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ANPR defende condução de investigação criminal pelo MP

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20 de maio de 2004, 13h05

“Em nenhum momento a atual Constituição estatui a exclusividade ou o monopólio da investigação. Até porque, em relação ao Ministério Público, há autorização constitucional expressa, conforme já salientado. Depois, não é preciso muito para concluir que se a atividade investigatória for atribuída exclusivamente à polícia o próprio êxito da jurisdição criminal ficará comprometido, já que não é possível desprezar todos os outros mecanismos republicanos constitucionalmente previstos, que não se confundem com o inquérito policial, dos quais podem advir provas do cometimento de ilícitos.”

A afirmação é da Associação Nacional dos Procuradores da República, que detalha — em uma nota técnica — porque o Ministério Público deve conduzir investigações criminais.

Leia a nota

NOTA TÉCNICA

REF. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A ANPR sublinha quatro aspectos que estão no cerne da discussão relativa à atribuição investigatória do Ministério Público na seara criminal, sendo os dois primeiros de natureza principiológica e os demais de exegese constitucional.

I – DA INEXISTÊNCIA DE SEPARAÇÃO ENTRE AS FUNÇÕES DE ACUSAÇÃO E INVESTIGAÇÃO

É comum observar, aqui e ali, alguns argumentos no sentido de que, no processo acusatório, vigoraria o princípio da separação entre as funções de investigação, acusação e julgamento. A assertiva não é verdadeira e talvez se explique por uma analogia equivocada entre o processo penal brasileiro e o modelo vigente nos países que adotam o juizado de instrução.

O Code d’Instruction Criminelle de 1808, de Napoleão Bonaparte, que fez escola tanto quanto o seu famoso Código Civil, estabeleceu a separação estrita das funções de acusação, instrução e julgamento, nos marcos de um procedimento em que o juiz de instrução ocupa lugar de destaque. Na concepção original desse sistema, já bastante modificado na Europa, quem acusa (o procurador ou promotor) não instrui e quem instrui (o juiz de instrução) não julga (quem julga é o tribunal).

Alguns pretendem transpor a sistemática do juizado de instrução para o Brasil, substituindo, na sua equação, o termo ocupado pelo juiz de instrução pela Polícia judiciária. Chegar-se-ia, assim, à equivocada conclusão segundo a qual o Ministério Público acusa e a Polícia investiga, sendo tais funções separadas e incomunicáveis. Como dito, a analogia é descabida, data venia.Em alguns países nos quais se adota o Juizado de Instrução, impede-se que o membro do Ministério Público realize a instrução, privativa do juiz. Nela, o juiz de instrução tem amplos poderes, determina a prisão preventiva, escutas telefônicas, busca e apreensão etc. O princípio liberal determina que tais medidas não devam ser decididas pelo órgão acusador. Ora, a Polícia no Brasil não realiza instrução. Nem ela nem o Ministério Público podem adotar medidas de maior gravidade que firam a liberdade ou a intimidade do indivíduo, devendo ambos solicitá-las ao juiz.

Não existe, assim, do ponto de vista da liberdade, qualquer ofensa ou perigo no fato de o agente do Ministério Público, promotor privativo da ação penal, requisitar documentos, perícias e ouvir testemunhas para colher os elementos de convicção necessários, não mais, de qualquer modo, do que acontece quando essas diligências são realizadas pela autoridade policial.

Assim, o princípio próprio do juizado de instrução, da separação das funções de acusação, instrução e julgamento, não corresponde, por ausência de razão jurídica, a uma suposta separação das funções de acusação, investigação e julgamento. Tanto é assim que nesses mesmos países não existe qualquer barreira entre as funções de investigação e de acusação. Ao contrário, muitas vezes a Polícia é diretamente subordinada ao Ministério Público, que dirige e coordena as investigações preliminares, como na França, Itália, Portugal, Espanha, Chile, Bolívia, Venezuela etc. Tal circunstância não é de modo algum considerada atentatória aos direitos e liberdades individuais.

II – A QUESTÃO DA IMPARCIALIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Nesse tema da imparcialidade, há dois argumentos que costumeiramente são opostos à investigação pelo Ministério Público, que diferem e até conflitam entre si.

O primeiro deles afirma que o membro do Ministério Público, no exercício da acusação penal, deve manter-se imparcial quanto aos resultados das investigações realizadas pela Polícia, não podendo, por essa razão, desenvolvê-las pessoalmente. O segundo, ao contrário, parte da premissa oposta de que o membro do Ministério Público, por ser o titular da ação penal, é parcial, podendo ser levado, por essa razão, a realizar uma investigação tendenciosa.


Na primeira hipótese o membro do MP seria imparcial e deveria manter distância do trabalho da Polícia, que poderia agir com parcialidade; na segunda, o membro do MP seria parcial e, por isso, as investigações deveriam ser realizadas pela Polícia, que seria, então, mais imparcial na colheita da prova.

A primeira tese foi corretamente rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao adotar, em 13 de dezembro de 1999, a Súmula 234, que afirma: “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”. Nada mais fez a Corte do que aplicar entendimento pacífico na doutrina, de que o Ministério Público é parte pública no processo penal. É o juiz quem deve ocupar o ponto eqüidistante entre acusação e defesa, entre o acusado e o Ministério Público, cuja função constitucional é defender a ordem jurídica, que no âmbito criminal, existindo indícios de materialidade delitiva e autoria levará ao início da ação penal com o oferecimento da denúncia.

A 2ª hipótese é afastada pela natureza da imparcialidade do Ministério Público. A imparcialidade do Ministério Público significa que, existindo o fato típico a ser investigado, a prova deverá ser colhida para se chegar à autoria e à materialidade delitiva. Assim, o membro do Parquet não inicia a investigação porque pretende punir alguém, mas sim porque existe um fato típico. O momento em que ele exerce o seu juízo valorativo como parte pública é com o oferecimento da denúncia.

Tal juízo poderá ser renovado nas alegações finais quando o membro do Ministério Público poderá até mesmo requerer a absolvição. Já o momento do exercício do juízo de valor pelo Juiz se dá quando da prolação da sentença.

Portanto, não é verdadeiro o argumento que o membro do Parquet somente buscaria provas que servissem à acusação, deixando de pesquisar elementos que pudessem interessar à defesa.

O problema desse argumento é que seus defensores, sem maior justificativa, creditam à Polícia judiciária, em detrimento do MP, a possibilidade de realizar uma investigação imparcial. Ora, Polícia e Ministério Público estão igualmente encarregados e interessados na elucidação de fatos delituosos e na promoção da ordem pública, não havendo razão suficiente para acreditar que um seja mais imparcial que o outro.

Ressalve-se os Delegados de Polícia são subordinados ao Poder Executivo, não possuindo as garantias de independência e as prerrogativas dos membros do Ministério Público. Quando o Constituinte conferiu ao membro do Parquet independência funcional similar à dos juízes, não foi apenas para que pudesse acusar “livre de pressão”, mas também para que pudesse não acusar, se razão jurídica não houvesse para tal. A independência conferida pela Constituição a procuradores da República e promotores de Justiça é garantia não só para o Estado, mas sobretudo para o cidadão. E é tal independência funcional que os habilita a uma maior imparcialidade.

Dentre os argumentos da imparcialidade do Ministério Público para colher a prova e atuar na ação penal, há que se trazer à reflexão, ainda, o fato de que, em se tratando de crimes praticados por policiais, as investigações pelo Ministério Público decorrem de sua função constitucional de exercer o controle externo da atividade policial. (1)

III – A EXEGESE DO ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O debate, por vezes, concentra-se na exegese a ser dada ao art. 144 da Magna Carta, que alguns afirmam ter conferido exclusividade à Polícia judiciária na condução de investigações criminais.

A Constituição, no dispositivo em questão, faz distinção entre as funções de apuração de crimes e de polícia judiciária. Com efeito, ao tratar da Polícia Federal (§1º), destinou os dois primeiros incisos à função de apuração e o último, inciso IV, ao exercício da polícia judiciária da União, só tratando de exclusividade em relação a este último. O §4º, relativo às polícias civis, também estabelece a diferença, asseverando que lhes incumbem “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

Apesar da má técnica, pois não era o caso de distinguir essas duas funções, fato é que a Constituição o faz. Deve-se entender, pois, que a função de polícia judiciária consiste unicamente na execução de ordens emanadas do Poder Judiciário no âmbito do processo penal, como os mandados de prisão, busca e apreensão, requisições de perícias etc.

A questão é relevante, pois nos dois primeiros incisos, relativos à apuração de crimes, não se falou em exclusividade, que só foi mencionada no inciso IV, referente à função de polícia judiciária. Uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição revela que não há que se falar em exclusividade da atividade investigatória nas mãos da Polícia.


Sendo certo que não há palavras inúteis no texto constitucional, torna-se necessário perscrutar qual o sentido e a conseqüência jurídica decorrente do fato de a Constituição haver separado a “apuração de infrações penais” das “funções de polícia judiciária” (cf. art. 144, § 4., CF).

De fato, em linhas tradicionais, a polícia é dividida em polícia administrativa, de segurança e judiciária. “A primeira teria por objeto as limitações impostas a bens jurídicos individuais, especialmente a liberdade e a propriedade, destinadas a assegurar o êxito da administração: medidas negativas, de polícia, que viriam completar as positivas de administração. (…) Já a polícia de segurança tem por objetivo as medidas preventivas que em sua prudência julga necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas” (2). Finalmente, a polícia judiciária possui como finalidade desenvolver as tarefas de investigação e apuração da autoria de infrações penais.

Tudo indica que, ao separar explicitamente, por duas vezes, a apuração de infrações penais das funções de polícia judiciária da União, a Constituição Federal abandonou a divisão clássica acima citada, para reservar um sentido específico a cada uma destas expressões.

A primeira delas, “apuração das infrações penais”, obviamente, corresponde ao sentido clássico de polícia judiciária, ou seja, às atividades vinculadas à elucidação de ilícitos de natureza penal, através do inquérito policial. No que concerne a estas atividades, não há exclusividade constitucionalmente prevista. Pelo contrário. Da adoção do princípio republicano, que pressupõe extensos mecanismos de controle, decorre a previsão, no sistema, de uma série de órgãos e instrumentos capazes de desvendar fatos que podem constituir ilícitos penais, seja ou não este seu objetivo principal. Por isso, além das polícias, a Constituição também dispõe, dentre outros, sobre o Ministério Público e sua capacidade investigatória civil e penal; o poder investigatório das Comissões Parlamentares de Inquérito; os direitos de informação e certidão de todos os cidadãos; os meios e recursos inerentes ao contraditório e à ampla defesa em processo judicial ou administrativo; a apuração de ilícitos praticados por servidores públicos em processo administrativo disciplinar; o poder de convocação da Câmara, do Senado ou de suas Comissões; os sistemas de controle dos dinheiros e bens públicos, exercido internamente ou em caráter externo pelos órgãos legislativos, auxiliado pelos tribunais de contas, etc (3).

Como conseqüência direta ou indireta de todas essas previsões constitucionais, pode-se chegar à constatação de que o órgão policial pode e deve apurar ilícitos penais, através do inquérito policial, mas esse não é o único instrumento capaz de trazer à tona a ocorrência de crimes e a sua autoria, tanto que o mesmo é dispensável para a deflagração da ação penal. Aliás, dentre os meios referidos há alguns que implicam exercício de poderes mais amplos do que os inerentes ao inquérito policial, como as CPI’s, que possuem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (artigo 58, § 3° – salvo aqueles referentes à reserva de jurisdição), e, em alguns aspectos, o Ministério Público, a quem foi entregue o controle externo da atividade policial.

Já as funções de polícia judiciária, à luz da Constituição, é expressão diferenciada da sua concepção tradicional, passando a significar atividades administrativas de apoio ao Poder Judiciário, desvinculadas da investigação, como, por exemplo, auxiliar no cumprimento das decisões liminares ou definitivas, garantir a segurança de magistrados e funcionários da Justiça ameaçados em razão das suas funções, etc. Estas funções, no âmbito da União, são exclusivas da Polícia Federal (art. 144, § 1°, IV), até porque, como se sabe, a União não mantém uma polícia administrativa correlata às polícias militares estaduais.

Assim, considerando que são diversos os conteúdos das expressões apuração de infrações penais e funções de polícia judiciária, e atribuindo a Constituição exclusividade apenas a estas últimas, pode o Ministério Público exercer tarefas de investigação (as quais, aliás, estão também amparadas pela Lei Maior).

Ainda que não se entenda desta forma, ou seja, mesmo se admitindo, por hipótese, que não houve modificação na divisão tradicional de polícia, o disposto no inciso IV do § 1° do art. 144 da Constituição não pode conduzir ao estabelecimento de um monopólio da investigação por parte da Polícia. Tal pensar seria claramente anti-republicano e assistemático. Não é possível olvidar todos os mecanismos constitucionais acima citados, os quais podem levar à descoberta de ilícitos e à determinação de sua autoria.


Sendo assim, como compreender que o texto constitucional tenha dito que a Polícia Federal deva exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União?

A resposta é dada por Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Após afirmarem a possibilidade de investigação criminal direta por parte do Ministério Público (4) e identificarem as funções de polícia judiciária como aquelas descritas no inciso I do § 1° do art. 144 da Carta Republicana (descrevendo-as como a finalidade precípua da Polícia Federal), anotam os citados autores:

“Merece destacada observação, porém, a dicção do inciso IV do § 1° do art. 144 da Lei Maior, onde se atribui à polícia federal ‘exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União’. É que, por força do dispositivo em apreço, a polícia federal ficou impedida de celebrar convênios com outras entidades policiais para o cumprimento de suas funções de polícia judiciária.

Assim, quando o Ministério Público, por si, não lograr instrumentalizar-se para a persecução penal, só poderá fazê-lo através da polícia federal, posto que nenhum outro órgão policial poderá desempenhar funções de polícia judiciária da União” (5) (grifamos).

O magistério acima é claro no sentido de que a exclusividade da Polícia Federal não se dá em prejuízo dos demais mecanismos constitucionais de apuração de ilícitos, mas sim em relação a outros órgãos policiais. E, mesmo assim, entendemos que tal disposição não deve ser tida como absoluta. (É o caso por exemplo, de um inquérito presidido por delegado de polícia civil que, ao final, conclui pela ocorrência de crime federal, onde, a nosso ver, não há nenhuma nulidade).

De tudo quanto acima exposto, portanto, depreende-se que em nenhum momento a atual Constituição estatui a exclusividade ou o monopólio da investigação. Até porque, em relação ao Ministério Público, há autorização constitucional expressa, conforme já salientado.

Depois, não é preciso muito para concluir que se a atividade investigatória for atribuída exclusivamente à polícia o próprio êxito da jurisdição criminal ficará comprometido, já que não é possível desprezar todos os outros mecanismos republicanos constitucionalmente previstos, que não se confundem com o inquérito policial, dos quais podem advir provas do cometimento de ilícitos.

Tal fato ainda mais se agrava quando consideradas as dificuldades da polícia judiciária para a apuração de determinados delitos, mormente em relação aos «crimes de colarinho branco », ou daqueles em que a boa investigação depende de tecnologia avançada e cara, para os quais são necessários recursos bem mais sofisticados do que aqueles de que dispõem a Polícia atualmente. Isso sem falar nos casos de delitos praticados por policiais (em que a apuração é naturalmente comprometida pela proximidade entre investigador e investigado, e, porque não dizer, eventualmente por corporativismo) ou por autoridades, especialmente do Poder Executivo, ao qual as polícias encontram-se subordinadas.

Não se trata, aqui, de maldizer ou proclamar a ineficiência da Polícia. Longe disso. Trata-se tão-somente da constatação de fatos notórios, dentre os quais o de que o aparato policial carece de maior eficiência, porquanto desprovido de pessoal, de equipamentos e de estrutura suficientes ao bom exercício de suas funções.

Nesse contexto, o entendimento republicano que sustenta ter também o Ministério Público legitimidade para realizar investigações, além de não encontrar qualquer óbice de caráter constitucional ou legal, afigura-se perfeitamente sensato e adequado à realidade de nosso País, de conhecidas e reconhecidas dificuldades para o combate da criminalidade, que reclama, ao invés da rígida divisão das funções da investigação criminal, a colaboração mútua dos diversos órgãos estatais, a fim de que não se instale um quadro de impunidade e de desordem.

A menção à exclusividade (Cf, art. 144, §1°, IV), qualquer que seja o alcance que se lhe dê, visou unicamente a afastar a atuação das polícias estaduais em matéria federal. Tanto é que o §4º, relativo às polícias civis, não faz referência a exclusividade, ressalvando apenas a competência da União. Ora, ad argumentandum, se tal exclusividade fosse um princípio fundamental do processo penal acusatório, por que seria restrita à esfera federal, inobservando-se o princípio federativo da simetria das formas? Isso mostra que, de fato, a regra objetiva apenas repartir as atribuições entre os órgãos da Polícia judiciária, não sendo oponível ao Ministério Público, tampouco assegurando a exclusividade com relação a outros órgãos administrativos, aliás como dispõe o art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, permitindo que a apuração seja feita por outras autoridades administrativas indicadas em lei.


Daí a conclusão de que a atividade investigativa do Ministério Público não possui qualquer óbice constitucional ou legal.

IV- DA NÃO-TAXATIVIDADE DO ART. 129 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Argumento contundentemente brandido contra a possibilidade de o Ministério Público realizar diligências investigatórias diz com a circunstância de que uma tal atribuição não lhe teria sido expressamente acometida pela Constituição, notadamente pelo art. 129, residência normativa de suas funções institucionais. Com a devida vênia, esbarra essa vertente em grave equívoco de premissa.

Ao contrário do que se busca fazer crer, as atribuições conferidas ao Ministério Público pelo art. 129 da Constituição não são taxativas. É dizer, as funções institucionais do Ministério Público não se esgotam na literalidade do art. 129. E isso, atente-se, em face da dicção do próprio art. 129, cujo inciso IX assim estabelece:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(…)

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.

De fato, o próprio art. 129 da Constituição estabelece, em seu inciso IX, uma “cláusula de abertura – legalmente concretizável – ao exercício, pelo Ministério Público, de “outras funções”. (6)

Nesse contexto, e por expressa determinação constitucional, adveio a Lei Complementar nº 75/93, cuja missão assentar-se-ia, dentre outras, no estabelecimento das “atribuições” do Ministério Público (art. 128, §5º, da CF).

Em consonância à diretriz constitucional, e considerando-se, ademais, que “somente a lei” poderia especificar as funções acometidas pela Constituição ao Ministério Público (art. 5º, §2º, da LC 75/93), o art. 8º da Lei Complementar 75/93 estabelece que:

Art. 8º. Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

V – realizar inspeções e diligências investigatórias”.

Em resumo, poderia a lei estabelecer, como de fato o fez, “outras funções” ao Ministério Público, as quais, entretanto, em atenção à determinação do próprio art. 129, inciso IX, haveriam de estar submetidas às seguintes três condicionantes: “a) proveniência legal da função (limitação formal); b) compatibilidade da função legalmente conferida com a finalidade institucional do Ministério Público (limitação material afirmativa); c) vedação de qualquer função que implique a representação judicial ou a consultoria jurídica de entidades públicas (limitação material negativa)”. (STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano, idem, ibidem).

Nessa linha de raciocínio, vale sublinhar que o ordenamento jurídico-positivo tem explicitado, em diversas passagens, atribuições investigatórias do Ministério Público, numa inequívoca demonstração da possibilidade de desenvolvimento dessas atividades. Senão vejamos: art. 201, VII, da Lei 8.069/90 (ECA); art. 74, VI, da Lei 10.741/2003. Estes dispositivos fazem alusão à atribuição para instauração de sindicâncias, as quais possuem nítida natureza criminal.

Indubitavelmente, a atividade investigatória, a par de encontrar-se legalmente prevista, atende ao crivo de finalidade em face da absoluta vinculação temática que guarda com a primeira das funções institucionais atribuídas ao Ministério Público pela Constituição: a promoção da ação penal pública (art. 129, I, da CF).

Ao final, caberia salientar que no exercício de uma tal atividade, justificável a partir de concretas razões que a determinem, o Ministério Público opera sob intenso controle, podendo ter, a todo o momento, impugnados os seus atos. Ressalte-se, com proeminência, o controle jurisdicional por meio do habeas corpus ou do mandado de segurança.

CONCLUSÃO

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana(CDDPH), órgão do Ministério da Justiça, acatou, com alguns acréscimos, o parecer do professor Luís Roberto Barroso a respeito do tema, em que não vislumbrou óbice constitucional à realização de investigações pelo Ministério Público, conforme as conclusões seguintes:“Restaram assentadas, portanto, duas premissas: o sistema constitucional reservou à Polícia o papel central na investigação penal, mas não vedou o exercício eventual de tal atribuição pelo Ministério Público. A atuação do Parquet nesse particular, portanto, poderá existir, mas deverá ter caráter excepcional. Vale dizer: impõe-se a identificação de circunstâncias particulares que legitimem o exercício dessa competência atípica. Bem como a definição da maneira adequada de exercê-la.”

Não há, com esse posicionamento, – é bom frisar – qualquer espírito de emulação para com a Polícia. A faculdade de efetuar diretamente as investigações deve ser utilizada com prudência, como complemento à função de controle externo da atividade policial, particularmente nos casos referentes a delitos econômico-financeiros, em que a atuação da Polícia fica restringida diante da dificuldade de obtenção de informações sigilosas (bancárias ou fiscais), ou nos casos em que a independência funcional do membro do MP serve de garantia para uma investigação isenta de pressões. A investigação direta do Ministério Público também se revela adequada ante o envolvimento de policiais em atividades delituosas, como, por exemplo, nas hipóteses de violações a direitos humanos. (7) Um leque de atividade investigatória mais amplo é, portanto, benéfico à sociedade contribuindo eficazmente para a alteração do atual cenário adverso de impunidade.

Vale assinalar, neste compasso, que o Oitavo Congresso das Nações Unidas para a prevenção do crime e o tratamento dos delinqüentes adotou entre os princípios orientadores relativos à função do Ministério Público, aquele segundo o qual a Instituição se obriga “… em especial a encetar investigações criminais no caso de delitos cometidos por agentes do Estado, nomeadamente atos de corrupção, de abuso de poder, de violações graves dos direitos do homem e outras infrações reconhecidas pelo direito internacional e, quando a lei ou a prática nacionais a isso os autoriza, a iniciar procedimento criminal por tais infrações.” (n° 15)

Assim, considera a ANPR inexistir qualquer regra no direito brasileiro, ou sobretudo princípio jurídico, que vede aos membros do Ministério Público a realização direta de diligências investigatórias em matéria criminal. Ao contrário, nosso ordenamento jurídico possibilita tal atividade. Ademais, não existe risco para os direitos fundamentais, que são adequadamente tutelados pelo Poder Judiciário no curso do processo. Esse é inclusive o dever do Ministério Público, que dele tem procurado desincumbir-se com denodo, sendo em grande parte responsável por apurações exitosas que vão aos poucos diminuindo a impunidade no País.

Notas de Rodapé:

1) E neste sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nº 32.586-MG, de relatoria do Ministro Paulo Medina.

2) Cf. Hélio Tornaghi. Processo Penal. Rio de Janeiro: A. Coelho Fº Editor, 1953, pág. 256.

3) Sobre a inexistência do monopólio policial da investigação, bem como sobre hipóteses de investigação no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, vide Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003, págs. 92/101.

4) Curso de Direito Constitucional. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 346.

5) Op. cit., pág. 362.

6) (STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano, Crime e Constituição – A Legitimidade da Função Investigatória do Ministério Público, Rio de Janeiro: Forense, 2003, págs. 80-82).

7) Cf. BONSAGLIA, Mário, In: O Ministério Público e a Investigação Pré-Processual. Artigo publicado no Boletim dos Procuradores da República. Ano 1, nº 11, marco de 1999, pág. 23.

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