Políticas afirmativas

Tese indica que cotas devem seguir critério sócio-econômico

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6 de maio de 2004, 17h40

Políticas afirmativas são medidas temporárias criadas para integrar um certo número de pessoas na sociedade, de modo a aumentar a representação desse grupo em esferas sociais. Estudá-las foi o ponto de partida para a dissertação de mestrado da procuradora do Estado Roberta Fragoso, defendida e aprovada para publicação pela Universidade de Brasília (UnB).

Sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, a procuradora concluiu, em pesquisa de 400 páginas, que o modelo americano de políticas afirmativas não pode ser copiado no Brasil. Ela defende um modelo à brasileira, em que o critério racial não seja o exclusivo para adoção de cotas.

Assessora de outro ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, que já se posicionou a favor das políticas afirmativas, a procuradora sustenta que o critério racial deve estar atrelado ao sócio-econômico.

Nesta entrevista à jornalista Patrícia Resende, do jornal Campus On Line ela apresenta seus argumentos. Sua opinião incomodou defensores das cotas: eles picharam e colaram cartazes no carro de Roberta, acusando-a de racismo, no dia em que defendeu a tese.

Como a senhora analisa as políticas afirmativas adotadas no Brasil?

Com muita cautela. Eu acredito que é necessário contextualizá-las, principalmente para evitar futuras declarações de inconstitucionalidade das medidas afirmativas criadas no Brasil. Não basta copiar o modelo que foi pensado e formulado para atender às necessidades de um outro país, os Estados Unidos, e querer que o mesmo modelo funcione perfeitamente para nós, porque os critérios utilizados não seriam os mais adequados. É preciso pensar um modelo próprio, de ações afirmativas à brasileira. No meu trabalho de mestrado, eu procurei justamente esmiuçar as diferenças e semelhanças entre o contexto histórico e social do negro nos EUA e no Brasil e busquei relacioná-los com as políticas afirmativas.

Quais são as principais diferenças?

As principais diferenças quanto à formação do povo brasileiro e do povo estadunidense podem ser extraídas do processo histórico de colonização. Os EUA foram colonizados por famílias, que saíram da Inglaterra ora por questões religiosas, como o movimento de Reforma e Contra-reforma religiosa, ora por questões econômicas, como o fenômeno dos cercamentos dos campos.

A Inglaterra não possuía uma experiência significativa de miscigenação entre as raças, e a religião protestante impedia uma larga miscigenação, haja vista a possibilidade de divórcio. Por outro lado, a escravidão negra somente foi adotada de forma mais expansiva, nos EUA, a partir do século XVIII. Diferentemente, no Brasil, o trabalho escravo negro teve início nos primórdios da colonização, já no século XVI. Nossa colonização foi efetuada principalmente por homens portugueses, que vieram ao Brasil sem as famílias, encontrando aqui um campo propício para a miscigenação, com as índias e com as negras.

Quando finalmente as mulheres brancas vieram para o Brasil, não encontraram espaço para se revoltar com as traições cometidas por seus maridos, uma vez que a religião católica não admitia o divórcio. Por outro lado, em Portugal era grande a presença dos negros na população, mesmo antes de promoverem a colonização do Brasil. E não podemos esquecer que o povo português já estava acostumado à miscigenação. Afinal, Portugal foi domínio mouro durante oito séculos.

Então, por que surgiram as políticas afirmativas nos EUA?

As políticas afirmativas surgiram nos EUA porque naquela sociedade se desenvolveram duas esferas sociais absolutamente distintas umas das outras. A adoção do sistema Jim Crow, nos EUA, é a maior prova de segregação que se pode imaginar. E o que foi mais grave é que tal sistema discriminatório era institucionalizado e praticado por todos os níveis e esferas de governo, tanto o executivo, como o legislativo e o judiciário. Para se ter uma idéia, o sistema de “iguais, mas separados” recebeu o beneplácito da Corte Suprema norte-americana.

As ações afirmativas surgiram como uma resposta histórica e pontual para esse sistema de exclusão dos negros. Deve se destacar que tais medidas não foram criadas como uma evolução do princípio da igualdade, nem mesmo como um mecanismo compensatório do Estado Social. Pelo contrário. Nos EUA, isso aconteceu na década de 60. Apesar de John Kennedy e Lyndon Johson terem feito algumas normas que visavam impedir a discriminação, medidas afirmativas no sentido que nós a entendemos hoje – como políticas de inclusão – somente foram postas em prática a partir de Richard Nixon. Eis talvez uma das maiores ironias: as ações afirmativas foram criadas por um Presidente republicano, extremamente conservador e que era conhecido como o “inimigo dos Direitos Civis”.


Os programas positivos foram criados porque os conflitos raciais atingiram tamanha gravidade nos EUA, que o ônus político da omissão seria muito grave para qualquer governante. Refresquemos a memória: em 1963 uma bomba mata crianças negras, Kennedy e Martin Luther King morrem assassinados (Nota do Editor: Luther King foi baleado em 4 de abril de 1968), milhares de negros são presos, espancados e mortos. Para se ter uma idéia, os conflitos raciais foram capas consecutivas da revista Time.

De que maneira as políticas afirmativas podem ser adotadas no Brasil?

Acredito que o fato de termos um contexto social tão diferente do norte-americano não significa que não precisamos de políticas afirmativas. Não há como negar a existência de preconceito e de discriminação no Brasil. Todavia, isoladamente, esses fatores não determinam as barreiras sociais. As políticas afirmativas a serem adotadas no Brasil devem observar, necessariamente, o critério social ao lado do critério racial.

Qual seria o problema de termos uma política afirmativa baseada apenas no critério racial?

Haveria o problema da ofensa ao princípio da proporcionalidade, que é um dos princípios interpretadores da Constituição. Não se pode observar o tema apenas sob o enfoque do princípio da igualdade, sob pena de simplificarmos o debate. Como um subprincípio da proporcionalidade, há o princípio da adequação. Restringir o direito à educação de todos os brasileiros, determinando cotas específicas para negros, seria a política mais adequada ao Brasil? Acredito que não.

Essa medida seria inconstitucional, por ferir o princípio da proporcionalidade. Para mim, no Brasil, existe um único programa afirmativo relativo à inserção dos negros em universidades que pode ser considerado constitucional – o atual programa da UERJ, instituído recentemente pela Lei nº 4.151, de 4 de setembro de 2003, no estado do Rio de Janeiro. Esta lei revogou a Lei anterior, a de nº 3.708, de 2001. Os governantes cariocas se conscientizaram que o critério unicamente racial não é o mais adequado para a situação brasileira.

Quais outros critérios são adequados?

A questão do negro tem de ser considerada nas políticas afirmativas, pois eles tiveram um passado de escravidão e de opressão. Ainda existe discriminação no Brasil, mas eu acredito que você não possa superdimensionar o preconceito e a discriminação porque eles não agem isoladamente. Eles estão atrelados a uma questão social. Um grande problema que existe são os índices oficiais da pouca representatividade de negros em cargos públicos de prestígio ou em universidades.

O racismo é apenas uma das explicações possíveis para essa baixa representatividade. Talvez o principal fator para a pouca representatividade dos negros em determinadas esferas sociais seja a falta de condições econômicas para ter o mesmo preparo que os brancos tiveram para entrar nessas carreiras, que são altamente competitivas. No programa do Rio de Janeiro, foram instituídas 20% das vagas para negros, 20% para estudantes de escolas públicas e 5% para deficientes físicos, mas desde que eles comprovem renda mensal de até R$ 300,00. Com isso, amplia-se a legitimidade das medidas, na medida em que se alarga o rol de beneficiados.

Mas o negro não sofre um duplo preconceito, por ser pobre e por ser negro?

Sim. E para isso é preciso que façamos ações afirmativas à brasileira. Devem ser levados em conta dois critérios: racial e social conjugados. Porque aqui no Brasil, o negro rico vira branco e o branco pobre vira negro. Você não pode querer dissociar o problema do racismo do problema social. Ser negro no Brasil nunca foi fator exclusivo de impedimento quanto à assunção de cargos. Nunca houve leis, ou decisões judiciais que determinassem que um negro não poderia assumir tal emprego, ou entrar em universidades, como acontecia com freqüência nos EUA.

No Brasil, pelo contrário, havia normas que determinavam que ser negro não era problema algum para posse em cargos de prestígio. Como exemplo, posso citar uma Ordem de 1731, emitida por Dom João V, por meio da qual se determinou que um negro tomasse posse no cargo de Procurador da Coroa, afirmando até que o único impedimento em relação à posse seria a ausência de bacharelado, mas que o fato de o procurador ser negro não era impedimento algum. A partir daí nós temos diversos outros exemplos como Henrique Dias, o Conselheiro Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio, Machado de Assis e o poeta Cruz e Souza. Negros que antes da abolição da escravatura conseguiram posição de destaque, de prestígio. Ora como senador, como deputados, como jornalistas, escritores e até Conselheiros do Imperador.

Afirma-se que os negros têm pouca motivação para estudar por não se verem representados em profissões como médicos, professores, magistrados, etc. Como a senhora acredita que devam ser instituídas as cotas para essas profissões no serviço público?


Da mesma forma, unindo o social e o racial. Há realmente uma baixa representatividade, mas é necessário também que os líderes negros se afirmem como tais, assumam a sua cor e tentem ser exemplos bem-sucedidos para os demais negros. É preciso que esses representantes dos negros, como o senador Paulo Paim, a ex-governadora Benedita da Silva, o ministro do STF Joaquim Barbosa, atuem como representantes da raça negra. Eles não podem abandonar a causa. Devem militar para mostrar que a raça negra também pode chegar lá.

Campus:Os instituidores da política de cotas na UnB afirmam que “o vestibular muitas vezes inclui quem não fica na Universidade e exclui quem poderia ficar”. Mesmo com a adoção das cotas esse problema vai continuar?

Sim. Acredito que a política de ações afirmativas não pode ser reduzida apenas à adoção de cotas. Se o critério social for adotado, a ação afirmativa tem de permear todo o desenvolvimento do estudante na instituição. Em cursos práticos, a representatividade do estudante carente é menor do que nos cursos apenas teóricos, isto por causa dos custos dos equipamentos, dos laboratórios, dos computadores. É caro ser estudante de odontologia, por exemplo. Com as cotas, isso não pode ser desconsiderado. Não se pode criar apenas medidas simbólicas, na expressão do jurista alemão Kindemann.

A legislação simbólica ocorre quando o Estado cria leis que não terão qualquer eficácia prática, apenas para tentar transparecer que está sintonizado com determinados valores sociais politicamente relevantes. Por exemplo, criar o feriado do dia do Zumbi. É simbólico. Mostra que o governo está alinhado com o que é politicamente correto, mas suas atitudes são ineficazes. É preciso não apenas dar oportunidade para entrar, mas também para permanecer. O financiamento dos estudantes brancos e negros de baixa renda é importante e é um ônus que dever ser custeado por todos da sociedade.

Para refutar a adoção de cotas para pessoas de baixa renda, alguns pesquisadores justificam que elas poderiam causar efeito reverso sobre o negro. No mercado de trabalho, os brancos continuariam tendo vantagem por terem estudado em boas universidades e serem brancos. Como a senhora vê essa questão?

Esse argumento fica um pouco esvaziado porque eu defendo cotas tanto raciais como sociais. Os líderes negros, muitas vezes, são contra o critério social, porque não os beneficia. Eles são de classe média. A maioria da população negra, que é a classe mais pobre, está alheia a este debate e às ações afirmativas.

E é para eles que essas políticas devem ser criadas. Os da classe média podem ter sido alvo de preconceito alguma vez, como sofrem os deficientes, as mulheres, os nordestinos e nem por isso nós vamos pleitear vagas específicas para mulheres na universidade, por exemplo. Porque naturalmente elas vencem o preconceito com o mérito. Os negros ricos também conseguem, pois demonstram a sua competência, o seu mérito e por isso vão se estabelecendo no mercado de trabalho. É preciso também deixar um pouco de lado o discurso de eterna vítima e do eterno ressentido. A injustiça não é só racial, é sobretudo social.

Como a senhora vê a política de cursinhos pré-vestibulares adotada para negros e carentes em estados como Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal São políticas afirmativas eficazes?

Elas são excelentes e devem continuar, pois o racial está atrelado ao social. Tais políticas minimizam a discriminação e a formação de guetos dentro da universidade. Ampliando as medidas afirmativas também para o social, você legitima a presença dos negros na universidade como uma forma de redistribuição de renda. O próprio ministro da Educação, Tarso Genro, já está considerando a importância do critério social, considerando-o o principal problema a ser sanado.

O sistema de cotas que foi adotado na UnB e também em outros locais, como na TV Justiça, ministérios, entre outros, podem gerar muitas ações judiciais?

Espero que gere, honestamente. Para que se impulsione o debate sobre o assunto e as pessoas passem a questionar a eficácia dos programas que estão sendo impostos. É preciso estudar o contexto que ensejou a criação de políticas afirmativas nos EUA e ter a certeza de que nós não vivemos aqui uma situação nem de longe parecida. A partir de então, seria necessário pensarmos uma política própria para o Brasil.

O problema é que aqui muitas coisas são defendidas ou refutadas apenas por “achismo”. Creio que se deveria visualizar o conjunto, como eu tentei fazer em minha tese, incluindo o Direito, a História e a Sociologia, para não apenas copiarmos outros modelos. Se várias ações forem ajuizadas, o debate vai se ampliar. E quando as políticas afirmativas forem fortemente adotadas, elas serão recebidas por uma sociedade madura e consciente das próprias mazelas. Não podemos insistir no erro de querer combater o problema com um remédio que foi fabricado para uma outra doença. Doença norte-americana, talvez.

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