de defesa

Impunidade brasileira começa no Ministério Público Federal

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11 de novembro de 2004, 9h06

As recentes denúncias veiculadas pela mídia contra o procurador Luiz Francisco de Sousa acabaram por esquentar o debate a respeito das prerrogativas do Ministério Público no Brasil. Nada mais razoável que eu, tendo sofrido forte perseguição dele, contribua para o debate, revelando nuanças e escaramuças do verdadeiro assassinato moral e civil a que ele tentou me submeter.

Já se vão quatro anos de vida devassada e privacidade violentada. Fui mexido e remexido sem que nada em minha conduta surgisse que me tornasse vulnerável a qualquer tipo de repreensão. Não podia ser diferente, porque não havia nada. A bem da verdade, o procurador tinha uma determinação político-eleitoreira, que passava ao largo das suas funções legais.

Luiz Francisco era, até abril de 1998, filiado ao PT. Esta vinculação explica a sua prática. Ele e seus cúmplices procuraram atingir, com ações de improbidade administrativa, pelo menos 15 ministros do governo passado. Constato isso, hoje, com mais clareza, depois da ascensão do PT ao poder.

Escândalos como o caso “Waldomiro“, uso irregular de jatos da FAB e desvio de recursos do FAT, para citar apenas algumas mazelas do governo atual, não movimentaram o atento procurador. Não há notícias de iniciativas suas sobre investigações ou denúncias das improbidades cometidas.

O interesse político-eleitoreiro também pode ser constatado ao se atentar para a oportunidade em que ele apresentava as suas ações. Em 2002, por exemplo, a poucas semanas antes da votação presidencial, Luiz Francisco denunciou o ex-diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira. No seu texto, citou 185 vezes o candidato tucano José Serra, que disputava aquela eleição.

Fui sua vítima nas eleições municipais de 2000. Ele foi buscar em reportagem da revista Veja, publicada um ano antes, e requentada pelo jornal Valor Econômico, o argumento para me perseguir. Em conluio com seus “jornalistas investigativos”, como ele gosta de dizer, imaginava alcançar o presidente da República — e o PSDB — ao denegrir a imagem do seu ex-secretário-geral.

Sem realizar qualquer investigação, o procurador anunciou que pediria a quebra do meu sigilo. Com enorme conotação fanfarronesca, ele dizia que eu era o “PC do governo Fernando Henrique“. Pretendia me imputar a imagem de corrupto ao fazer essa analogia com o tesoureiro de campanha Paulo César Farias (que já morreu), cuja atuação provocou o impeachment do ex-presidente Fernando Collor.

A reportagem da revista baseava-se em vazamento de informações da CPI do Judiciário, relativas às investigações sobre o desvio de recursos destinados à construção do prédio do Fórum Trabalhista da cidade de São Paulo. A quebra do sigilo telefônico do principal envolvido, o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, indicava grande quantidade de ligações para mim.

Na lista, com cerca de dez mil registros, também se encontravam telefonemas do ex-juiz para o atual presidente do PT, José Genoino, para o deputado petista, Luciano Zica, e para o então relator do Orçamento do Judiciário, o ex-deputado João Coser, também petista, além do senador Eduardo Suplicy.

Com a aprovação de João Coser, foram inscritas no Orçamento, por solicitação de parlamentares, entre eles a ex-deputada Marta Suplicy, milionárias destinações para a obra do Fórum. Os registros telefônicos também indicavam 262 ligações para a central do Senado e 109 para a Câmara dos Deputados. Mas, para ele, só Eduardo Jorge interessava.

É verdade que, na condição de secretário-geral da Presidência da República, eu conversava com o ex-juiz. Ele tinha sido presidente e era considerado, nos meios jurídicos, como o “homem forte” do TRT de São Paulo. Minha tarefa era obter informações sobre o perfil dos candidatos a juiz que seriam nomeados pelo presidente Fernando Henrique.

Tais informações se prestavam a evitar o uso da nomeação para fins de aposentadoria e avaliar o conhecimento e o posicionamento jurídico dos candidatos. Em governos anteriores, a missão também cabia a órgãos do Palácio do Planalto. O general Augusto Heleno Pereira, um dos responsáveis, deu declarações esclarecedoras, sem que o procurador as levasse em consideração.


A análise de mais de uma centena de ligações telefônicas para mim, uma quantidade que, a olho nu, realmente poderia sugerir suspeitas, num período de quatro anos, indicou algo completamente diferente. De todos os registros listados, apenas 27 mostravam, pelo tempo de duração e circunstâncias de efetivação, ter ocorrido alguma conversa, sem que houvesse qualquer relação de coincidência entre a imensa maioria das ligações e as liberações do Tesouro.

O procurador também estava informado de que o secretário-geral da Presidência da República nunca teria condições de interferir na liberação das verbas do TRT. Já em junho de 1999, também

há mais de um ano antes do início da perseguição, o Ministério da Fazenda esclarecera, em nota à imprensa,

a mecânica oficial para a liberação desses recursos.

Os deslizes de Luiz Francisco

Nada disto interessava aos seus propósitos político-eleitoreiros. Ele iniciou um processo de investigação, lançando mão de expedientes, muitos deles definidos no Código Penal como crimes de calúnia, fraude processual, falsidade ideológica, prevaricação, denunciação caluniosa e falso testemunho.

“Luiz Francisco é mentiroso”, cheguei a denunciar publicamente, por diversas vezes, ao que ele reagia, junto a meu advogado: “Peça ao seu cliente para não me chamar de mentiroso em público”.

Já que ele havia anunciado que pediria a quebra de sigilo, resolvi me antecipar. Enviei todas as informações fiscais, bancárias e telefônicas do período em que estive vinculado ao governo. Apresentei os dados de minha evolução patrimonial desde a década de 70. Anexei, ainda, um atestado da Receita Federal sobre a regularidade das minhas contas.

No entanto, para minha surpresa, Luiz Francisco, auxiliado pelo procurador Guilherme Schelb, utilizou exatamente essas informações para rechear um documento e prosseguir com sua perseguição. Com base nelas e amparado em recortes de jornais, ele determinou à Receita Federal uma auditoria sobre minhas contas, dos meus sócios e das empresas nas quais passei a ter participação, depois que me desliguei do serviço público federal.

Nessa determinação, que significou uma verdadeira devassa proibida pela Constituição, ele incluiu interpretações fantasiosas e fatos mentirosos, com o claro intuito de criar suspeições. Ele ainda violou o sigilo a que legalmente estava obrigado. No mesmo dia em que enviou o pedido à Receita Federal, ele entregou cópia do ofício para a imprensa

Entre as mentiras incluídas nesse Ofício — que implicam o crime de falsidade ideológica — ele inventou que eu era proprietário de uma casa em Boca Ráton, um paradisíaco balneário situado na Flórida. Apontou essa invenção como indício de enriquecimento ilícito, assim como minha participação, de valor inferior a R$ 1,00 – um real -, no escritório desativado de meu pai, que havia morrido 20 anos atrás.

As irregularidades se sucederiam. Documentos do meu sigilo começaram a ser estampados nos jornais, como o fac-símile de uma nota fiscal de prestação de serviços. A cópia do original, que meu cliente ainda não havia recebido, se encontrava nas caixas de papéis que eu enviara ao procurador. Apenas ele poderia ter vazado o documento para a imprensa, o que configura outro crime.

Desse modo, a minha disposição de colaborar acabou servindo de combustível para a curiosidade da imprensa e alimentando os ataques de parlamentares da oposição. Fui chamado a depor na Sub-comissão do Senado que dava continuidade às investigações da CPI do Judiciário.

Todas as informações que prestei foram confirmadas posteriormente.

Os procuradores que “investigavam” o escândalo do Fórum Trabalhista — e o já chamado “Caso Eduardo Jorge” — foram, posteriormente, sabatinados no Senado. Entre eles, Janice Ascari, de São Paulo, e Luiz Francisco, do Distrito Federal. A íntegra de seus depoimentos e os meus comentários, mostram que eles apenas especularam, apresentaram versões que não condiziam com os fatos ou fatos verdadeiramente falsos. Ou seja, não possuíam sequer indício de irregularidade praticada por mim.


Janice Ascari, por exemplo, justificou a abertura de uma investigação sobre a minha pessoa, em São Paulo, como fundamentada, entre outros, no depoimento do engenheiro Roberto Rivera, que havia trabalhado para o Grupo OK. Meses depois, chamado a depor nesse procedimento, compulsei os autos da investigação e constatei que o engenheiro sequer mencionava o meu nome.

Outra alegação que, segundo a procuradora, calçava a iniciativa da investigação era uma carta de um tal senhor Peixoto. Ele me acusava de irregularidades no setor de seguros. Na realidade, se tratava de uma carta anônima e apócrifa. Descrevia fantasias e não continha qualquer acusação da competência do MPF. De qualquer forma, fui ouvido e a investigação se encerrou sem que os procuradores encontrassem elementos que me comprometessem.

No Distrito Federal, quando tive acesso aos autos, depois de aguardar muitos meses, nada apontava para irregularidades, nem mesmo constavam informações sobre a tal casa de Boca Ráton. Apesar dos “indícios veementes” e das “denúncias gravíssimas”, que alardeava, até hoje Luiz Francisco não me chamou sequer para prestar informações. O tempo passou e nenhuma prova foi encontrada, nem mesmo da existência de qualquer crime, quanto mais de ser eu autor de qualquer ilegalidade.

Procurador constrange auditores fiscais

O silêncio dos procuradores levou o jornal Folha de S. Paulo, em fevereiro de 2001, a noticiar o fiasco da investigação: não havia provas — registrou o matutino — embora, no meu entender, existiam provas, sim, mas da minha inocência, como afirmei ao jornal.

Guilherme Schelb revidou, afirmando que investigações podiam reconhecer a inocência, mas que esse não era o meu caso. O acinte indignou o colunista Clovis Rossi, do mesmo jornal, que, em artigo sob o título “Errei“, revelou o seu arrependimento em ter dado crédito aos procuradores.

Luiz Francisco, na realidade, queria levar o caso em banho-maria, acreditando que, com a ajuda divina ou de um de seus “jornalistas investigativos”, pudesse chegar a algum fato desabonador.

Como não obtinha provas para as suas fantasias, partiu para um verdadeiro vale-tudo. Convocou o então delegado da Receita Federal, em Brasília, Nilton Tadeu Nogueira, e os auditores fiscais para exigir que confirmassem as suas suspeitas. O affaire resultou numa queixa-crime de Nogueira contra o procurador.

O autoritarismo do procurador acabou por intimidar os auditores fiscais, que concordaram em elaborar um relatório preliminar, apontando possíveis irregularidades. Redigido sem que eu tivesse sido ouvido, o documento arrolou “desconfianças” dos auditores, existentes antes que eles terminassem a apuração, e feriu o princípio constitucional do contraditório previsto no Art. 5, LV, da Carta Magna.

O propósito de Luiz Francisco, na realidade, era vazar o documento para a imprensa e criar um clima favorável para conseguir, na Justiça, a quebra, integral, do meu sigilo bancário, dos meus familiares, sócios e das empresas em que eu tinha participação. A tentativa de constranger os juízes ele mesmo explicitou em e-mail dirigido a seus colegas.

A tática não funcionou. Ao analisar o pedido, o juiz-substituto da 10ª Vara Federal, em Brasília, Ronaldo Desterro, concluiu que não via “indícios necessários à concessão da medida excepcional pretendida”. Autorizou, apenas, que a Receita Federal examinasse as movimentações bancárias para a conclusão da auditoria fiscal – face às alegações contidas no relatório preliminar dos auditores fiscais.

O desembargador Tourinho Neto, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, foi mais ácido. Proibiu a quebra do sigilo em medida liminar, argumentando que, se os procuradores tinham realmente os indícios alegados, era sua obrigação apresentar a denúncia, sob pena de incorrerem no crime de prevaricação. A decisão foi confirmada, posteriormente, pelo Tribunal.

“O senhor não sabe as pressões que temos enfrentado”, foi o desabafo da auditora responsável pela devassa nas minhas contas, referindo-se ao procurador Luiz Francisco. O trabalho estava concluído. Para a elaboração do relatório final, prestei esclarecimentos sobre as “desconfianças” apontadas no relatório preliminar. Eles concluíram pela inexistência de sonegação fiscal ou de enriquecimento ilícito.


Mas as pressões, realmente, eram fortes. Alguns meses depois, fui intimado a pagar uma vultosa quantia em impostos e multas, por conta de uma aplicação financeira para a qual, segundo os auditores, não houvera cobertura. Na conversa com a auditora responsável, apontei o erro cometido por eles, já que não apenas existia cobertura, mas também suas provas constavam dos autos. Estranhei que, durante a auditoria, não tivesse sido indagado sobre esse fato.

A funcionária reconheceu o equívoco, disse que não podia revelar o motivo da omissão do questionamento, mas se recusou a anular o auto de infração. Imediatamente enviei carta ao delegado da Receita e contestei o lançamento junto à Delegacia de Julgamentos, que concluiu pela lisura da operação.

Em junho de 2001, extenuado com a demora das “investigações”, pedi para depor e fui ouvido pelos membros da Comissão de Fiscalização e Controle do Senado. Na audiência, ao afirmar que não estava respondendo a qualquer ação ajuizada pelo MP, fui surpreendido pelo senador Pedro Simon que, em alto e bom som, anunciou a existência de um pedido de quebra de meu sigilo na Justiça Federal.

A ação, por decisão judicial, corria sob sigilo. Por conta disto, nem os réus podiam ter conhecimento do processo. Luiz Francisco, no entanto, resolvera quebrar as regras legais, mais uma vez, e fez questão que Simon informasse a Casa, naquele momento, sobre a ação.

De qualquer forma, após analisarem todas as acusações, de terem acesso ao meu sigilo, de avaliarem a minha evolução patrimonial e verificado todos os fatos, os integrantes da Comissão decidiram, por unanimidade, encerrar as apurações. Concluíram não existirem razões para seu prosseguimento, ou seja, não se encontrara qualquer indício de crime ou improbidade.

Outra frente de investigações fora desenvolvida pela Corregedoria Geral da União, que analisou inúmeras denúncias — a maioria delas anônimas e apresentadas através de uma corrente na Internet — concluindo pela sua completa improcedência. O relatório da Corregedoria também atestaria que nada havia que pudesse desabonar a minha conduta.

Corregedoria do MP faz vista grossa

O procurador e seus colegas, apesar de já desacreditados, continuaram a escarafunchar a minha vida pessoal e profissional em busca do que fosse. Nesse afã, Luiz Francisco forjou ter descoberto o meu envolvimento numa operação entre o extinto DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) e uma empresa do Rio de Janeiro — e não pestanejou em cometer o crime de denunciação caluniosa.

Com efeito, em fevereiro de 2002, ele apresentou uma ação de improbidade, citando-me como um dos responsáveis pela operação que considerou irregular. Isso porque, na condição de secretário-geral da Presidência, eu havia encaminhado — como era minha obrigação funcional — um aviso ao ministro dos Transportes, anexando o pedido de um deputado. Esta prática se repetiu às centenas durante os quatro anos em que ocupei aquele cargo e, certamente, continua a ocorrer no governo atual.

Mesmo assim, não satisfeitos com os resultados de suas investigações, em setembro de 2003, ou seja, já no governo atual, os procuradores voltaram à carga, buscando reabrir a auditoria fiscal, sob o argumento de que os trabalhos realizados tinham se desenvolvido sob a proteção do governo anterior.

Desta vez, a fraude processual foi cometida por Guilherme Schelb. Com a colaboração da Corregedoria da Receita Federal, foi forjada uma operação ilícita, para justificar nova devassa. Para isso, eles chegaram a suprimir dos autos um ofício irregular de Schelb à Corregedoria, substituindo-o por outro, com mesmo número, data, destinatário e com texto similar, que dava foros de legitimidade à operação.

Contra as irregularidades e abusos praticados por Luiz Francisco e Schelb, apresentei inúmeras representações na Corregedoria do MP. Na Justiça, ingressei com uma ação por danos morais e uma queixa-crime. No entanto, diante da impunidade que acoberta os membros do MP, sinto-me completamente

impotente.

A queixa-crime, depois de diferentes juízes terem se declarado, sucessivamente, impedidos, prescreveu e foi arquivada porque deixou de ser incluída em pauta no prazo previsto legalmente.

As representações no MP também foram arquivadas sem que se procedesse a qualquer investigação. A Corregedoria chegou a aceitar, como válida, a defesa de um procurador que, num pedido de quebra de sigilo bancário, disse ter colocado o meu nome por um “erro de digitação”.

Estes fatos depõem contra o sigilo que cerca as investigações sobre os membros do MP, que nunca são julgados por seus pares, furtando-se à fiscalização da sociedade. Em contrapartida, eles se precipitam como abutres sobre seus investigados, condenado-os de antemão pelos tribunais irrecorríveis da imprensa.

Ainda estou sendo submetido a um processo kafkiano, uma investigação que não acaba, relativa a um crime não definido, na qual não sou sequer ouvido. E, agora, Luiz Francisco resolveu que quer

saber se cometi alguma irregularidade há mais de dez anos, quando fui funcionário do Senado Federal.

Minha vida pessoal e profissional foi, praticamente, estraçalhada. Sofri vexações de todos os tipos, recebi impropérios de populares e cancelamento de contratos por clientes temerosos de que também pudessem ser perseguidos pelos procuradores.

Pelo que passei e ainda sofro nas mãos desses procuradores sem escrúpulos, fico arrependido do apoio que dei, no processo constituinte, à proposta de independência do Ministério Público. Não imaginava que eles seriam os primeiros impunes, neste nosso Brasil da impunidade. É preocupante que essa instituição, em vez de coibir, sancione os abusos criminosos de seus membros, e ainda defenda a ampliação de seus poderes.

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