Delito insignificante

Ministro dá liminar a acusado de furtar fita de vídeo-game de R$ 25

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29 de junho de 2004, 16h39

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar em Habeas Corpus para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de vídeo-game avaliada em R$ 25. Para tomar a decisão, o ministro aplicou ao caso o princípio da insignificância.

Celso de Mello começou a fundamentar sua decisão com uma pergunta: “revela-se aplicável, ou não,o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25 (vinte e cinco reais)?” Para, ao final, decidir que a condenação imposta ao rapaz é ausente de justa causa.

Na liminar, o ministro mostra que quando o delito foi cometido, em janeiro de 2000, o objeto do furto correspondia a 18% do salário mínimo vigente. Hoje, o valor corresponde a 9,61% desse salário.

Consta da ação que o rapaz, com 19 anos à época dos fatos, tinha a intenção de devolver a fita. Segundo uma testemunha, a vítima do furto queria retirar a queixa, mas foi impedida em razão do caráter indisponível da ação penal.

Ao tomar a decisão, Celso de Mello fez questão de ressaltar que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.

E concluiu que, como o caso em exame não se enquadra nessa hipótese e se resume “a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo”, deve-se aplicar o também conhecido como princípio da bagatela.

Leia a decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 84.412-0 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): BILL CLEITON CRISTOVÃO OU

BIL CLEITON CRISTÓVÃO OU

BIL CLEITON CHRISTOFF OU

BIU CLEYTON CRISTOVÃO OU

BILL CLEITON CRISTOFF OU

BIL CLEYTON CRISTOVÃO

IMPETRANTE(S): LUIZ MANOEL GOMES JUNIOR

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL. CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL, EM SEU ASPECTO MATERIAL. DELITO DE FURTO. CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE. “RES FURTIVA” NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR). DOUTRINA. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. CUMULATIVA OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AO “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA.

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de idêntico processo, por votação majoritária, denegou o “writ” ao ora paciente, em decisão assim ementada (fls. 37):

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

I – No caso de furto, para efeito de aplicação do princípio da insignificância, é imprescindível a distinção entre ínfimo (ninharia) e pequeno valor. Este, ex vi legis, implica eventualmente em furto privilegiado; aquele, na atipia conglobante (dada a mínima gravidade).

II – A interpretação deve considerar o bem jurídico tutelado e o tipo de injusto.

Writ denegado.” (grifei)

Os presentes autos registram que o ora paciente, que tinha 19 (dezenove) anos de idade à época do fato, subtraiu, para si, fita de vídeo-game, no valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais), fazendo-o, aparentemente, com a intenção de devolvê-la, consoante relato constante de depoimento testemunhal (fls. 39).

Consta, ainda, segundo essa mesma testemunha, que a vítima “quis retirar a queixa” (fls. 22), o que lhe teria sido negado em face do caráter indisponível da ação penal.

Sustenta-se, nesta ação de “habeas corpus”, que é “(…) desproporcional uma pena de 08 meses de reclusão, quando se verifica que o bem objeto de subtração possui o valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) e foi recuperado, ausente, assim, qualquer prejuízo para a vítima” (fls. 04 – grifei).

O ora impetrante – após afirmar que Não se pode ignorar que o Direito Penal somente deve incidir naquelas situações em que existir uma real violação ao bem jurídico protegido” (fls. 03) e que, “Em outras palavras, deve haver uma agressão que justifique a incidência da pesada sanção de natureza penal” (fls. 03) -, postula a concessão de medida liminar, para fazer “cessar a coação ilegal, determinando-se a paralisação do feito originário – Processo nº 238/2000, 1ª Vara Criminal de Barretos – (…), até o julgamento do presente ‘writ’” (fls. 14 – grifei).


Passo, em conseqüência, a apreciar o pedido de medida cautelar deduzido na presente sede processual.

O exame da presente causa propõe, desde logo, uma indagação: revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25,00 (vinte e cinco reais)?

Essa indagação, formulada em função da própria “ratio” subjacente ao princípio da insignificância, assume indiscutível relevo de caráter jurídico, pelo fato de a “res furtiva” equivaler, à época do delito, a 18% do valor do salário mínimo então vigente (janeiro/2000), correspondendo, atualmente, a 9,61% do novo salário mínimo em vigor em nosso País.

Como se sabe, o princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal” , p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado” , p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral” , vol. 1/10, item n. 11, “h”, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal” , p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g. ).

O princípio da insignificância – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

Revela-se expressivo, a propósito do tema, o magistério de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva):

“Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (…)não tem previsão legal no direito brasileiro (…), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico.” (grifei)

Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI (“Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.


A questão pertinente à aplicabilidade do princípio da insignificância – quando se evidencia que o bem jurídico tutelado sofreu “ínfima afetação” (RENÉ ARIEL DOTTI, “Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense) – assim tem sido apreciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO.

Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos – e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (…).”

(RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO – grifei)

“Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa.”

(RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

“HABEAS CORPUS. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA.

……………………………………………….

3. A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em meio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do paciente é atípica.

4. Habeas corpus deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu.”

(HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – grifei)

Cumpre advertir, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, em tema de entorpecentes (notadamente quando se tratar do delito de tráfico de entorpecentes) – por considerar ausentes, quanto a tais infrações delituosas, os vetores capazes de descaracterizar, em seu aspecto material, a própria tipicidade penal – tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância (RTJ 68/360 – RTJ 119/453 – RTJ 119/874 – RTJ 139/555 – RTJ 151/155-156 – RTJ 169/976 – RTJ 170/187-188 – RTJ 183/665 – RTJ 184/220).

O caso ora em exame, porém, não versa matéria de tráfico de entorpecentes, referindo-se, apenas, a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo.

As considerações ora expostas levam-me a reconhecer, por isso mesmo, que os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico, consistente na possível caracterização, na espécie, da ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso – “res furtiva” no valor de R$ 25,00, equivalente, na época do fato, a 18% do salário mínimo então vigente e correspondente, hoje, a 9,61% do atual salário mínimo – parecem autorizar a aplicação, no caso, do princípio da insignificância.

Sendo assim, considerando as razões expostas, e tendo em vista que concorre, igualmente, na espécie, situação configuradora do “periculum in mora”, defiro, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o pedido de medida liminar ora formulado, para suspender, integralmente, a eficácia da condenação penalimposta ao ora paciente, nos autos do Processo-crime nº 238/2000 (1ª Vara Criminal da comarca de Barretos/SP – fls. 23/30), confirmada, em sede recursal, pelo E. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (Apelação nº 1.280.375-3 – fls. 32/35), dispensando o paciente em questão de restrições que lhe hajam sido eventualmente aplicadas pelo magistrado sentenciante.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao órgão ora apontado como coator, ao E. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (fls. 32/35) e ao MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Barretos/SP (fls. 23/30).

2. Encaminhe-se, por igual, com urgência, cópia desta decisão ao ilustre impetrante (fls. 02), que foi indicado para patrocinar os interesses do paciente, que está desempregado, pela 7ª Subseção da OAB/Barretos – SP (fls. 21).

3. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 29 de junho de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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