Nada em comum

Julgamento dos casos Capiberibe e Roriz não pode ser comparado

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17 de maio de 2004, 19h53

O senador João Capiberibe e a deputada federal Janete Capiberibe tiveram seus mandatos cassados. O governador Joaquim Roriz, não. Duas decisões na mesma semana no mesmo Tribunal Superior Eleitoral.

A reação foi natural: de um lado, o aplauso dos adversários dos Capiberibe e dos correligionários de Roriz; de outro, a revolta, nem sempre contida, dos companheiros perdedores.

Os processos, todavia, são diferentes. O casal Capiberibe foi acusado de captação ilícita de sufrágio proibida pela “lei do bispo”. Roriz respondeu por abuso de poder econômico e político. Causas de pedir diversas em processos que não se confundem.

A investigação judicial eleitoral por captação ilícita de sufrágio foi criada diante de forte conclamação popular movida pela CNBB, OAB, ABI e outras entidades importantes da sociedade civil.

Centenas de milhares de brasileiros assinaram a iniciativa popular — inovação notável da Constituição cidadã. Incerta a quantidade e a validade das assinaturas, uma dúzia de deputados federais subscreveu o projeto.

Daí surgiu, sob o aplauso quase unânime da sociedade, o controvertido artigo 41-A da Lei Eleitoral: “… constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar , ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza … desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma …”.

E para que a apuração fosse rápida e eficaz, a lei afastou o código de processo civil para eleger o rito sumário do art. 22 da Lei de Inelegibilidade.

O TSE trouxe à norma o “eco das ruas”. Tratou logo de salvar sua constitucionalidade ao decidir que não se tratava de hipótese de inelegibilidade. A tanto não podia chegar a lei ordinária, só a lei complementar.

Passo seguinte, deu à norma aplicação imediata. Vale dizer, o juiz eleitoral, um TRE ou o TSE, quando entendesse procedente a acusação, imediatamente cassaria o registro da candidatura ou o diploma do eleito.

Para tanto não seria preciso demonstrar o efeito da conduta, ou seja, quantos votos fossem amealhados com a captação ilícita. Irrelevante saber se a conduta afetara decisiva ou potencialmente o resultado da eleição. Tolerância zero.

O TSE sequer se ocupou de qualificar a natureza do novo artigo. Se penal, haveria de aguardar o trânsito em julgado da decisão condenatória para cassar o registro ou o diploma. Se civil, haveria que exigir a prova do dano ou prejuízo para que pudesse qualificar o ato ilícito.

O Tribunal deu eco às ruas: o sentimento cívico inequívoco de afastar da representação popular os mandatos obtidos mediante compra de votos. Um voto que fosse, não importa, pois que a conduta ética não comportaria nem mesmo os pecados veniais.

Assim tem sido por cinco anos. Sem grita, nem alarde. Prefeitos e vereadores às dezenas sucumbiram ante a vontade popular executada pelo Judiciário. Até que chegou a vez do senador e da deputada federal. Aí o Congresso e a mídia nacional deram-se conta do peso-pesado que é a “lei do bispo”.

Já Roriz respondeu a recurso contra a expedição de diploma sob a acusação de abuso do poder econômico e do poder político. Processo ainda mais sumário e rápido do que aquele dos Capiberibe. Por isso mesmo, neste processo a acusação deve trazer prova pré-constituída.

Vale dizer, prova que já tenha sido contraditada pela defesa em algum outro processo perante algum outro juiz. Não é preciso que tenha havido decisão judicial alguma. Basta que a acusação e a defesa já tenham respondido uma à outra.

Ou então, que a acusação desde logo indique quais outras provas quer apresentar. Ou, por fim, que traga a acusação somente prova documental. Esta vale por si, se idônea e não contiver vício. Cabe à defesa contestar a idoneidade dos documentos.

No recurso ordinário dos Capiberibe o TSE reexaminou toda a prova documental e os interrogatórios julgados pelo Tribunal Regional do Amapá para saber da extensão em que teria o casal se beneficiado ou consentido, direta ou indiretamente, na conduta das correligionárias.

Em diligência determinada pelo Corregedor na casa das duas correligionárias antigas do casal foram encontrados quase dezesseis mil reais escondidos no forro da casa e na casa do cachorro. Parte dele já em envelopes contendo os nomes dos destinatários.

Quantia razoável, entendeu o Tribunal, visto que a campanha do senador custara, oficialmente, vinte e oito mil reais. Isto somado a outras circunstâncias, como a presença, durante a diligência, de coronel da polícia militar vinculado ao casal, mais os depoimentos de quem recebera os envelopes com dinheiro, convenceu o Tribunal de fazer incidir a “lei do bispo”.

Tomada sua jurisprudência, entendeu o TSE, primeiro, que o casal fora beneficiado pela conduta de terceiros a ele fortemente vinculados. E, segundo, que não era necessária a aferição da potencialidade do ato ilícito para desequilibrar a eleição. A “lei do bispo” resguarda “a livre vontade do eleitor e não a normalidade e equilíbrio do pleito”. Daí a cassação dos mandatos.

Neste passo, outra diferença fundamental dos dois processos: no recurso contra a diplomação sob o fundamento de abuso de poder o que se resguarda é a normalidade e o equilíbrio do pleito. Este recurso não é para proteger a livre vontade do eleitor.

Se o fosse, o Ministério Público teria proposto contra Roriz denúncia por crime de corrupção eleitoral ou investigação judicial por violação da “lei do bispo”.

Por isso mesmo, no processo Roriz, dada a sua natureza, a prova documental teria que comprovar a capacidade, real ou potencial, das condutas apontadas de influir no resultado do pleito. O TSE entendeu insuficiente essa comprovação.

A primeira acusação foi a transferência de recursos públicos do GDF, via Instituto Candango da Solidariedade e as empresas Adler e Linknet, para a campanha eleitoral.

Ausente perícia técnica, que nem foi requerida, que revelasse o trânsito final do dinheiro à campanha, decidiu o TSE que não competia à Justiça Eleitoral julgar da irregularidade ou desvio de finalidade dos contratos.

Isto caberia ao Tribunal de Contas. Caberia, sim, ao Tribunal, saber se dos contratos entre o GDF, o Instituto e as empresas resultaram fundos para a campanha eleitoral – porque, aí sim, haveria o abuso de poder político.

Examinadas as notas fiscais e os contratos, afirmou o Tribunal serem os indícios insuficientes à prova da acusação. Examinados cheques, depoimentos e documentos da acusação e da defesa, concluiu o TSE não haver indícios de abuso de poder econômico e de autoridade suficientes para a sua comprovação.

Quanto aos veículos locados pelo Instituto Candango a uma das empresas, a decisão foi que as notas fiscais, no que noticiavam locação a diversos órgãos públicos, não eram provas claras o bastante.

Mesmo os veículos que traziam adesivos de campanha não serviam à prova do abuso político porque os motoristas não haviam sido interrogados mediante procedimento regular em que assegurado o contraditório.

Por fim, do que restava (fornecimento de material para instalação de comitês eleitorais, aquisição de ar condicionado e locação de ainda outros veículos) não resultava demonstrada a “provável influência do ilícito no resultado eleitoral”, ainda que não tivesse sido “significativa a diferença final entre os dois candidatos”.

O critério da potencialidade ou habilidade da conduta abusiva para desequilibrar a eleição vem de seis anos. Subjetivo que seja, está sedimentado pela maioria do TSE.

Nenhuma das duas decisões foi unânime. Melhor assim; o voto vencido é o oxigênio dos tribunais. É com ele que melhor se revela a complexidade do julgamento e a dificuldade de sopesar as provas; é nele que se contrasta o convencimento de cada juiz.

É esse contraditório judicial público que legitima, na nossa cultura, a atuação dos tribunais. São raríssimos os países em que seus tribunais discutem e julgam em sessão pública. A conseqüência natural dessa transparência é a crítica também transparente.

Não raro é o voto vencido que oferece ao perdedor o fundamento para ganhar o recurso na instância superior. Ao final aprendem todos — a opinião pública conhece melhor o direito e seu processo e os juízes ouvem a “sabedoria popular”.

Essa “voz do povo” sempre ecoou no Judiciário. Que o digam os que tombaram com a “lei do bispo”. O cenário fica assim mais claro, uma vez isolados os direitos (captação ilícita versus abuso de poder), identificadas as tutelas legais (vontade livre do eleitor versus pleito isento de abusos de poder) e separados os processos (investigação judicial versus recurso contra a diplomação).

As duas decisões do TSE são independentes uma da outra – sustentam-se em si mesmas. Ambas coerentes com a jurisprudência da casa.

A novidade é que só agora teve essa jurisprudência repercussão no Congresso Nacional. Se a vontade popular, na ótica parlamentar, não for mais aquela que levou à edição da “lei do bispo” que mudem a lei. O papel do juiz é compreender a lei e aplicá-la ao caso concreto no âmbito, mais restrito ou mais largo, proposto pelo Legislativo.

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