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Editora é condenada a pagar direitos autorais de tradutores

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29 de março de 2004, 16h10

A Livraria Martins Fontes Editora foi condenada a pagar a dois tradutores do livro O Senhor dos Anéis a quantia de 5% sobre o valor de cada exemplar vendido. A decisão é da 37ª Vara Cível de São Paulo. Ainda cabe recurso.

Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta recorreram à Justiça informando que foram contratados pela editora no início dos anos 90 para a tradução da obra de J.R.R Tolkien e que receberam um adiantamento para fazer o trabalho.

Alegaram que a tradução é também um trabalho de criação intelectual e que o texto em português foi elogiado pela crítica especializada. Contudo, após a tradução acabada, não teriam recebido mais nada da editora.

Argumentaram que não há cessão definitiva dos direitos autorais dos tradutores e que diversos julgados confirmam esse tese. Os dois afirmaram ainda que a Martins Fontes teria obtido enriquecimento injustificado com a obra, já que eles nada tinham recebido pela venda das várias tiragens.

Em sua contestação, a editora classificou o pedido dos tradutores como uma “aventura jurídica”. E afirmou que na época da tradução, como ocorre até hoje, o pagamento era único e não baseado na tiragem.

Ainda segundo a defesa da Martins Fontes, na ocasião a obra era importante, mas não um sucesso de vendas — a explosão só teria ocorrido depois que O Senhor dos Anéis chegou ao cinema. E que, apesar de terem feito outras traduções para a editora, só reclamaram direitos autorais nesse caso.

O juiz acolheu os argumentos dos tradutores e julgou o pedido de pagamento procedente. “Os autores possuem o direito de receber cinco por cento a título de direitos autorais sobre o preço de capa de cada exemplar da obra O Senhor dos Anéis”, registrou.

Segundo o magistrado, o trabalho do tradutor gera direitos autorais e não é tarefa sobre o qual se deva pagar um preço fixo. Consta ainda da sentença que “na falta de estipulação por escrito, que deve existir sempre, não se presume qualquer cessão de direitos”.

O valor total da condenação ainda será apurado. Será descontado do montante o valor recebido como adiantamento pelos tradutores.

Leia trechos da determinação:

(…)

Assim, passemos ao exame do mérito da causa. O artigo 7º., inciso XI da lei 9.610/87 estabelece que: “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: XI as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova.”

Havendo dúvida se a tradução tem proteção de direito autoral, veja-se o artigo 8º que estabelece as obras que não recebem a proteção. Não se fala em tradução. Além disso, o trabalho dos autores teve um caráter novo e mais aprimorado. Já existiam duas traduções para o idioma português.

Vejamos o que diz Ives Gandra Martins Filho, autor de “O Mundo do Senhor dos Anéis” (editora Madras, 2002): “Em língua portuguesa, temos, basicamente, três traduções do Senhor dos Anéis:

1) a portuguesa, publicada em três volumes pela Editora Europa-América (1977), feita por Fernanda Pinto Rodrigues, que, a nosso ver, é a melhor de todas, por conservar o mais possível os nomes originais em inglês;

2) a primeira brasileira, publicada em seis volumes pela Editora Artenova (1979), feita por Luiz Alberto Monjardim, que é a mais fraca de todas, por traduzir os nomes de uma forma um tanto vulgar;

3) a segunda brasileira, publicada pela Martins Fontes, em três volumes (1998) e depois em um só (2001), feita por Lenita Maria Rímili Esteves e Almiro Pisetta, melhor que a primeira, por tentar encontrar nomes portugueses que melhor expressem a idéia que o escritor inglês procurou dar do personagem a quem atribuiu determinado sobrenome (para personagens) ou nome (para acidentes geográficos)”.

(…)

A respeito dos direitos autorais e sua disciplina, temos interessante texto que foi publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico quando da entrada em vigor da atual lei. Os trechos mais interessantes estão transcritos abaixo:

“Relações jurídicas

Displicência contratual e direitos autorais no País

por Marcia Sguizzardi Bittar

Questão de extrema relevância e indiscutível atualidade é a que respeita à seara do Direito de Autor.(…)

No entanto, sabemos que, muitas vezes, a elaboração desses instrumentos garantidores das relações jurídicas inter partes é completamente ignorada ou descuidadamente levada a cabo, gerando lacunas difíceis de suprir e cuja solução, via de regra, vai depender do Poder Judiciário e de tudo quanto aí esteja implicado.A displicência contratual não é um fenômeno isolado, cuja ocorrência se verifique apenas de quando em longe, mas fato corriqueiro em nossa prática negocial moderna. São inúmeros os casos de contratos lacônicos, que não logram positivar, efetivamente, regras suficientes para reger a miríade fática que decorre dos mais diversos negócios jurídicos da atualidade. Tem sido assim na vasta área do Direito Civil, da qual não escapa o Direito de Autor.(…)

E releva notar que, a teor do artigo 4º da Lei nº 9.610/98, interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais, daí decorrendo a maior importância da boa contratação nessa área, de vez que fica desde logo afastada a hipótese de qualquer interpretação extensiva a preencher lacunas eventualmente presentes nos referidos instrumentos contratuais. A Lei nº 9.610/98 deixa arbítrio bastante às partes contratantes, para que as mesmas possam determinar largamente o espectro de ação dentro do qual deverão pautar a execução normal de seus negócios.

A par dessa ampla autonomia contratual, vem atrelada a grande necessidade de cuidado contratual, ou seja, da confecção de instrumentos normativos e reguladores efetivos e resguardadores dos direitos das partes. Quanto maior a autonomia concedida às partes contratantes, tanto mais relevante a posição do contrato como viabilizador de uma relação negocial funcional. O artigo 28 da lei de direitos autorais dispõe que cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, dependendo, outrossim, de autorização prévia e expressa do mesmo a utilização da obra, por quaisquer modalidades (artigo 29).O supracitado dispositivo legal é claro ao exigir a existência de instrumento que positive a efetiva autorização para qualquer forma de utilização que se pretenda dar à obra. E, já que a exigência existe, tal autorização deve ser efetivada da maneira mais clara possível, de modo que todos os detalhes relativos à utilização da obra sejam devidamente contemplados em cláusulas contratuais adequadas.

A confecção de um bom contrato evita desgaste posterior entre as partes envolvidas na execução, oferta ou distribuição da obra, assegurando a cada qual delas as esperadas observação e remuneração de seus interesses. Em realidade, o contrato torna-se um verdadeiro instrumento de pacificação social, ao eliminar, na maior medida possível, a ocorrência de atritos e o recurso ao Poder Judiciário para a solução de eventuais dúvidas ou mesmo litígios.

As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas (ou de fonogramas) são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a qualquer das demais, preceitua o artigo 31, exigindo, dessa forma, a expressa indicação de cada qual das modalidades de utilização pretendidas, seja em instrumento único dotado das respectivas cláusulas de especificação, seja em diferentes instrumentos específicos. Os direitos de autor podem ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, pelo autor ou mesmo por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou outros meios em Direito admitidos (artigo 49), obedecidas as limitações que a própria lei elenca.(…)

Somente é admitida a transmissão total e definitiva dos mesmos direitos, mediante estipulação contratual escrita (aqui, a lei efetivamente exige o contrato, não admitindo outra forma de operar-se a referida transmissão).Na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo de cessão é entendido como sendo de cinco anos, após o que os mesmos direitos retornam ao seu titular originário, a despeito dos eventuais prejuízos que o cessionário venha a apurar!(…)

A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se faz sempre por escrito, presume-se onerosa, ou seja, sempre que haja interesse em declarar a gratuidade de uma determinada cessão, tal deve constar expressamente em cláusula própria, sob pena de ser presumido o caráter oneroso da transação efetuada, em prejuízo do cessionário.(…)

O instrumento de cessão (contrato) deve conter, obrigatoriamente, o seu objeto, bem como as condições relativas ao exercício do direito quanto a tempo, lugar e preço.(…)

Se inexistir cláusula contratual expressa a respeito do assunto, entender-se-á que o contrato versa sobre uma única edição (artigo 56), podendo, entretanto, as partes, convencionar de modo diverso. Em relação à quantidade de exemplares da obra que compõem uma edição, no silêncio do contrato, esse número será considerado como sendo o de três mil exemplares. Novamente, aqui, as partes podem e devem convencionar essa quantidade de maneira expressa, em adequad’ || ‘a cláusula contratual.Qu’ || ‘anto à curial questão remuneratória do autor, esta deve vir mui bem explicitada no contrato celebrado entre as partes, de vez que, em caso de omissão, haverá arbitramento com base em usos e costumes (artigo 57).(…) Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2003.”

(…)

Por tudo o que foi exposto, conclui-se que: a) o trabalho do tradutor gera direitos autorais; b) não é tarefa sobre a qual pode-se pagar um preço fixo ao tradutor; c) na falta de estipulação por escrito, que deve existir sempre, não se presume qualquer cessão de direitos; d) qualquer negócio relativo a direitos autorais tem interpretação restritiva (artigo 4o. da lei).

No presente caso, como não houve qualquer estipulação por escrito das partes, presume-se que as verbas pagas anteriormente tenham sido a título de adiantamento. A requerida deve os direitos aos autores, a título de tradução, no montante mínimo de cinco por cento do preço de cada exemplar, valendo o artigo 38 da lei 9.610/98 como base para isso.

O pedido inicial é procedente, portanto. A questão da prescrição, como se percebe da réplica, tem sua eficácia restrita, posto que os autores sabem que o livro começou a vender mais após a bem sucedida e premiada adaptação para o cinema.

Ante o exposto, julgo procedente o pedido inicial para declarar que os autores possuem o direito de receber cinco por cento a título de direitos autorais sobre o preço de capa de cada exemplar da obra O Senhor dos Anéis, sendo quatro por cento para a autora Lenita e um por cento para o autor Almiro.

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