Asa de graúna

Anistia diz que situação dos Direitos Humanos no Brasil é obscura

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26 de maio de 2004, 13h53

A maior organização de Direitos Humanos do Planeta, a Anistia Internacional, está divulgando em Londres seu relatório anual. O quadro traçado sobre o Brasil não é nada alentador.

Diz a Anistia que “as medidas de segurança adotadas pelos governos estaduais para combater os elevados níveis de criminalidade urbana continuaram a resultar num aumento das violações de direitos humanos. Milhares de pessoas, predominantemente homens jovens, pobres, negros ou pardos, foram mortos em confrontos com a polícia, freqüentemente em situações oficialmente descritas como ‘resistência seguida de morte’. Poucas ou mesmo nenhuma destas mortes foram investigadas. Policiais também foram mortos em serviço, especialmente em São Paulo, onde vários postos policiais foram atacados”.

De acordo com o relatório, “esquadrões da morte, envolvidos em ‘limpeza social’ e no crime organizado, estiveram, segundo informações, ativos na maioria dos 26 estados do país”.

Leia o capítulo que trata do Brasil:

BRASIL

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Chefe de Estado e de Governo: Luiz Inácio Lula da Silva (em substituição a Fernando Henrique Cardoso, em janeiro)

Pena de morte: Abolicionista para crimes comuns

Convenção da ONU sobre as Mulheres: ratificada com reservas

Protocolo Facultativo à Convenção da ONU sobre as Mulheres: ratificada

O governo federal propôs uma nova política nacional para a segurança pública, que estabeleceu parâmetros para os governos estaduais no que diz respeito ao policiamento e aos direitos humanos. Contudo, as medidas de segurança adotadas pelos governos estaduais para combater os elevados níveis de criminalidade urbana continuaram a resultar num aumento das violações de direitos humanos. Milhares de pessoas, predominantemente homens jovens, pobres, negros ou pardos, foram mortos em confrontos com a polícia, frequentemente em situações oficialmente descritas como “resistência seguida de morte”. Poucas ou mesmo nenhuma destas mortes foram investigadas. Policiais também foram mortos em serviço, especialmente em São Paulo, onde vários postos policiais foram atacados. “Esquadrões da morte”, envolvidos em “limpeza social” e no crime organizado, estiveram, segundo informações, ativos na maioria dos 26 estados do país. As autoridades tomaram conhecimento do contínuo aumento da pratica da tortura e que a tortura continuava a ser amplamente praticada por parte de agentes da lei mas isso não foi o suficiente para reverter este quadro. Trabalhadores rurais sem-terra e indígenas continuaram a sofrer ataques e o número de mortos em consequência de sua luta pelo direito à terra aumentou. Ativistas sem-terra foram detidos sob acusações que, ao que parece, foram motivadas politicamente. Em resposta aos ataques contra os defensores dos direitos humanos, o governo federal designou uma comissão para a elaboração de um plano national para a protecão desses ativistas. Apesar de diversos julgamentos importantes terem sido realizados, alguns culminando em condenações de responsáveis por violações de direitos humanos, a maioria dos violadores continuaram a gozar de uma crescente impunidade.

Informações Gerais

Em janeiro, o recém-eleito governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro governo brasileiro do Partidos dos Trabalhadores (PT), tomou posse. Apesar de ter feito diversas propostas para o investimento social, em particular para combater a fome, as pressões economicas levaram-no a adotar uma rigorosa política fiscal que limita os gastos sociais, enquanto os planos de reformas políticas dominam sua agenda no Congresso. No plano internacional, o governo manifestou-se firmemente a favor do multilateralismo, do Estado de Direito e dos direitos humanos internacionais, num momento em que tais questões estavam sob forte ameaça. Por exemplo, o Brasil recusou-se a assinar um acordo ilegal de impunidade com os EUA para o Tribunal Penal Internacional. Entretanto, o processo de adequação das leis brasileiras às exigências do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional ainda se encontrava em revisão.

Na conferência da Organização Mundial do Comércio em Cancun, no México, em setembro, o Brasil constituiu uma das principais forças na articulação de um bloco de nações que pretendia desafiar as tradicionais potencias econômicas dos EUA e da União Européia.

Em novembro, o Presidente Lula assegurou à Secretária-Geral da AI que apoiaria a campanha mundial para a introdução de um Tratado Internacional para o Comercio de Armas. A AI também considera o “estatuto do desarmamento” editado pelo governo para controlar a posse e venda de armas de pequeno porte como um primeiro passo no combate à violência.

Assassinatos cometidos pela polícia, execuções extrajudiciais e “esquadrões da morte”


Elevados níveis de violência urbana e de crime continuaram a gerar na opinião pública o clamor por um policiamento mais severo e por mais medidas punitivas judiciais. O governo federal delineou um plano de longo prazo para a reforma da segurança pública, que inclui a implementação de princípios de direitos humanos, no seu Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a ser adotado por todos os governos dos estados. Contudo, alguns governos estaduais, como os de São Paulo e Rio de Janeiro, continuaram a defender o uso de métodos policiais repressivos. Ambos os estados registaram aumentos dramáticos no número de civis mortos em conflitos com a polícia. De acordo com números oficiais, a polícia matou 915 pessoas em São Paulo, um aumento de 11% com relação ao ano anterior. No Rio de Janeiro, entre janeiro e novembro, as forças policiais do estado mataram 1.124 pessoas, um crescimento de 34%. Ambos os governos estaduais informaram à AI que o aumento no número de mortos fora o resultado de medidas de policiamento mais fortes. Contudo, muitas destas mortes ocorreram em situações que apontavam para o uso excessivo da força ou execuções extrajudiciais. As mortes raramente foram investigadas, pois geralmente foram registradas como “resistência seguida de morte”. Em São Paulo, numerosos postos policiais foram atacados, segundo informações, por bandos criminosos, resultando na morte de muitos policiais.

* No dia 16 de abril, quatro jovens desarmados foram mortos a tiros na comunidade do Borel, no Rio de Janeiro, durante uma operação realizada pela polícia militar. As circunstâncias exatas das mortes não são claras, mas provas de medicina legal e testemunhais indicavam que os homens haviam sido executados sumariamente. Uma investigação civil só começou dois meses depois de ocorridas as mortes, após manifestações de membros da comunidade e de pressões do governo federal. Cinco policiais militares foram acusados das mortes e suspensos de suas funções. Contudo, a AI manteve inúmeras ressalvas com relação à investigação.

“Esquadrões da morte”, apoiados pela polícia ou por ex-policiais, teriam sido responsáveis por atos de “limpeza social” e envolvimento com crime organizado. Em setembro, durante uma visita ao Brasil, o governo federal disse à Relatora Especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Asma Jahangir, que os “esquadrões da morte” estavam ativos em 15 dos 26 estados brasileiros. A dificuldade em oferecer proteção às testemunhas, o que é necessário para assegurar que corram processos judiciais, tornou-se evidente após o assassinato de duas testemunhas que haviam prestado depoimento a Asma Jahangir, nos Estados da Bahia e da Paraíba. No Estado de São Paulo foi denunciada, por membros da sociedade civil, pela Comissão Estadual de Direitos Humanos e pelo Ouvidor de Polícia, a existência de “esquadrões da morte” nas cidades de Guarulhos e Ribeirão Preto, que seriam responsáveis pela morte de muitos jovens, em circunstâncias que sugerem execuções extrajudiciais. Em 16 de Abril, um policial militar de Guarulhos declarou na TV Globo que esteve envolvido na morte de cerca de 115 pessoas e que 90% das alegadas “troca de tiros” eram encenações da policia para esconder as execuções.

Foram realizados vários julgamentos dos massacres da Candelária e de Vigário Geral, ocorridos em 1993 e nos quais 21 moradores de favelas e oito crianças que viviam na rua foram mortas pelos “esquadrões da morte” da polícia militar. Em fevereiro, um policial foi condenado a 300 anos de prisão pelo massacre da Candelária, e outro, em setembro, a 59 anos de prisão por participação no massacre de Vigário Geral. Dezoito policiais, ouvidos em duas audiências separadas, foram absolvidos de sua participação no massacre de Vigário Geral. O Ministério Público recorreu de nove das absolvições. Segundo informações, de um total de, pelo menos, 40 pessoas envolvidas no massacre de Vigário Geral, apenas duas estão presas.

Foram feitas investigações importantes sobre corrupção e assassinatos cometidos por policiais.

* Em novembro, a Policia Federal em São Paulo instaurou inquérito contra dois delegados de polícia e um juiz federal por envolvimento no crime organizado e na venda de sentenças judiciais. As acusações foram vistas como um passo importante na luta contra a corrupção no sistema de justiça criminal, que há muito contribui para a impunidade que se verifica com relação ao crime organizado e às violações de direitos humanos.

* No dia 4 de dezembro, o Ministério Público do Estado de São Paulo anunciou a acusação de 53 membros da Polícia Militar por homicídios triplamente qualificados. Em 5 de março de 2002, a Polícia Militar, principalmente membros da unidade especial GRADI — originalmente criada para a investigação de crimes de ódio — foram acusados de terem executado sumariamente 12 suspeitos de um bando criminoso na rodovia Castelinho. O Tribunal de Justiça do Estado continuou a investigar o envolvimento do Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo e de dois juízes no mesmo caso.


Tortura e maus-tratos

A tortura continua a ser uma prática sistemática e generalizada na maioria das prisões e delegacias de polícia, assim como também durante o processo de detenção. Depois da morte de Chan Kim Chang, um comerciante chinês aparentemente torturado até à morte por agentes penitenciários no Presídio Ary Franco, em agosto, no Rio de Janeiro, o Chefe de Gabinete do Presidente Lula e o Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro declararam publicamente que ainda existia tortura no Brasil. No entanto, de acordo com relatos, o número de acusações e condenações pela Lei da Tortura, de 1997, não aumentou significativamente. Em 26 de junho, o governo lançou uma segunda campanha contra a tortura, envolvendo desta vez formação para promotores e juízes.

No sistema de detenção juvenil, FEBEM, de São Paulo continuaram a ser denunciados casos de tortura, rebeliões, violência entre detentos, fugas e o uso de disputas trabalhistas como fator desestabilizador. Em junho, delegados da AI e grupos locais de direitos humanos visitaram a Unidade 30 do Complexo Franco da Rocha, na FEBEM. Eles documentaram dezenas de casos de espancamentos e outras formas de tortura, que teriam sido cometidas por guardas penitenciários. Os menores afirmaram que, em sua chegada na Unidade, foram obrigados a correr descalços por corredores repletos de cacos de vidro. Os detentos declararam que a tortura é cometida com total impunidade por uma minoria de guardas. As unidades 30 e 31 de Franco da Rocha foram fechadas no final do ano.

Condições de detenção e mortes sob custódia

Os detentos em delegacias de polícia, prisões e centros de detenção juvenis continuaram a ser encarcerados em condições cruéis, desumanas e degradantes. Foram amplamente relatados casos de superlotação, más condições sanitárias, acesso limitado a servicos de saúde, uso persistente da tortura, rebeliões e violência entre os próprios presos. Pelo menos 285 mil presos encontravam-se detidos num sistema prisional construído para acomodar 180 mil.

A AI continuou a manifestar a sua preocupação com relação ao Regime Disciplinar Diferenciado, uma proposta de medida disciplinar que permite que presos de alta periculosidade sejam confinados em um regime de incomunicabiliddade, popularmente conhecido como “solitária”, durante períodos até um ano nas penitenciárias de segurança máxima. O Congresso aprovou formalmente a proposta, que entretanto também foi amplamente condenada por ser considerada inconstitucional e uma violação dos direitos humanos fundamentais.

Na delegacia de roubos e furtos de Belo Horizonte, mais de 20 detentos foram mortos por outros internos durante o ano. Cerca de 530 detentos foram encarcerados em 22 celas com capacidade para abrigar, no máximo, 67 pessoas. Membros do Ministério Público declararam à AI que continuaram a receber queixas dos detentos sobre tortura cometida naquela e em outras delegacias de polícia da cidade.

Defensores de direitos humanos

Os defensores dos direitos humanos, classificados por certas autoridades _ e jornalistas como “defensores de bandidos”, enfrentaram continuas ameaças às suas vidas. Em junho, o Secretaria Especial da Presidência para os Direitos Humanos designou uma comissão, composta por autoridades federais e estaduais, bem como por integrantes da sociedade civil, para elaborar um plano nacional de proteção para os defensores dos direitos humanos.

No Espírito Santo, a “missão especial” designada pelo governo federal para investigar o crime organizado e os “esquadrões da morte” no estado efetuou diversas prisões de personalidades importantes, incluindo o ex-presidente da Assembleia Legislativa Estadual e um coronel reformado da Polícia Militar. Um juiz envolvido no caso, Alexandre Martins, foi assassinado por um atirador profissional no mês de março. O Secretário de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo declarou acreditar que a morte estava ligada à prisão do coronel da Polícia Militar reformado.

Violência contra os povos indígenas

Houve uma escalada nas mortes, intimidações e perseguições das populações indígenas. Em outubro, 23 líderes indígenas foram assassinados. O processo de demarcação de territórios indígenas foi interrompido em muitas áreas sendo que, segundo relatos, em algumas delas a interrupção se deveu a negociatas políticas, resultando num aumento dramático da tensão nessas regiões. Líderes indígenas foram criminalizados em virtude de suas atividades políticas e os ataques contra eles foram freqüentemente negados pelas autoridades e classificados como resultado de disputas tribais. O Ministro da Justiça afirmou à AI que todas as mortes de indígenas durante o ano se deveram a conflitos internos das aldeias.

*Em 7 de fevereiro, em Pesqueira, Estado de Pernambuco, o cacique da tribo Xucuru, Marcos Luidson de Araújo, e o seu sobrinho de 12 anos, escaparam a uma aparente emboscada, na qual dois outros indígenas, Adenílson Barbosa da Silva e Joséilton José dos Santos, foram mortos. Em outubro de 2002, a Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos determinou ao Governo Brasileiro que protegesse o cacique Marcos Luidson, o que não aconteceu. Um homem foi acusado de estar envolvido no ataque. De acordo com relatos, a Polícia Federal, encarregada da investigação do atentado, tentou repetidamente acusar a vítima, Marcos Luidson, de tê-lo provocado. Uma área de 27 mil hectares, demarcada a favor da tribo Xucuru em 1992, tem sido disputada por latifundiários desde então e, após 1998, duas lideranças da tribo Xucuru já foram assassinadas.


Violência e conflito pela terra

Violência, ameaças, intimidação e perseguição política de ativistas rurais continuam a ser endêmicos. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, 53 ativistas rurais foram mortos entre janeiro e setembro. Somente cinco pessoas foram presas como consequência das 976 mortes ocorridas entre 1985 e 1996. A região que registrou maior incidência de violência relacionada a conflitos rurais foi, mais uma vez, o sul do Estado do Pará, uma área atingida por trabalho escravo, tráfico de drogas e conflitos agrários. Até setembro, 31 mortes haviam sido registradas no Pará, a maioria no sul do Estado.

* Em 12 de setembro, sete trabalhadores rurais e um agricultor foram mortos por homens armados, em São Felix do Xingu, um dia depois de terem sido ameaçados por seguranças de um proprietário local, com quem os trabalhadores disputavam os direitos sobre a terra.

* Em 4 de agosto, no Estado do Paraná, Francisco Nascimento de Souza, uma liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi encontrado morto a tiros na cidade de Mariluz. O nome de Francisco Nascimento constava de uma “lista de morte” que indicava 7 lideranças do MST que deveriam ser assassinadas no Estado do Paraná.

Os sem-terra foram presos sob acusações que aparentavam ser politicamente motivadas. No Pontal do Paranapanema, em São Paulo, o dirigente nacional do MST, José Rainha Junior, foi condenado a dois anos e oito meses de prisão por porte ilegal de arma. O Secretário Especial para os Direitos Humanos do governo federal teria descrito a sentença como sendo absurda. Em novembro, o Supremo Tribunal Federal acatou o pedido de habeas corpus de José Rainha Junior e ele foi libertado, enquanto aguarda o julgamento do recurso. De acordo com relatos, um juiz na região emitiu 11 mandados de prisão contra 40 integrantes do MST, entre setembro de 2002 e setembro de 2003. Os mandados, todos eles anulados, caracterizavam a organização como bando criminoso, uma descrição condenada, entre outros, pela AI.

Defensores dos direitos humanos no nordeste relataram que oito trabalhadores rurais, presos no Estado do Paraíba, também foram detidos aparentemente por acusações politicamente motivadas e torturados durante a detenção.

As condenações, em dois casos separados, dos responsáveis por encomendar a morte de ativistas sem-terra, foram uma importante vitória na luta contra a impunidade. Em 25 de maio, no Estado do Pará, Vantuir Gonçalves de Paula e Adilson Carvalho Laranjeira, um ex-prefeito, foram condenados a 19 anos e 10 meses de prisão por mandar assassinar o sindicalista João Canuto, em Rio Maria, em 1985. No Estado do Maranhão, o proprietário rural Osmar Teodoro da Silva, foi condenado a 19 anos de prisão, por ter mandado assassinar o padre e agente da Comissão Pastoral da Terra, Josimo Moraes Tavares, morto por um atirador em 1986.

Relatórios/Visitas da AI

Relatórios

Brasil: Rio de Janeiro 2003: Candelária e Vigário Geral 10 anos depois (Índice AI: AMR: 19/015/2003)

Visitas

Delegados da AI visitaram o Brasil em março e junho de 2003 para realizar pesquisas. Em novembro, a Secretária-Geral e delegados conheceram o Presidente e outros membros do governo, assim como os governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, integrantes da sociedade civil e vítimas de violações de direitos humanos. Um delegado da AI assistiu ao julgamento de Vantuir Gonçalves de Paula e de Adilson Carvalho Laranjeira, em maio.

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