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Plano de saúde está desobrigado de ressarcir SUS por internação

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9 de novembro de 2004, 15h28

A Associação Policial de Assistência à Saúde de Guarulhos e Franco da Rocha está desobrigada de ressarcir o Sistema Único de Saúde (SUS) por atendimentos prestados pela rede pública aos seus beneficiários. A 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região acolheu apelação interposta pela associação contra sentença da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro. A primeira instância acatou a Ação Ordinária ajuizada pela Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS).

A defesa do plano de saúde, representada pelo advogado José Luiz Toro da Silva, do Toro Advogados & Associados, alegou que “sendo a saúde direito de todos e dever do Estado, quando um cidadão adere a um plano de saúde privado de assistência à saúde não renuncia a seu direito constitucional de ser atendido pela rede pública”.

O advogado também alegou “ofensa aos princípios da legalidade e da anterioridade previstos na Carta Magna, tendo em vista que a tabela dos valores a serem ressarcidos foi criada pela Resolução RC 17/2000 e não por lei, e por pretender cobrar taxa, disfarçada de ressarcimento”.

A ANS, por sua vez, argumentou que o ressarcimento não tem natureza tributária, apenas garante ao SUS o direito de receber valores despendidos com internações de pessoas possuidoras de plano de saúde privado, que deveriam ser atendidas na rede hospitalar conveniada a estas empresas em virtude de previsão contratual, mas acabam sendo atendidas por entidades vinculadas ao SUS.

“As empresas oferecem a cobertura, mas deixam de assegurá-la, ficando os tratamentos mais caros a cargo do Estado. Em razão dessa omissão as operadoras acabam tendo um acréscimo em seus patrimônios, ferindo o princípio do não enriquecimento sem causa, princípio norteador do ressarcimento. Sendo a natureza jurídica do instituto meramente restituitória e não uma taxa, não existiria a violação aos princípios da legalidade e anterioridade, não trazendo qualquer ônus aos planos, por serem cobrados destes apenas os valores efetivamente cobertos pelos contratos. E ainda, é tarefa estatal a regulamentação, fiscalização e controle dos serviços de saúde”.

Em seu voto, o relator no TRF-2, desembargador Federal Castro Aguiar, relata que a questão central nos autos põe em foco o disposto no artigo 32 da Lei 9.656/98, segundo o qual ficou estabelecido que as operadoras de plano de assistência à saúde estariam obrigadas a ressarcir ao SUS das despesas referentes aos atendimentos prestados aos beneficiários de seus planos, pelas entidades públicas ou privadas que sejam conveniadas ou contratadas pelo SUS.

Para o relator, este artigo transfere, unilateralmente, à esfera privada o dever constitucional e originário do estado de prestar, em caráter universal, serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde dos cidadãos, como prescrito no artigo 196 da Constituição.

“É evidente que essa transferência de encargos terminará por resultar em aumento desordenado e incontrolável de despesas às operadoras de planos de saúde, recaindo tais aumentos, é claro, sobre os seus contratados, sobre os valores de suas prestações. Dessa forma, chega-se, facilmente, à primeira nefasta realidade: o cidadão, que já não conta com a saúde pública, por ele financiado através do pagamento de tributos, tanto que se sente obrigado a contratar planos privados de saúde, terminará tendo por financiar, por via indireta, através das suas prestações, o próprio sistema público de saúde”, afirmou Aguiar.

Segundo ele, assim, “todos os usuários de planos privados de saúde terminarão financiando a saúde pública, ainda que jamais se utilizem os seus mecanismos. Em verdade, não se pode conceber que as operadoras privadas de tais planos, diretamente, e seus consorciados, indiretamente, passem, com isto, a suprir a deficiência estatal, desconsiderando os tributos que já pagam para isto”.

O advogado José Luiz Toro, também presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Saúde Suplementar (IBDSS), diz que cresce a disputa entre operadoras de saúde e governo por causa do ressarcimento ao SUS. Os juízos de primeira instância vêm se manifestando ora para um lado, ora para outro. A disputa envolve a ANS e as 2.202 operadoras de planos de saúde do país, responsáveis pelo atendimento a cerca de 39 milhões de beneficiários.

Leia a determinação

Relator — desembargador federal Sergio Feltrin Correa

Relator p/ acórdão — desembargador federal Castro Aguiar

Apelante — Associação Policial de Assistência à Saúde de Guarulhos e Franco da Rocha

Advogado — Jose Luiz toro da silva (rj110493a)

Apelado — Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS

Procurador — Christina do Amaral Barreto (rj054414)

Origem — Sétima Vara federal do Rio de Janeiro (200151010089540)


RELATÓRIO

Trata-se de apelação interposta pela ASSOCIAÇÃO POLICIAL DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DE GUARULHOS – FRANCO DA ROCHA contra sentença proferida pelo MM. Juízo da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, nos autos da Ação Ordinária ajuizada em face da AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR – ANS, objetivando a inexigibilidade do ressarcimento, ao Sistema Único de Saúde, previsto no art. 32 da Lei nº 9656/98 e seus parágrafos, por considerar inconstitucional a referida obrigação.

Alega a apelante, em síntese, que sendo a saúde direito de todos e dever do Estado, quando um cidadão adere a um plano privado de assistência à saúde não renuncia a seu direito constitucional de ser atendido pela Rede Pública. Ademais,não obstante a natureza de taxa da referida exação, não foram observados os requisitos impostos pelo CTN, para sua criação. Por fim, sustenta ofensa aos princípios da legalidade e da anterioridade previstos na Carta Magna, tendo em vista que a tabela dos valores a serem ressarcidos foi criada pela Resolução RDC n° 17/2000 e não por lei, e por pretender cobrar taxa, disfarçada de ressarcimento.

Contra-razões às fls. 363/395, aduzindo a ANS o seguinte: que o ressarcimento não tem natureza tributária, apenas garante ao Sistema Único de Saúde receber valores despendidos com internações de pessoas, possuidoras de plano de saúde privado, que deveriam ser atendidas na rede hospitalar conveniada a estas empresas em virtude de previsão contratual, mas acabam sendo atendidas por entidades vinculadas ao SUS. As empresas oferecem a cobertura, mas deixam de assegurá-la, ficando os tratamentos mais caros a cargo do Estado. Em razão dessa omissão as operadoras acabam tendo um acréscimo em seus patrimônios, ferindo o princípio do não enriquecimento sem causa, princípio norteador do ressarcimento. Sendo a natureza jurídica do instituto meramente restituitória e não uma taxa, não existiria violação aos princípios da legalidade e anterioridade, não trazendo qualquer ônus aos planos, por serem cobrados destes apenas os valores efetivamente cobertos pelos contratos. E ainda, é tarefa estatal a regulamentação, fiscalização e controle dos serviços de saúde.

O Representante do Ministério Público Federal opinou no sentido do improvimento do recurso (fls. 399/401).

É o relatório. Peço data.

SERGIO FELTRIN CORRÊA

Relator

/csl

VOTO (V I S T A)

A questão central, nestes autos, põe em foco o disposto no art. 32 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, segundo o qual ficou estabelecido que as operadoras de plano de assistência à saúde estariam obrigadas a ressarcir ao Sistema Único de Saúde – SUS as despesas referentes aos atendimentos prestados aos beneficiários de seus planos, pelas entidades públicas ou privadas que sejam conveniadas ou contratadas pelo SUS, para prestação desses tipos de atendimento. Em outras palavras, toda vez que um beneficiário de plano particular de saúde utilizar-se de estabelecimento de saúde, através dos mecanismos do SUS, a respectiva operadora privada de plano de assistência à saúde estará obrigada a pagar as despesas que o SUS suportou, em relação ao referido beneficiário.

Em primeiro plano, o malsinado art. 32 transfere, unilateralmente, à esfera privada o dever constitucional e originário do Estado de prestar, em caráter universal, serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde dos cidadãos, como prescrito no art. 196 da Constituição.

É evidente que essa transferência de encargos terminará por resultar em aumento desordenado e incontrolável de despesas às operadoras de planos de saúde, recaindo tais aumentos, é claro, sobre os seus contratados, sobre os valores de suas prestações. Dessa forma, chega-se, facilmente, à primeira nefasta realidade: o cidadão, que já não conta com a saúde pública, por ele financiada através do pagamento de tributos, tanto que se sente obrigado a contratar planos privados de saúde, terminará tendo por financiar, por via indireta, através das suas prestações, o próprio sistema público de saúde. Assim, todos os usuários de planos privados de saúde terminarão financiando a saúde pública, ainda que jamais se utilizem dos seus mecanismos. Em verdade, não se pode conceber que as operadoras privadas de tais planos, diretamente, e seus consorciados, indiretamente, passem, com isto, a suprir a deficiência estatal, desconsiderando os tributos que já pagam para isto.

Claro que o ressarcimento ao SUS, como determinado pelo citado art. 32, constitui fórmula nova de custeio da saúde, imposta apenas a uma classe de pessoas jurídicas e não de modo igual para toda a sociedade, o que implica violência ao princípio constitucional de isonomia.

Não me convence o argumento segundo o qual os planos de saúde, em casos como os dos autos, estariam tendo enriquecimento ilícito, porquanto o pressuposto desse enriquecimento haveria de necessariamente ser a prática de ato ilícito causador de enriquecimento de alguém em detrimento de outrem. Se a agravante age de acordo com a lei, respeitando o contrato firmado com seus associados, não é apropriada a invocação de enriquecimento ilícito ou de enriquecimento sem causa.


Com efeito, ao procurar o SUS, o associado apenas está fazendo uso da faculdade dessa escolha, que não lhe foi contratualmente proibida. Diferentemente, sim, pode haver tal alegação, se o Estado, procurado por alguém, eximir-se de prestar o serviço constitucionalmente a ele atribuído.

Observe-se, por oportuno, e isto é muito importante, que o associado de planos de saúde não tem a obrigação de utilizar, exclusivamente, os serviços dos referidos planos, mas a liberdade de utilizá-los. Destarte, se o associado utilizar-se de serviços não credenciados, deverá remunerá-los diretamente, se for a hipótese, e se utilizar-se do SUS, nada pagará, porque assim este funciona.

Não é imprestável o argumento de que os recursos das operadoras de planos de saúde não surgem do nada, vindo, como é óbvio, dos seus segurados. E é claro que o aumento de custo, imputado às operadoras, mesmo por lei, resultará, mais cedo ou mais tarde, infalivelmente, em aumento das prestações de seus conveniados, impingindo-se-lhes a obrigatoriedade de novo pagamento, para subsidiar o próprio sistema público de saúde.

Mas o pior não é isto. Outros argumentos, igualmente inarredáveis, podem ser alinhados.

Não estaria, por exemplo, a operadora de planos de saúde obrigada a prestar atendimento fora da área de abrangência geográfica do contrato firmado. Assim, se o atendimento foi prestado em outra cidade, não prevendo o contrato com o associado qualquer cobertura naquela localidade, constitui absurdo a imposição de ressarcimento, por serviços prestados fora da área de abrangência contratualmente estabelecida com o associado.

Também há de levar-se em consideração a existência ou não, nos procedimentos realizados, de cobertura contratual. Se o contrato exclui de cobertura determinada doença, possibilitando ao associado o pagamento de contraprestação mais baixa, pois quanto maior for a cobertura, maior será o valor da contraprestação, claro que a operadora não poderia ser obrigada a ressarcir o SUS, nos casos não abrangidos pela cobertura contratual. Diga-se o mesmo quanto a atendimentos prestados em hospitais privados, nas hipóteses de inexistência de emergência ou urgência, sem a devida cobertura.

Outro ponto sobre o qual não se pode descuidar diz respeito aos contratos já firmados, antes da vigência da Lei nº 9.656/98. No seu art. 35, ficou estabelecido que seus dispositivos não se aplicariam aos contratos firmados antes da sua entrada em vigor. Assim, a referida lei haveria de irradiar seus efeitos para o futuro, não para os contratos já existentes, pelo que, com maior razão, não poderia o SUS pretender ressarcimento de despesas, quanto a contratos firmados antes da vigência do citado diploma legal.

Por outro prisma, a operadora de planos de saúde não poderá ser compelida a ressarcir o SUS por valor superior ao que pratica em sua própria rede ou pela rede credenciada. Aliás, isto decorre do disposto no § 8º do art. 32 da Lei nº 9.656/98. E não poderia ser diferente.

Sucede que a Agência Nacional de Saúde Suplementar pretende exigir o ressarcimento, através de valor por ela mesma estipulado, por meio de Tabela Nacional de Procedimentos – TUNEP, que possui valores mais altos do que os praticados pela operadora. Ora, os hospitais e prestadores de serviços recebem pela tabela do SUS, gastam pela tabela do SUS, mas a Agência ré pretende que o ressarcimento seja feito por meio da tabela TUNEP. Se a ré não pretende ser ressarcida pela tabela do SUS, seria de extremo bom senso que usasse os preços praticados pela própria operadora de planos de saúde.

Considero presentes, pois, os requisitos legais indispensáveis à concessão da tutela requerida, a fim de que a ré se abstenha de inscrever o débito reclamado na dívida ativa e no CADIN, bem como se abstenha de impor qualquer penalidade à autora, assegurando-lhe, inclusive, o fornecimento de certidões negativas, até o final julgamento da lide.

Isto posto, dou provimento à apelação, com inversão dos ônus da sucumbência.

É como voto.

CASTRO AGUIAR

Desembargador Federal

VOTO

Desembargador Federal Sergio Feltrin Corrêa (Relator):

Conforme relatado, a questão versa sobre a constitucionalidade do ressarcimento decorrente dos serviços de atendimento à saúde previstos nos contratos celebrados com as operadoras de planos de saúde e efetivados em instituições públicas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde, a teor do art. 32 da Lei nº 9656/98, verbis:

“Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS.

§ 1º O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao SUS, mediante tabela de procedimentos a ser aprovada pela ANS.

§ 2º Para a efetivação do ressarcimento, os gestores do SUS disponibilizarão às operadoras a discriminação dos procedimentos realizados para cada consumidor.

§ 3º A operadora efetuará o ressarcimento até o décimo quinto dia após a apresentação da cobrança pela ANS, creditando os valores correspondentes à entidade prestadora ou ao respectivo fundo de saúde, conforme o caso.

§ 4º O ressarcimento não efetuado no prazo previsto no parágrafo anterior será cobrado com os seguintes acréscimos:

I – juros de mora contados do mês seguinte ao do vencimento, à razão de um por cento ao mês ou fração;

II – multa de mora de dez por cento.

§ 5º Os valores não recolhidos no prazo previsto no § 3º serão inscritos em dívida ativa da ANS, a qual compete a cobrança judicial dos respectivos créditos.

§ 6º O produto da arrecadação dos juros e da multa de mora serão revertidos ao Fundo Nacional de Saúde.

§ 7º A ANS fixará normas aplicáveis ao processo de glosa ou impugnação dos procedimentos encaminhados, conforme previsto no § 2º deste artigo.

§ 8º Os valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei. (NR) (Redação dada ao artigo pela Medida Provisória nº 2.097-38, de 27.03.2001, DOU 28.03.2001).”


“A saúde é direito de todos e dever do Estado”, como preceitua o art. 196 da Constituição Federal, não podendo o Poder Público se furtar a cumprir com suas obrigações. Contudo, o Estado ao atender pessoas que mantêm contratos com operadoras de plano de saúde, acaba por prestar serviços que seriam da responsabilidade das referidas empresas, obtendo estas acréscimos em seus patrimônios, gerados pela omissão nos serviços que lhes competiam, enquanto a rede pública, sobrecarregada, deixa de atender parte da população mais carente, que não tem acesso a planos privados de saúde.

O adjetivo igualitário, disposto no art. 196 da CF/88 pressupõe que se tomem os desiguais na medida de suas desigualdades. Dessa maneira, exigir, daqueles cobertos por planos de saúde, compensação em proveito dos que não possuem condições para segurarem seu risco saúde, assemelha-se não consistir disposição inconstitucional.

Um dos objetivos da Lei 9.656/98 é justamente evitar esse enriquecimento sem causa, por parte das operadoras, na medida em que o Estado estaria a despender recursos que iriam fazer parte do patrimônio de terceiros, sem que houvesse justa causa para isso, impondo à sociedade o custeio estatal, através dos impostos, de um atendimento que poderia estar sendo realizado pela respectiva operadora.

O ressarcimento tem como fundamento, a uma, o princípio geral do direito do não enriquecimento sem causa, face às empresas exercerem atividade lucrativa, também devendo arcar com os ônus e riscos do negócio; a duas, o princípio da moralidade, uma vez que, à luz do art. 199, parágrafo 1o da Constituição Federal, é o setor privado que deve participar de forma complementar do SUS, não cabendo ao Erário fomentar, de forma indireta, os lucros da atividade privada; e a três, o próprio princípio da isonomia, pois o ressarcimento não afasta o dever do Estado de prover saúde a todos os cidadãos indiscriminadamente, mas muito ao contrário, propicia a aplicação de recursos em maior cobertura à expansão dos serviços, em consonância com os princípios da generalidade e da regularidade dos serviços públicos de saúde.

Em complemento, se o poder público deixasse de cobrar o ressarcimento em tela, estaria subvencionando as operadoras, o que é vedado pela Constituição Federal (Art. 199, §2°), na medida em que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, sendo proibida a destinação de recursos públicos para auxílios aos entes privados com fins lucrativos, não ofendendo desta forma a Carta Magna, ao contrário, a sua ausência é que violaria o aludido artigo.

Portanto, a intenção maior do legislador, ao criar o ressarcimento ao SUS, foi justamente respeitar os referidos ditames constitucionais, tendo na sua essência natureza jurídica restituitória e não tributária, como defende a autora, ora apelante. Inexiste, desta forma, desrespeito ao princípio da anterioridade.

Vale lembrar que os planos de saúde e as pessoas atendidas não terão nenhum prejuízo com o ressarcimento, pelo fato que os valores cobrados das operadoras somente serão aqueles efetivamente cobertos pelos contratos, quando o atendimento for realizado por um estabelecimento particular.

No que se refere à possibilidade de a ANS editar resoluções para disciplinar a forma como será feita a arrecadação de valores referentes ao ressarcimento, cumpre ressaltar que, em 28 de janeiro de 2000, através da Lei n.º 9961, tal Agência foi criada vinculada ao Ministério da Saúde, com a finalidade institucional de promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores. O artigo 4º, inciso VI, da lei supra define como competência da ANS estabelecer normas para ressarcimento ao Sistema Único de Saúde. E ainda, o próprio Art. 32 da Lei 9.656/98, ora em comento, em seu § 1° confere competência para tal, demonstrando estar em consonância com o princípio da reserva legal (art. 5°, II e art. 150, I, ambos da CF/88).

Não há falar, como demonstrado, em ofensa ao princípio constitucional da legalidade.

Ademais, tenho que existe um momento certo para que a questionada exigência não mais se faça necessária, qual seja, aquele em que as operadoras observem totalmente seus contratos, colocando à disposição de seus segurados tudo aquilo que se propõem realizar.

Inocorre excesso de cobrança, rechaçada a tese da empresa autora, por não comprovar ter o SUS exigido valores acima dos efetivamente praticados pela ora requerente.

Registre-se, por fim, alicerçando a questão de mérito aqui sustentada, o teor da decisão contida no Informativo n.º 317 do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

“PROSSEGUINDO NO JULGAMENTO, O TRIBUNAL AFASTOU A ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL POR OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO E AOS ARTIGOS 196 E 199 DA CF, BEM COMO PELA ALEGADA CARACTERIZAÇÃO DE DESPROPORCIONAL E DESARRAZOADA INTERVENÇÃO ESTATAL EM ÁREA RESERVADA À LIVRE INICIATIVA, DE DETERMINADOS DISPOSITIVOS DAS NORMAS IMPUGNADAS – QUE, ESTABELECEM, EM SÍNTESE, A INSTITUIÇÃO DO PLANO OU SEGURO DE REFERÊNCIA À SAÚDE; A IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DE COBERTURA DE LESÕES PREEXISTENTES, SALVO NOS PRIMEIROS 24 MESES DO CONTRATO; A COBERTURA DE NÚMERO ILIMITADO DE CONSULTAS MÉDICAS; A VEDAÇÃO À VARIAÇÃO DAS CONTRAPRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS PARA OS CONSUMIDORES COM MAIS DE 60 ANOS DE IDADE, PARTICIPANTES HÁ MAIS DE 10 ANOS; A OBRIGAÇÃO DE OFERTAR TODOS OS BENEFÍCIOS PREVISTOS NA LEI, E O RESSARCIMENTO AO PODER PÚBLICO DOS GASTOS FEITOS PELOS PARTICIPANTES NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE – POR CONSIDERAR QUE OS ARTIGOS IMPUGNADOS, AO ESTABELECEREM OS LIMITES DA ATUAÇÃO DAS OPERADORAS DE PLANOS PRIVADOS DE SAÚDE, ESTÃO EM HARMONIA COM A COMPETÊNCIA DO ESTADO PREVISTA NO ART. 197 DA CF. ADI 1.931-MC-DF, REL. MIN. MAURÍCIO CORRÊA, 21.8.2003.”

Assim, tendo por base os fundamentos ora expressos, nego provimento ao recurso.

É como voto.

SERGIO FELTRIN CORRÊA

Relator

/csl

EMENTA

ADMINISTRATIVO – RESSARCIMENTO DO SUS – LEI 9656/98, ART. 32.

I – O art. 32 da Lei 9656//98 transfere, unilateralmente, à esfera privada o dever constitucional e originário do Estado de prestar, em caráter universal, serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde dos cidadãos, como prescrito no art. 196 da Constituição. Essa transferência de encargos terminará por resultar em aumento desordenado e incontrolável de despesas às operadoras de planos de saúde, recaindo tais aumentos sobre os seus contratados, sobre os valores de suas prestações. Dessa forma, o cidadão, que já não conta com a saúde pública, por ele financiada através do pagamento de tributos, tanto que se sente obrigado a contratar planos privados de saúde, terminará tendo por financiar, por via indireta, através das suas prestações, o próprio sistema público de saúde. Assim, todos os usuários de planos privados de saúde terminarão financiando a saúde pública, ainda que jamais se utilizem dos seus mecanismos. Em verdade, não se pode conceber que as operadoras privadas de tais planos, diretamente, e seus consorciados, indiretamente, passem, com isto, a suprir a deficiência estatal, desconsiderando os tributos que já pagam para isto.

II – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas.

Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, por maioria, dar provimento à apelação, nos termos do relatório e voto constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Rio de Janeiro, 15 de setembro de 2004 (data do julgamento).

Desembargador Federal CASTRO AGUIAR

Relator p/acórdão

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