Está livre

Juiz concede liberdade a acusado de porte ilegal de arma de fogo

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29 de junho de 2004, 12h10

O juiz não pode ser impedido, por lei ordinária, de exercer seu poder de julgamento e conceder liberdade provisória a acusado de porte ilegal de arma de fogo. Com esse entendimento, o juiz Nelson Calandra, do Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim) de São Paulo, acolheu Habeas Corpus em favor de José Simplício de Sousa e determinou o relaxamento de sua prisão preventiva.

José Simplício foi preso porque tinha, em seu estabelecimento comercial, uma pistola 7.65mm, marca Taurus, municiada com 12 cápsulas intactas e com numeração raspada. Como teve o pedido de liberdade negado em primeira instância, recorreu ao Tacrim de São Paulo.

Calandra aborda, na decisão, pontos específicos da Lei 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento, e considera ilegal a proibição determinada em seu artigo 21. O dispositivo proíbe a concessão de liberdade provisória para acusados de posse ou porte ilegal de arma.

Segundo ele, “impedir o juiz de conceder ou não a liberdade provisória é tentativa de violação ao princípio da independência dos Poderes (…), pois a prisão preventiva é medida de ordem processual, que não pode ser exercida por outro que não seja aquele que dirige a instrução do processo penal em nome do estado”.

O juiz ainda ressalta que “a única exceção que a Constituição abriu para o Legislador Ordinário foi a possibilidade de considerar inafiançáveis os crimes de terrorismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e os crimes considerados pela Lei como hediondos”. Dessa forma, não se encontram nesse rol o crime de porte ilegal de arma.

Para ele, a lei conhecida como Estatuto do Desarmamento não pode impedir o dever que tem o juiz “de só manter presos aqueles que se enquadrem naquelas exceções nas quais a norma legal faculta a custódia preventiva (art. 312 do C.P.P.)”.

Calandra também levou em consideração que o acusado alegou que a arma encontrada em seu estabelecimento não lhe pertencia. De acordo com a sentença, “no momento em que a polícia fazia uma diligência no estabelecimento vizinho, apercebendo-se disto, um outro elemento evadiu-se do restaurante do paciente, o que chamou a atenção dos policiais. O paciente disse que, por medo, ocultou a arma, abandonada por aquele indivíduo, atrás dos cigarros, local que via de regra é mais próximo do comerciante em tais tipos de estabelecimento”.

Leia a decisão

Voto nº 7932

Habeas Corpus nº 470.330-3

Impetrante: Bel. Cláudio Luiz Rizzi da Silva

Paciente: José Simplício de Sousa ou Souza

3ª Vara Criminal da Comarca de Cotia

Trata-se de Habeas Corpus impetrado em favor de José Simplício de Sousa, que teve indeferido o seu pedido de liberdade provisória. Alega o impetrante que o ora paciente está sofrendo constrangimento ilegal, pois preenche os requisitos exigidos para a concessão do benefício.

A liminar pleiteada foi indeferida (fl. 23).

A MMª. Juíza prestou informações (fls. 26/27), encaminhando traslados de peças do processo.

A douta Procuradoria Geral de Justiça manifestou-se pela denegação da ordem (fls. 33/36).

É o relatório.

O paciente José Simplício de Sousa, 43 anos de idade, foi preso em flagrante e denunciado como incurso no artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03, pois possuía, em seu estabelecimento comercial, uma pistola 7.65mm, marca Taurus, municiada com 12 cápsulas intactas, com numeração raspada.

A manutenção da prisão preventiva decorrente do flagrante não é algo que possa sobreviver exclusivamente à custa da capitulação da infração penal imputada, como fez a Lei n°10.826/03, em seu art. 21, proibindo a concessão de liberdade provisória nas infrações capituladas nos arts. 16, 17 e 18, pois a mesma violou a Constituição Federal.

Tal prisão deve ser fruto da avaliação feita pelo Magistrado no exercício do “munus” derivado do Poder/Dever da atividade jurisdicional (art. 5º inciso XXXV, da Constituição Federal). Tudo isto porque é vedado à Lei a exclusão de apreciação e decisão pelo Poder Judiciário do exame quanto a lesão ou ameaça a Direito.

A única exceção que a Constituição abriu para o Legislador Ordinário foi a possibilidade de considerar inafiançáveis os crimes de terrorismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e os crimes considerados pela Lei como hediondos, não se encontrando neste rol o porte de arma.

Por outro lado, impedir o Juiz de conceder ou não a liberdade provisória é tentativa de violação ao princípio da independência dos Poderes, subtraindo do Estado Juiz a direção do processo, pois a prisão preventiva é medida de ordem processual, que não pode ser exercida por outro que não seja aquele que dirige a instrução do processo penal em nome do Estado.

O paciente tem a seu favor o princípio da presunção de inocência (art. 5°, LVII, da Carta Constitucional). Assim, a custódia preventiva só pode ser decretada ou mantida, conforme art. 312 do Código de Processo Penal, como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução processual ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando haja prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria.

Entendo que o art. 21 da Lei nº 10.826, de 22/12/2003, não pode ser aplicado do modo como foi lançado, pois não é possível à Lei Ordinária impedir o dever que tem o Juiz de só manter presos aqueles que se enquadrem naquelas exceções nas quais a norma legal faculta a custódia preventiva (art. 312 do C.P.P.). Além disto, o dispositivo se encontra inserido no título relativo ao “TRÁFICO INTERNACIONAL DE ARMA DE FOGO”, o que, em uma interpretação sistemática, como convém ao processo penal, indica que a intenção do legislador ao criar tal restrição foi de alcançar exclusivamente as infrações ligadas ao Tráfico Internacional, não os casos banais de comerciantes de periferias com posse de arma, vítimas emudecidas da criminalidade violenta, a qual deveria ser a primeira a ser desarmada, não por incentivo legal, mas sim por medidas concretas de combate ao crime organizado.

Recordo de julgado no qual fui Relator, no Primeiro Tribunal de Alçada Civil, no qual, ordenada a reintegração em área favelizada, Comandante de Batalhão da Polícia Militar expressou impossibilidade de executar a ordem, dizendo que estava ocupada por traficantes e assaltantes de Banco, quando então a Turma Julgadora ordenou que se prendesse os infratores, encaminhando-os aos estabelecimentos adequados, e se procedesse à reintegração. Neste episódio relatado, bem se pode perceber a dificuldade de convivência entre o Brasil real e o Brasil formal.

No clima que dominou a votação e promulgação da Lei do Desarmamento, acredita-se que houve erro de redação que pode e deve ser corrigido pelo Judiciário, guardião que é da Constituição Federal.

Não bastasse isto, a despeito de existirem provas da materialidade do delito, os indícios da autoria mostram-se empalidecidos. O paciente, como excludente, alegou que a posse da arma não era sua, e o que diz mostra algum eco no próprio Auto. Nele é referido que, no momento em que a Polícia fazia uma diligência no estabelecimento vizinho, apercebendo-se disto, um outro elemento evadiu-se do restaurante do paciente, o que chamou a atenção dos policiais. O paciente disse que, por medo, ocultou a arma, abandonada por aquele indivíduo, atrás dos cigarros, local que via de regra é mais próximo do comerciante em tais tipos de estabelecimento. Assim, não é possível manter a custódia preventiva do paciente, porque a prova da Autoria parece ser precária e a ordem pública não se encontra ameaçada, pois sendo ele primário, não há evidências de que voltará a delinqüir durante o processamento do feito.

Nesse mesmo passo, o delito, em tese perpetrado, não se enquadra dentre aqueles que causam clamor público a ensejar a manutenção da prisão.

Por fim, tendo a arma de fogo sido apreendida pelos policiais militares, a instrução criminal encontra-se resguardada, bem como a aplicação da pena, haja vista que o paciente é comerciante com ponto comercial conhecido.

Ademais, no caso de eventual condenação, o paciente, ao menos em tese, fará jus à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, o que torna injustificada a manutenção da custódia.

Ante o exposto, concede-se a ordem para relaxar a prisão em flagrante, deferindo a liberdade provisória em favor do paciente JOSÉ SIMPLICIO DE SOUSA, OU JOSÉ SIMPLICIO DE SOUZA, ratificando-se a liminar concedida.

NELSON CALANDRA

Relator

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