Debate polêmico

Ellen Grace entende que porte de arma de fogo sem munição é crime

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28 de maio de 2004, 19h34

“A ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação.” Com esse entendimento, a ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie justificou seu voto contrário ao Habeas Corpus que pediu o trancamento da ação penal contra um acusado de porte ilegal de armas. A relatora, no entanto, foi vencida no julgamento da 1ª Turma do STF.

Na terça-feira (25/5), a Turma decidiu que andar com arma de fogo sem munição não é crime de porte ilegal. Segundo o ministro Cezar Peluso, “enquanto uma arma municiada pode representar risco de dano, ou perigo, à incolumidade pública, à segurança coletiva enfim, uma arma desmuniciada já não goza, por si só, dessa aptidão. O mero porte de arma de fogo desmuniciada não tem capacidade para meter em risco o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.”

A ministra argumentou que o crime inscrito no art. 10 da Lei nº 9.437/97 inclui as seguintes condutas: possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo de uso permitido.

Leia a íntegra do voto da relatora:

Voto da ministra Ellen Gracie (relatora)

Conforme consta dos autos, o paciente foi flagrado portando um revólver marca Taurus, calibre 32, sem possuir licença para tanto. Portava a arma na cintura e foi flagrado transitando com ela em local público. Encontrava-se foragido da Justiça diante de condenação anterior por crime de roubo.

O fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, tendo em vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação.

Para a configuração do crime inscrito no art. 10, caput da Lei nº 9.437/97, basta a ocorrência de qualquer das condutas nele discriminadas – possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo de uso permitido – sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

O crime é de mera conduta e, segundo dicção de Fernando Capez, de perigo abstrato, não tendo a lei exigido a efetiva exposição de outrem a risco, sendo irrelevante a avaliação subsequente sobre a ocorrência de perigo à coletividade.

Nos crimes de perigo abstrato, segundo Capez, “a opção política do Poder Legislativo em considerar o fato, formal e materialmente, típico independentemente de alguém, no caso concreto, vir a sofrer perigo real, não acoima a lei definidora de atentatória à dignidade humana. Ao contrário. Revela, por parte do legislador, disposição ainda maior de tutelar o bem jurídico, reprimindo a conduta violadora desde o seu nascedouro, procurando não lhe dar qualquer chance de desdobramento progressivo capaz de convertê-la em posterior perigo concreto e, depois, em dano efetivo. Trata-se de legítima opção política de resguardar, de modo mais abrangente e eficaz, a vida, a integridade corporal e a dignidade das pessoas, ameaçadas com a mera conduta de sair de casa ilegalmente armado. Realizando a conduta descrita no tipo, o autor já estará colocando a incolumidade pública em risco, pois protegê-la foi o desejo manifestado pela lei. Negar vigência ao dispositivo nos casos em que não se demonstra perigo real, sob o argumento de que atentaria contra a dignidade da pessoa humana, implica reduzir o âmbito protetor do dispositivo, com base em justificativas no mínimo discutíveis. Diminuindo a proteção às potenciais vítimas de ofensas mais graves, produzidas mediante o emprego de armas de fogo, deixando-as a descoberto contra o dano em seu nascedouro, o intérprete estará relegando o critério objetivo da lei ao seu, de cunho subjetivo e pessoal. Privilegia-se a condição do infrator em detrimento do ofendido, contra a expressa letra da lei. A presunção da injuria, por essa razão, caracteriza mero critério de política criminal, eleito pelo legislador com a finalidade de ofertar forma mais ampla e eficaz de tutela do bem jurídico.” (“Arma de Fogo – Comentários à Lei nº 9.437, de 20.2.1997”, ed. Saraiva, 1997, págs. 25/26)

Segundo Damásio de Jesus, a incolumidade pública representa o objeto jurídico principal e imediato da norma. Como objetos mediatos e secundários estão a vida, a incolumidade física e a saúde dos cidadãos (“Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados”, Ed. Afiliada, ABDR).

Heleno Cláudio Fragoso, ao tratar dos crimes contra a incolumidade pública previstos no Código Penal, classifica-os como “infrações penais em que a ação delituosa atinge diretamente um bem ou interesse coletivo, ou seja a segurança de todos os cidadãos ou de número indeterminado de pessoas” (“Lições de Direito Penal”, 3º vol., 2ª ed., José Bushatsk, pág.765).

Vê-se, assim, que o objetivo do legislador foi antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população – como o porte de arma de fogo em desacordo com as balizas legais -, prevenindo a prática de crimes como homicídios, lesões corporais, roubos etc. E não se pode negar que uma arma de fogo, transportada pelo agente na cintura, ainda que desmuniciada, é propícia, por exemplo, à prática do crime de roubo, diante do seu poder de ameaça e de intimidação da vítima.

Diante do exposto, nego provimento ao recurso ordinário.

Ministra Ellen Gracie — Relatora

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