Caninha não dá cana

Juiz absolve homem acusado de furtar uma lata de cachaça Pitú

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1 de maio de 2004, 19h45

Afanar uma lata de cachaça da prateleira de um supermercado não é motivo suficiente para condenação. Com esse entendimento, o juiz Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim, da Comarca Criminal de Garanhuns, em Pernambuco, decidiu absolver José Ivaldo Faustino de Albuquerque. Ainda cabe recurso.

José Ivaldo foi pego pela polícia, em 18 de maio de 2003, depois de subtrair uma lata de aguardente da marca Pitú de uma das lojas da rede de supermercados Bonanza. O Ministério Público pediu sua condenação pelo crime de furto, previsto no artigo 155 do Código Penal e punido com 1 a 4 anos de reclusão.

O juiz Pierre Amorim refutou o pedido do MP: “Não há como condenar alguém por ter subtraído uma lata de aguardente, de valor estimado em R$ 1,50, quando somos cientes de que há muitos fatos na República que merecem ser esquecidos, qualquer que seja a via eleita”.

Segundo o magistrado, o crime cometido não foi suficiente para caracterizar lesão ao patrimônio do supermercado. “É mais que óbvio que uma lata de aguardente a menos nos estoques da rede de supermercados Bonanza não causa qualquer lesão significativa em seu extenso patrimônio”, afirmou.

Na sentença, o juiz fez considerações de cunho social e teceu críticas à “falta de compromisso com os miseráveis demonstrada pelo parlamento brasileiro ao longo de toda sua existência”.

E afirmou que o mesmo descaso é mostrado por parte do Executivo: “(…) sancionador de leis injustas e totalmente inadimplente com sua obrigação constitucional de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, art. 3º, inciso III, da moribunda Constituição da República”.

Leia a sentença

Processo n.º 1.022/2003

S E N T E N Ç A

RELATÓRIO

Erinaldo de Souza Vieira e José Ivaldo Faustino de Albuquerque foram denunciados pela prática do crime previsto no artigo 155, caput, do Código Penal, sob a alegação, em suma, de que no dia 18 de maio de 2003, o primeiro acusado furtou um litro de “whisk”, tipo Long John, e o segundo acusado furtou uma lata de aguardente, tipo Pitu. Ressalta o Ministério Público que os réus foram presos após a consumação do delito. Conclui a denúncia, requerendo a condenação dos acusados nas penas do artigo acima citado (f. 02).

O magistrado então em exercício nesta vara criminal, após ter recebido a denúncia, submeteu os réus a interrogatórios, tendo ambos confessado a conduta que lhes foi imputada, f. 36, 46, 47, 48 e 49.

Houve audiência para suspensão do processo em relação a ambos os réus, tendo sido efetuada a suspensão conforme art. 89, da lei n.º 9.099/95, f. 58, 59, 67, 68 e 69.

Todavia, o segundo réu não compareceu em juízo para cumprir as condições da suspensão, tendo este sido revogada e o processo retomou seu curso normalmente, f. 75.

Ouvidas as testemunhas arroladas, f. 82 a 84. As partes ofereceram alegações finais, o Ministério Público opinando pela condenação do réu nos termos da denúncia, f. 92 verso, e a defesa requerendo absolvição por ser o presente um crime de bagatela, f. 94 e 95.

É o que de importante há a relatar.

Fundamentação

Inicialmente, cabe registrar que a denúncia informa que, efetivamente, não havia comprovação da ação conjunta dos acusados para a prática dos delitos. Diante disso, analisando as provas produzidas na instrução, esclarece-se desde já que em nenhum momento houve comprovação de que os acusados estavam juntos na suposta empreitada criminosa, pelo contrário, os acusados afirmaram não se conhecer, isto, desde o interrogatório prestado na Polícia:

“Que não conhece o outro acusado só tendo visto o mesmo quando foi levado para o carro da polícia, onde aquele já se encontrava…” (Depoimento prestado pelo réu Erinaldo de Souza Vieira, f.46).

“Que não conhece o outro acusado e que foi preso primeiro e quando já se encontrava no veículo é que chegou o outro acusado…” (Depoimento prestado pelo réu José Ivaldo Faustino de Albuquerque, f. 48).

Quanto às testemunhas, na instrução criminal, nenhuma delas afirmou que os acusados adentraram no supermercado juntos, ou estavam juntos praticando os furtos, inclusive, na Delegacia, os depoimentos prestados não indicam essas ações em concurso. Portanto, não há como se presumir que os acusados agiram em concurso pelo simples fato de terem praticado os delitos no mesmo dia e no mesmo supermercado, ainda que no mesmo momento.

Ficou constatado que os delitos não têm conexão entre si. Esta conclusão é de grande importância, em razão de que o furto praticado pelo réu Erinaldo de Souza (whisk “long john”) não pode ser atribuído ao réu José Ivaldo em co-autoria, motivo pelo qual só será analisado, neste momento, o fato delituoso referente ao furto da lata de “Pitú”, o qual, de fato, foi atribuído ao réu José Ivaldo.

O que é crime? Difícil missão é conceituar uma atividade humana, principalmente quando esta atividade tem contornos dramáticos e conseqüências jurídicas.

Todavia, há quem se arrisque e, entre estes, temos os que aceitam como correto o conceito analítico de crime, que o define como a ação típica, antijurídica e culpável, conforme Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, 8ª edição, pág. 144.

A tipicidade penal ultimamente vem sendo tratada de forma complexa, dando-se conta da tipicidade formal e da tipicidade conglobante, que seria formada pela antinormatividade e pela tipicidade material. Somente com a reunião destes elementos teríamos então a tipicidade penal.

A tipicidade material é definida por Rogério Greco, em seu Curso de Direito Penal, Parte Geral, editora Impetus,4ª edição, pág. 177, nos seguintes termos:

“Embora tenha feito a seleção dos bens que, por meio de um critério político, reputou como os de maior importância, não podia o legislador, quando da elaboração dos tipos penais incriminadores, descer a detalhes, cabendo ao intérprete delimitar o âmbito de sua abrangência. Imaginemos o seguinte: alguém, de forma extremamente imprudente, ao fazer uma manobra em seu automóvel, acaba por encostá-lo na perna de um pedestre que por ali passava, causando-lhe um arranhão de meio centímetro. Se analisarmos o fato, chegaremos à seguinte conclusão: a conduta foi culposa; houve um resultado; existe um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; há tipicidade formal, pois existe um tipo penal prevendo esse modelo abstrato de conduta. Ingressando no estudo da tipicidade conglobante, concluiremos, primeiramente, que a conduta praticada é antinormativa, visto não ser ela imposta ou fomentada pelo Estado. Contudo, quando iniciarmos o estudo da tipicidade material, verificaremos que, embora a nossa integridade física seja importante a ponto de ser protegida pelo Direito Penal, nem toda e qualquer lesão estará abrangida pelo tipo penal. Somente as lesões corporais que tenham algum significado, isto é, que gozem de certa importância, é que nele estarão previstas. Em virtude do conceito de tipicidade material, excluem-se dos tipos penais aqueles fatos reconhecidos como de bagatela, nos quais têm aplicação o princípio da insignificância.” Destaque de agora.

No presente caso o juiz em exercício nesta vara entendeu por bem receber a denúncia e submeter o réu ao processo, o que, deixo claro, com o devido respeito, não seria minha opção.

O réu retirou de uma prateleira de um supermercado, da rede de mercados Bonanza, uma lata de aguardente da marca Pitú. É de impressionar a falta de compromisso com os miseráveis demonstrada pelo parlamento brasileiro ao longo de toda sua existência, descompromisso este que se estende ao Poder Executivo, sancionador de leis injustas e totalmente inadimplente com sua obrigação constitucional de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, art. 3º, inciso III, da moribunda Constituição da República.

Temos então que fazer justiça caso a caso, amenizando a dor dos miseráveis, que são esquecidos por seus eleitos, assim que estes entram no exercício do inebriante poder.

Não há como condenar alguém por ter subtraído uma lata de aguardente, de valor estimado em R$ 1,50 (um real e cinqüenta centavos), quando somos cientes de que há muitos fatos na República que merecem ser esquecidos, qualquer que seja a via eleita.

Cabe aqui transcrever passagem do belo livro de Eduardo Galeano, De pernas pro Ar, a escola do mundo ao avesso, 6ª edição, pág. 30 e 31: “Na era das privatizações e do mercado livre, o dinheiro governa sem intermediários. Qual a função que se atribui ao estado? O estado deve ocupar-se da disciplina da mão-de-obra barata, condenada a um salário-anão, e da repressão das perigosas legiões de braços que não encontram trabalho: um estado juiz e policial, e pouco mais do que isso. Em muitos países do mundo, a justiça social foi reduzida à justiça penal. O estado vela pela segurança pública: de outros serviços já se encarrega o mercado, e da pobreza, gente pobre, regiões, cuidará Deus, se a polícia não puder.”

Voltando ao aspecto técnico, não está configurada a tipicidade material, pois não houve qualquer lesão ao patrimônio do supermercado Bonanza, por absoluta insignificância da res furtiva. Já dizia o saudoso Júlio Fabbrini Mirabete, em seu Manual de Direito Penal, 15ª edição, pág. 118:

“Sendo o crime uma ofensa a um interesse dirigido a um bem jurídico relevante, preocupa-se a doutrina em estabelecer um princípio para excluir do direito penal certas lesões insignificantes. Claus Roxin propôs o chamado princípio da insignificância, que permite na maioria dos tipos excluir, em princípio, os danos de pouca importância. Não há crime de dano ou furto quando a coisa alheia não tem qualquer significação para o proprietário da coisa;(…)” Destaque de agora.

É mais que óbvio que uma lata de aguardente a menos nos estoques da rede de supermercados Bonanza não causa qualquer lesão significativa em seu extenso patrimônio.

Portanto, ante a ausência de tipicidade, não resta outro caminho senão a absolvição do réu por não constituir o fato infração penal.

Dispositivo

Após o exposto e com fulcro no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal, julgo improcedente o pedido contido na denúncia, por considerar que o fato não constitui infração penal, e, por conseqüência, absolvo o réu José Ivaldo Faustino de Albuquerque.

Devem ser recolhidos os mandados de prisão em desfavor do réu que, eventualmente, ainda estejam em circulação. Tendo sido julgado o fato do réu José Ivaldo F. de Albuquerque e a comprovação de que não houve conexão entre os crimes praticados pelos réus, determino a separação dos processos de acordo com o art. 80, do CPP, devendo a Secretaria Judiciária providenciar a extração de cópias e formar processo autônomo em relação ao réu Erinaldo de Souza Vieira.

Publique-se, registre-se e intimem-se.

Após o trânsito em julgado, comunique-se à distribuição e ao órgão de cadastros criminais, arquivando-se estes autos.

Garanhuns, 19 de abril de 2004.

PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

JUIZ DE DIREITO

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