Lambanças judiciais

Contribuintes não podem ser vítimas do embate Judiciário x Judiciário

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24 de maio de 2004, 13h56

I – Breve introdução

Leitor, essa não será a defesa uma tese, nem mesmo serão sacadas conclusões da algibeira para revolucionar o meio jurídico. Não, este texto tem como único escopo relatar a experiência de um qualquer que deveria ser, teoricamente, indispensável à administração da Justiça, segundo aquela edição periódica – a Constituição Federal.

O fato se deu no 06 de abril de 2004, um dia antes de vencer o prazo de 30 (trinta) dias estipulado no r. despacho proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que revogou a liminar obtida pela OAB/SP em prol das sociedades de advogados de São Paulo, ao pagamento de todo o montante não pago pelas sociedades durante o período de vigência da liminar.

Apenas para dar o contexto dos fatos, lembre-se que o dia 07 de abril – quarta-feira – foi dia de recesso no âmbito da Justiça Federal, mesmo não sendo feriado nacional.

Não passava das 14hs quando a petição inicial de um Mandado de Segurança pleiteando a isenção de uma sociedade que preenche os requisitos da Súmula 276 foi protocolada no distribuidor da Justiça Federal. Aí começavam as aflições. Quando o relógio já marcava 17hs, o Mandado de Segurança ainda não havia sido distribuído para Vara Federal alguma e os advogados no saguão recebem a notícia da “queda do sistema”.

Mais uma hora e meia para o restabelecimento das atividades de distribuição do Fórum e o relógio me mostrava que faltavam apenas 30 minutos para o encerramento do expediente, sendo que o Mandado de Segurança não havia sido sequer distribuído.

Pois bem, às 18h45m, depois de quase cinco horas do protocolo da petição inicial de uma ação que, em tese, é urgente, consigo saber que o feito foi distribuído. Subo à Vara Federal (e aqui me reservo a não dizer a qual Vara Federal foi distribuída a ação) e sou obrigado a esperar mais 40 minutos para Vossa Excelência analisar uma tese já pacificada no âmbito do STJ.

Qual não foi minha surpresa ao me deparar com o indeferimento da liminar, cujo argumento consistiu na defesa do artigo 195 da Constituição Federal, que não exigiria lei complementar para a regulamentação da seguridade social, bastando mera lei ordinária. Logo, a Lei Complementar 70/91 faria vezes de lei ordinária e, conseqüentemente, poderia ser derrogada pela Lei ordinária 9.430/96. Essa foi o que fora aduzido incidentalmente pelo Sr. Ministro Moreira Alves nos autos da Ação Direta de Constitucionalidade nº 01/DF.

Aqueles que militam no Direito Tributário sabem que a tese já foi há muito espancada pelo E. STJ e, mais recentemente, pelo próprio E. STF, senão, vejamos.

II – A isenção conferida pela LC 70/91, sua confirmação pelo STJ e a rejeição do argumento da ADC 01/DF

Não é novidade que o Superior Tribunal de Justiça consagrou, há muito, a prevalência da Lei Complementar nº 70/91 sobre a Lei ordinária 9.430/96, que pretendia a revogação da isenção da COFINS às sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada, registradas no registro civil de pessoas jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país.

O entendimento pacífico do E. STJ está configurado no julgamento dos Embargos de Divergência opostos ao REsp nº 354.012/SC, relator Min. Franciulli Netto, que pacificou a jurisprudência da Primeira Seção daquela Corte, especializada em Direito Público, bem como na Súmula 276, que veio a representar o coroamento da tese.

A Lei Complementar 70/91 estatuiu, em seu artigo 6º, inciso II, que as sociedades de que trata o artigo 1º, do Decreto-lei 2.397/87, estão isentas do recolhimento da COFINS. Quer dizer, “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentadas, registradas no registro civil das pessoas jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país” gozam da isenção da COFINS.

O Fisco Federal tem entendido que as sociedades civis indigitadas não gozam atualmente do benefício da isenção concedido pelo artigo 6º, inciso II, da Lei Complementar 70/91, em face de sua suposta revogação pelo artigo 56 da Lei Ordinária 9.430/96.

Mas, por interpretação constitucional, vê-se que a exegese do princípio da hierarquia normativa faz cair por terra o entendimento do Fisco, pois a lei ordinária não é instrumento normativo hábil para revogar a isenção concedida por lei complementar.

É que, como é cediço, a COFINS foi instituída por meio de Lei Complementar, de modo que apenas outra lei de igual hierarquia poderia revogá-la. Na mesma vereda, tem-se que a isenção ao recolhimento da COFINS foi conferida também pela mesma lei complementar – a LC 70/91 – do que decorre que eventual revogação do benefício da isenção, para gerar efeitos, deveria vir também de uma lei complementar. Desta feita, o benefício fiscal guarda todas as garantias jurídicas que lhe confere esta espécie normativa.


A hierarquia das leis vem expressa no artigo 59 da Constituição Federal. Consoante seu regramento, o processo legislativo compreende a elaboração de Emendas à Constituição, Leis Complementares, Leis Ordinárias, Leis Delegadas, Medidas Provisórias, Decretos Legislativos e Resoluções, nessa ordem. A ordem na enumeração das Leis, concorda a doutrina nacional, demonstra a hierarquia das leis a ser obedecida no Direito Brasileiro. E, por análise até mesmo superficial, vê-se a posição hierárquica superior da Lei Complementar em desfavor à Lei Ordinária.

Ademais, o artigo 69 da Constituição Federal também demonstra a superioridade hierárquica da Lei Complementar ao exigir aprovação legislativa por maioria absoluta, ao passo que as leis ordinárias são aprovadas por maioria simples.

Diferenciam-se, portanto, as Leis Complementares das Leis Ordinárias pelo quorum de aprovação qualificado a que se sujeitam as primeiras: enquanto a aprovação das leis ordinárias não requer mais do que o voto da maioria dos parlamentares presentes à sessão em que a lei for votada (maioria simples), a aprovação da Lei Complementar requer o voto favorável da metade de todos os membros que compõem as duas Casas Legislativas mais um (maioria absoluta).

A razão de tal distinção é o desejo de se conferir à Lei Complementar maior estabilidade, solidez e segurança jurídica. A repercussão da matéria nela versada é de tamanha importância que a lei não pode ficar à mercê de alterações promovidas por maioria simples, justamente porque para sê-la, há que se implementar debate legislativo profundo.

Logo, por força dos princípios da legalidade tributária, da hierarquia das leis, a isenção concedida por meio da Lei Complementar só pode ser revogada através de norma jurídica da mesma natureza, qual seja, a Lei Complementar, motivo pelo qual a Lei Ordinária 9.430/96 não pode se sobrepor à Lei Complementar 70/91.

Está a se falar, aqui não só de violação à hierarquia legal instituída pela Constituição Federal, mas também da violação do princípio da segurança jurídica, cujo regulamento não incide somente no Sistema Tributário Nacional, mas em todo Estado de Direito.

A jurisprudência do E. STJ sempre foi favorável à tese, a exemplo de AGRESP 422.741/MG, AGRESP 226.386/PR, RESP 221.710/RJ, AGRESP 297.461, RESP 260.960/RS, RESP 227.939/SC, RESP 573482/RS, RESP 434189/RS, Embargos de Divergência no REsp 354012/SC e, finalmente, Súmula 276.

A Fazenda Nacional, entretanto, argumentava que não era possível estabelecer um conflito de leis, uma hierarquicamente superior a outra, pois o artigo 195 da Constituição Federal diz que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei. E, como não há menção específica de “lei complementar”, chegar-se-ia à conclusão que o constituinte se reportava à necessidade de mera lei ordinária à regulamentação.

Para corroborar sua tese, dizia que esse era o julgamento contido na Ação Direta de Constitucionalidade nº 01/DF, tramitada no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, a alegação não vinga, pois o E. STJ se manifestou reiteradamente contrário ao fundamento apresentado, a exemplo de AgRgREsp n.º 465.275/PR, AgRgREsp n.º 463.553/RS, AgRgREsp n.º 463.472/RS, AgRgREsp n.º 462.899/SC, AgRgREsp n.º 462.761/SC, AgRgREsp n.º 450.273/SC, AgRgREsp n.º 443.945/RS, AgRgREsp n.º 437.618/BA, AgRgREsp n.º 329.251/RS, AgRgREsp n.º 443.341/PR, AgRgREsp n.º 263.031/RS, AgRgREsp n.º 417.359/PR, AgRgREsp n.º 416.983/RS, AgRgREsp n.º 380.045/RS, AgRgREsp n.º 379.425/SC e AgRgREsp n.º 250.541/DF.

Até mesmo o próprio Supremo Tribunal Federal é contra o argumento.

O primeiro precedente do E. STF é a Reclamação 2475. Naquela decisão, a Suprema Corte indeferiu liminar requerida pela Fazenda Nacional na Reclamação contra decisão do E. STJ, que determinou a isenção da COFINS por parte das sociedades civis. O objeto do julgamento que deu origem à Reclamação era justamente a impossibilidade isenção da isenção conferida pela LC 70/91 pela Lei ordinária 9.340/96.

A Fazenda Pública sustentou que a manutenção da decisão do E. STJ ofenderia a autoridade da decisão proferida pelo E. STF no julgamento da Ação Declaração de Constitucionalidade (ADC nº 1/DF), que declarou a constitucionalidade de vários artigos e expressões da LC 70/91, instituidora da COFINS. Ainda, alegam que a Constituição Federal não exigiria lei complementar para disciplinar a contribuição, legitimando a revogação, pelo artigo 56 da Lei 9.430/96, da isenção da COFINS para as sociedades civis de prestação de serviços profissionais.

O Min. relator Carlos Velloso, ao apreciar o pedido de liminar, considerou a decisão proferida na ADC nº 01/93. Naquele julgamento, o STF limitou-se a declarar, com os efeitos vinculantes, a constitucionalidade dos artigos 1º, 2º e 10, e também da expressão “a contribuição social sobre o faturamento de que trata esta lei complementar não extingue as atuais fontes de custeio da Seguridade Social”, do artigo 9º, todos da Lei Complementar 70/91. No mesmo julgamento, declarou-se ainda a constitucionalidade da expressão “esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir do primeiro dia do mês seguinte aos noventa dias posteriores, àquela publicação”, do artigo 13, também da LC 70/91.


O Min. Carlos Velloso ponderou, também, que a decisão não teria assentado ser a Lei Complementar 70/91, lei complementar simplesmente formal. Com essa consideração, Velloso afirmou que “pelo menos ao primeiro exame, não vejo configurado o fumus boni juris que autorizaria o deferimento da liminar”, e indeferiu a liminar.

Quer dizer, não há sequer fumaça do bom direito que acolha a tese defendida pela Fazenda Nacional e sustentada pelo Juízo a quo para indeferir a liminar quista no caso concreto.

Pois bem, da decisão proferida pelo Min. Carlos Velloso foi tirado Agravo Regimental pela Fazenda Nacional. O argumento sustentado foi novamente o desrespeito à ADC nº 01/93, que teria determinado que a LC 70/91 seria materialmente ordinária. O julgamento do Agravo Regimental interposto na Rcl 2475 foi realizado em 07 de fevereiro de 2004, sendo que o Min. Carlos Velloso reiterou que “o efeito vinculante, evidentemente, é para o que foi decidido pela Corte”.

Segundo ele, na decisão proferida da ADC nº 01/93 não se lê que a LC 70/91 é Lei Complementar simplesmente sob o ponto de vista formal ou que ela é materialmente Lei Ordinária.

“E não está escrito no dispositivo da decisão porque o Tribunal (STF) isso não decidiu. E não decidiu, primeiro, porque não foi pedido; segundo, porque para decidir pela constitucionalidade da LC 70/91 não seria necessário decidir ser essa Lei Complementar simplesmente formal”.

O Min. Carlos Velloso foi acompanhado em seu voto pelos Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence.

O segundo e mais recente precedente do E. STF, julgado em 10 de fevereiro de 2004, é o que consta da Reclamação 2518, relator Min. Carlos Velloso. A União, pela Fazenda Nacional, propôs a Rcl 2518, com pedido de liminar, contra decisão da Primeira Turma do E. STJ, que manteve a isenção instituída pela LC 70/91, em detrimento à Lei 9.430/96.

O argumento é o mesmo: que a decisão do E. STJ desrespeitaria o que foi decidido na ADC nº 01/93, sendo que a rejeição teve o mesmo sustento daqueloutra, segundo a decisão proferida pelo relator Min. Carlos Velloso.

“(…) A decisão, está-se a ver, NÃO assentou ser a Lei Complementar 70/91 lei complementar simplesmente formal (…)”

No mesmo sentido foi o julgamento da Reclamação 2517/RJ, relator Min. Joaquim Barbosa. Ali também foi asseverado que a decisão da ADC nº 01/93 NÃO assentou ser a LC 70/91 lei complementar simplesmente formal, do que leva a afirmar que não a é.

III – Conclusão: à espera de um milagre (ou apenas de bom senso)

Disse alhures acerca da surpresa ao me ver defronte ao indeferimento da liminar. Agora, após a análise amiúde do contorno jurídica da Súmula 276, é sintomático imaginar o tamanho do descontentamento sentido. A aflição se tornou ainda maior em razão da negação da liminar ser levada a efeito um dia antes do recesso forense da Justiça Federal em dia que não era feriado nacional, estadual e/ou municipal, pois, como augurava, a simples apreciação do pedido de efeito suspensivo em um Agravo de Instrumento levaria tempos à fio, tal e qual está acontecendo atualmente.

Doutores, apesar deste ser um caso particular, acredito que muitos daqueles que tomarem o texto à leitura irão se identificar, de uma forma ou de outra. Não se sabe o que é pior: o aviltamento da advocacia perante o Poder Judiciário ou o desdém do mesmo Poder Judiciário em desfavor dos jurisdicionados.

Ora, não é crível que os contribuintes tenham que ficar à mercê do embate “Judiciário x Judiciário”, pois o E. STJ e o E. STF são favoráveis à isenção, entretanto, a Primeira Instância nega o reconhecimento do benefício fiscal. Também não é aceitável que advogados, profissionais fundamentais à persecução da Justiça, em si mesma, tenham que ficar sujeitos à lentidão institucionalizada pelo corporativismo do Poder Judiciário.

Em “A Divina Comédia”, Dante é conduzido por Virgílio nos meandros do após-morte. E, ao se deparar com os portões do inferno, Dante é tomado de desespero ao se dar conta que o inferno não é um lugar onde o fogo ardo, o ar cheira enxofre e capetas correm com tridentes em mão. Na verdade, a condição sine qua non é deixar toda e qualquer esperança à porta. Quer dizer, o inferno é viver sem esperanças.

Não há dúvidas que estamos sem esperança, em um verdadeiro inferno, mas, um pouco de bom senso iria esfriar a caldeira.

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista do Albino Advogados Associados, é especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Tributação do Setor Industrial pela FGV. É membro do Conselho Consultivo da APET e da Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo e coordenador da Subcomissão de Direito Tributário e Financeiro.

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