Caos na Justiça

Estatística mostra crescente congestionamento no Judiciário

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28 de junho de 2004, 10h53

Sumário: Reformulação do sistema de administração da Justiça. Vetores condicionantes. Da crise de funcionalidade à perda de legitimidade. Algumas soluções possíveis. O acesso ao Poder Judiciário: expressão de uma necessidade do Estado democrático de Direito. Defensoria Pública e exclusão jurídica. Súmula vinculante: hermenêutica de submissão? A necessidade de fiscalização externa do Poder Judiciário como pressuposto de legitimação material de sua atividade administrativa. Adequação da ordem constitucional brasileira à experiência resultante da prática comunitária. Consagração constitucional de instrumentos de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. Implementação de mecanismos fundados em declarações internacionais de direitos. A centralidade do papel do magistrado na concretização das liberdades públicas garantidas pela Constituição e asseguradas por convenções internacionais. Outras sugestões e propostas.

1. Os dados estatísticos acentuam, de maneira dramática, o crescente congestionamento do aparelho judiciário em nosso País, revelando situação particular que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, tem afetado sensivelmente, o regular desenvolvimento dos trabalhos de nossa Corte Suprema.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o aumento progressivo de causas julgadas e em curso no Supremo Tribunal Federal tem constituído impressionante dado revelador do excesso de litigiosidade que se instaurou perante a Corte, a traduzir a existência de uma anômala situação responsável pela crise de funcionalidade que vem afetando, de maneira drástica, a normalidade dos trabalhos desenvolvidos pelo Tribunal, hoje assoberbado por um volumoso índice de processos e de recursos. A gravidade dessa situação de crise constitui um dos tópicos de reflexão concernentes à presente agenda política nacional, em cujo contexto se busca introduzir, no Poder Judiciário brasileiro, profunda reformulação institucional fundada em amplo debate com os operadores do Direito e com o conjunto da sociedade civil.

A reforma judiciária, na realidade, traduz justa reivindicação dos próprios cidadãos brasileiros, pois a questão do Poder Judiciário – mais do que um simples problema de ordem técnica ou de caráter burocrático – representa, no plano político–institucional, um fator decisivo para o pleno exercício da cidadania em nosso País.

O quadro abaixo reproduzido, elaborado com elementos informativos constantes do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantido pelo Supremo Tribunal Federal, demonstra, objetivamente, a partir da Constituição da República de 1988, a situação de congestionamento que, neste momento, atinge a Suprema Corte brasileira:

Ano Processos recebidos Julgamentos proferidos
1989 14.721 17.432
1990 18.564 16.449
1991 18.438 14.366
1992 24.447 18.236
1993 24.377 21.737
1994 24.295 28.221
1995 27.743 34.125
1996 28.134 30.829
1997 36.490 39.944
1998 52.636 51.307
1999 68.369 105.307
2000 56.307 86.138
2001 110.771 109.743
2002 160.453 117.484
2003 87.186 15.211
2004* 158.785 13.851


(* até 07.03.2004)

A extrema gravidade dessa situação, que está a comprometer – e, até mesmo, a inviabilizar – a atuação do Supremo Tribunal Federal, provocada pelo volume excessivo de recursos e de processos, evidencia-se, de maneira bastante expressiva, por um dado de comparação com o funcionamento da Suprema Corte norte-americana.

É completamente diversa a situação que se registra na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, pois esta tem recebido, por ano, não mais do que 8.000 (oito mil) processos, julgando, no entanto, anualmente, apenas 2% (dois por cento) desse total. Isso se tornou possível, num país que, hoje, possui cerca de duzentos e oitenta milhões de habitantes, graças ao instrumento processual do “writ of certiorari”, que permite àquele alto Tribunal estabelecer um sistema de filtragem dos recursos, selecionando aqueles que versem temas revestidos de transcendência ou de relevância jurídica, política, econômica ou social, à semelhança do que já ocorre na República Argentina, cujo Código de Processo Civil (art. 280) – com a alteração introduzida pela Lei Federal nº 23.774/90 – outorga, à Corte Suprema dessa vizinha república, o poder para “rechazar el recurso extraordinario” , sempre com fundamento em um juízo eminentemente discricionário, “cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia”.

A discussão sobre a reforma judiciária brasileira vem propiciando o surgimento de diversas propostas que visam a superar a crise de funcionalidade em que hoje se debate, como órgão do Estado e como instituição da República, o Poder Judiciário nacional. Todos concordam: a reforma é necessária e é irreversível. Impõe-se, por isso mesmo, o aperfeiçoamento do sistema de administração da Justiça.

Sob tal aspecto, cabe enfatizar que a instituição de um novo sistema de administração da Justiça, em nosso País, para legitimar-se em face dos cidadãos, deve revelar-se politicamente independente, tecnicamente eficiente, processualmente célere, socialmente eficaz e eticamente irrepreensível.

Isso significa, portanto, na perspectiva do processo de reconstrução institucional do Poder Judiciário, que essa reformulação deve apoiar-se em cinco pilares fundamentais: (a) independência política dos juízes, (b) eficiência técnica de suas decisões, (c) celeridade processual, (d) eficácia social dos julgamentos e (e) probidade dos integrantes da magistratura.

Na realidade, a reconstrução institucional do Poder Judiciário exige a formulação de uma agenda que permita conferir, à reforma judiciária, um sentido de efetividade, para nela incluir a discussão de temas básicos, como (a) a necessidade de aperfeiçoar o processo de formação acadêmica nos cursos de Direito; (b) o aperfeiçoamento do sistema de administração dos Tribunais; (c) a organização e consolidação das escolas judiciais; (d) a institucionalização de sistemas alternativos de resolução de controvérsias e (e) a viabilização do direito de pleno acesso ao aparelho judiciário do Estado.

2. O acesso à Justiça, nesse contexto, deve representar um claro movimento em favor da universalização da jurisdição, em ordem a permitir que todos, sem quaisquer restrições – notadamente aquelas limitações que emergem da reduzida capacidade financeira das pessoas – possam ingressar em juízo, para que o Estado, em resolvendo de maneira efetiva e adequada os conflitos de interesses, viabilize o integral exercício dos direitos por parte daqueles que os titularizam.

Convém insistir na asserção de que o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades civis e das franquias constitucionais. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais pelo Povo, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário.

É que de nada valerão os direitos e de nada significarão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apóiam – além de desrespeitados pelo Poder Público – também deixarem de contar com o suporte e o apoio da ação conseqüente e responsável do Poder Judiciário.

Daí a necessidade de enfatizar, a cada momento, que o Poder Judiciário tem um compromisso histórico e moral com a luta pelas liberdades e, também, com a preservação dos valores fundamentais que protegem a essencial dignidade da pessoa humana.


Sem que se reconheça a toda e qualquer pessoa o direito que ela tem de possuir e de titularizar outros direitos, frustrar-se-á – como conquista verdadeiramente inútil – o acesso ao regime das liberdades públicas.

É preciso construir a cidadania em bases consistentes, a partir do reconhecimento de que assiste, a toda e qualquer pessoa, uma prerrogativa fundamental que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades. Torna-se imperioso reconhecer que toda pessoa tem direito a ter direitos.

O fato grave e dramático que atinge os socialmente excluídos – e que se tornam, também eles, por efeito causal, vítimas injustas dessa perversa exclusão de ordem jurídica – reside na circunstância de que a condição de despossuídos acaba gerando a perda de um essencial elemento de conexão que lhes garanta uma exata e bem definida posição em nosso sistema político e normativo.

Com os socialmente excluídos está em causa, portanto, o próprio reconhecimento – tão essencial à preservação da dignidade individual – de que à pessoa humana assiste o direito a ter direitos.

A exclusão de ordem jurídica – que representa um sub–produto perverso derivado da exclusão social -, gerada e impulsionada pela injusta condição social que tão gravemente afeta os que nada têm, acaba por frustrar a possibilidade de defesa jurisdicional das prerrogativas jurídicas que competem, de maneira indisponível, a cada ser humano.

No processo de construção da igualdade e de consolidação da cidadania, revela-se essencial organizar um modelo institucional que viabilize o efetivo acesso de

todos – notadamente das pessoas despossuídas – ao sistema de administração de justiça, para que o reconhecimento constitucional dos direitos e das liberdades não se transforme em um inútil exercício de justas expectativas fraudadas pela omissão inconseqüente do Poder Público.

A proteção jurisdicional, ao materializar o acesso ao sistema normativo, permite tornar efetivos e reais os direitos abstratamente proclamados pela ordem positiva.

A frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pelo injusto inadimplemento do dever governamental de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura aos necessitados integral assistência de ordem jurídica (CF, art. 5º, LXXIV), culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável.

Dentro dessa perspectiva, torna-se imperioso cumprir a Constituição (art. 134) e, em conseqüência, fortalecer e consolidar a Defensoria Pública como expressão orgânica e instrumento constitucional de realização do postulado segundo o qual a Justiça deve ser efetivamente acessível a todos, inclusive aos que sofrem o injusto estigma da exclusão social.

Na realidade, mais do que o simples acesso ao processo, impõe-se identificar, na perspectiva mais abrangente do acesso à Justiça, o reconhecimento da necessidade de formular e de implementar um decisivo programa de reforma que vise à remoção dos obstáculos jurídicos, sociais, econômicos e culturais que injustamente frustram ou inibem a utilização, por vastos contingentes da população brasileira, do sistema de administração da Justiça.

Torna-se essencial adequar o Estado e o seu aparelho judiciário às exigências que emergem do novo contexto político, econômico e social que hoje caracteriza a experiência institucional e a organização da sociedade civil em nosso País, provendo o sistema estatal com meios que lhe permitam responder, de maneira idônea, adequada e integral, à intensa demanda de jurisdição, propiciando, desse modo, aos sujeitos da relação processual, o desejável acesso à ordem jurídica justa. Cumpre ter presente, por isso mesmo, a advertência exposta em lúcido magistério doutrinário: “o processo precisa ser apto a dar a quem tem um direito, na medida do que for praticamente possível, tudo aquilo a que tem direito e precisamente aquilo a que tem direito” (Cândido Rangel Dinamarco, “A Instrumentalidade do Processo”, p. 426, 1987, RT).

3. Cabe apreciar (e enfrentar), de outro lado, a crise de funcionalidade que hoje incide sobre o aparelho judiciário brasileiro. Trata-se de situação extremamente grave, que, além de comprometer a regularidade do funcionamento dos corpos judiciários, pode propiciar a formação de condições objetivas que culminem por afetar – ausente a necessária base de credibilidade institucional – o próprio coeficiente de legitimidade político-social do Poder Judiciário.


Antes de mais nada, cumpre identificar os fatores reais de congestionamento que atingem o Poder Judiciário. E o principal deles reside, inquestionavelmente, na oposição governamental (muitas vezes infundada) e na resistência estatal (nem sempre justificável) a pretensões legítimas manifestadas por cidadãos de boa-fé que se vêem constrangidos, em face desse inaceitável comportamento do Poder Público, a ingressar em juízo, gerando, desse modo, uma desnecessária multiplicação de demandas contra o Estado.

O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. Na realidade, o processo deve ser visto, em sua expressão instrumental, como um importante meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, achando-se impregnado, por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins eminentes a que se acha vinculado.

O processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé – trate-se de parte pública ou cuide-se de parte privada – deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o dolo e a fraude processuais como instrumentos deformadores da essência ética do processo.

É preciso reconhecer – e lamentar – que o Poder Público, muitas vezes, tem assumido, em alguns casos, a inaceitável posição de “improbus litigator”, incidindo, com essa inadequada conduta processual, em atitudes caracterizadoras de litigância temerária, intensificando, de maneira verdadeiramente compulsiva, o volume das demandas múltiplas que hoje afetam, gravemente, a regularidade e a celeridade na efetivação da prestação jurisdicional pelo próprio Estado.

Cumpre ressaltar que já existe meio para neutralizar esse tipo de comportamento processual, sem prejuízo da adoção de outras soluções processuais cabíveis. Reside no efetivo cumprimento das disposições da Lei Complementar federal nº 73/93, aplicáveis à União Federal e às suas autarquias, que, na maior parte dos casos, são diretamente responsáveis pelo excesso de litigiosidade recursal que hoje afeta e virtualmente paralisa os trabalhos do Supremo Tribunal Federal.

A LC nº 73/93, em seu art. 4º, XII, atribui ao Advogado–Geral da União o poder de editarsúmula, com fundamento em jurisprudência iterativa dos tribunais. Uma vez editada, a súmula da Advocacia-Geral da União aplica-se, obrigatoriamente, a todos os órgãos jurídicos tanto da União Federal (art. 2º da LC nº 73/93) quanto das autarquias federais (art. 17 da LC nº 73/93), consoante prescreve o art. 43 da Lei Complementar nº 73/93, vinculando-os, assim no plano processual como na esfera administrativa, às diretrizes consubstanciadas nos enunciados sumulares formulados pelo Advogado-Geral da União e resultantes de prática jurisprudencial iterativa dos tribunais (do Supremo Tribunal Federal, especialmente).

Veja-se, portanto, que o princípio da súmula vinculante para a administração pública já se acha devidamente instituído, no plano federal, pela LC 73/93 (arts. 4º, XII, e 43). É uma medida que, além de não comprometer a independência do magistrado, representa uma solução possível, imediatamente aplicável, destinada a permitir o descongestionamento do aparelho judiciário. Estou convencido de que a efetiva aplicação desse instrumento legal, além de contribuir para a celeridade da atividade jurisdicional dos magistrados e tribunais brasileiros, permitirá, ainda, que pretensões legitimamente manifestadas pelo cidadão possam ser atendidas, desde logo, pelo Poder Público, até mesmo na própria instância administrativa.

Louvável, sob esse aspecto, a iniciativa tomada pelo então Advogado-Geral da União, Ministro GILMAR MENDES, hoje eminente Juiz do Supremo Tribunal Federal, que iniciou, efetivamente, no plano da União Federal, a prática da súmula administrativa com efeito vinculante.

4. Cabe, aqui, uma consideração sobre a instituição da súmula vinculante, nos termos em que vem sendo preconizada no contexto da proposta de reforma do Poder Judiciário. Antes de mais nada, impende repudiar qualquer solução que busque impor sanções punitivas ao juiz que se insurgir contra a fórmula subordinante do enunciado sumular, pois não tem sentido prescrever, para os casos de “rebeldia da consciência” do magistrado, qualquer tipo de punição.


O gesto independente de pensar com liberdade não pode conduzir a qualquer restrição que incida sobre o magistrado. O efeito perverso gerado pela aplicação do postulado da súmula vinculante, tal como esse princípio vem sendo disciplinado no processo de reforma judiciária, consistirá na indesejável aniquilação da consciência crítica dos Juízes, em claro antagonismo com as diretrizes que devem informar a concepção democrática do Estado de Direito.

A proposta de instituição da súmula vinculante – além de introduzir, em nosso sistema jurídico, inadmissível hermenêutica de submissão – revela-se inaceitável, porque, ao virtualmente inibir o juiz de refletir, de maneira crítica, sobre as questões submetidas à sua apreciação jurisdicional, culmina por suprimir-lhe a liberdade e a independência no desempenho da atividade jurisdicional.

A Súmula – idealizada e concebida, entre nós, pelo saudoso Ministro VICTOR NUNES LEAL – desempenha, na lição desse eminente Magistrado, enquanto método de trabalho e ato provido de eficácia interna, várias e significativas funções, pois (a) confere maior estabilidade à jurisprudência predominante nos Tribunais; (b) atua como instrumento de referência oficial para os precedentes jurisprudenciais nela compendiados; (c) acelera o julgamento das causas e (d) evita julgados contraditórios.

A Súmula, ao contrário das notas que tipificam o ato normativo, não deve revestir-se de compulsoriedade na sua observância externa, nem de cogência na sua aplicação por terceiros. A Súmula, na realidade, deve configurar mero instrumento formal de exteriorização interpretativa de determinada orientação jurisprudencial, refletindo, em sua formulação, apenas um resultado paradigmático para decisões futuras a serem livremente proferidas por outros juízes e Cortes judiciárias.

A jurisprudência compendiada na formulação sumular – respeitada a exigência de liberdade decisória que deve qualificar, em nosso sistema jurídico, a atuação do Juiz – não pode revestir-se de expressão normativa, muito embora traduza, a partir da experiência jurídica motivada pela atividade jurisdicional do Estado, o significado da norma de direito positivo, tal como ela é compreendida e constatada pela atividade cognitiva e interpretativa dos Tribunais.

A Súmula, não obstante reflita a consagração jurisprudencial de uma dada interpretação normativa, não constitui, ela própria, norma de decisão, mas, isso sim, decisão sobre normas, na medida em que exprime – no conteúdo de sua formulação – o resultado de pronunciamentos jurisdicionais reiterados sobre o sentido, o significado e a aplicabilidade das regras jurídicas editadas pelo Estado.

Em uma palavra: a Súmula não é uma pauta vinculante de julgamentos. Nem deve constituir modelo impositivo de uma inaceitável hermenêutica de submissão.

Insisto, portanto, em que, mantida a Súmula com o seu atual perfil jurídico, dela sejam extraídas todas as suas potencialidades no plano processual, a fim de que, preservadas as funções inerentes ao modelo sumular (funções que conferem estabilidade às relações de direito e que outorgam previsibilidade às decisões judiciais) – e sempre respeitada a essencial independência do Magistrado -, venha este, por efeito de persuasão racional (e não de imposição estatal), a aplicar, facultativamente, na solução da controvérsia, o critério jurisprudencial consubstanciado no enunciado sumular.

A valorização da súmula no plano processual deve permitir que se prestigiem as decisões fundadas na orientação sumulada, de tal modo que se torne possível, “de jure constituendo”, restringir o acesso à via recursal extraordinária, mediante adequado sistema de filtragem ou de controle seletivo dos recursos excepcionais, quando o acórdão se achar fundamentado na súmula. Ou, então, à semelhança do que dispõe o Código de Processo Civil, instituir o reconhecimento, em lei, da possibilidade de os tribunais aplicarem, sempre em favor do “ex adverso”, pena de multa à parte recorrente (mesmo que se trate do Poder Público), que, sem fundamentação consistente ou com objetivos procrastinatórios, impugnar, de maneira temerária, decisões proferidas com apoio na súmula. Ou, ainda, que se preveja, como novo pressuposto de rescindibilidade dos julgados, a sentença de mérito proferida com violação à diretriz jurisprudencial consagrada na Súmula. Ou, então, que se exonere a parte recorrente do encargo financeiro do preparo, quando se tratar de recurso por ela interposto contra decisão que desprestigiar a solução inscrita no enunciado sumular. Ou que se exija, nos casos de recurso contra decisão fundamentada na súmula, a efetivação de depósito preparatório equivalente ao valor da condenação ou correspondente a determinado percentual sobre o valor da causa, subordinando-se, dessa maneira, a cognoscibilidade recursal, à realização desse ato processual, dispensando-se, unicamente, de tal imposição os beneficiários da gratuidade. Ou, ainda, tratando-se de recursos interpostos pelas pessoas estatais ou entidades autárquicas, que se institua, mediante legislação própria, no âmbito dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, o princípio da súmula administrativa vinculante, observado, sob tal aspecto, como modelo, o sistema instituído pela Lei Complementar federal nº 73/93.


Entendo, desse modo, que, no âmbito do Judiciário, a súmula – enquanto método de trabalho e instrumento veiculador de mera proposição jurídica, destituída, conseqüentemente, de caráter prescritivo e normativo – deve ser valorizada processualmente, para que dela possam ser extraídas diversas conseqüências de ordem formal, sem, contudo, jamais inibir a livre atividade jurisdicional dos demais juízes e tribunais.

As medidas ora preconizadas destinam-se a tornar efetivo o direito público subjetivo, que, titularizado por qualquer pessoa, consiste no reconhecimento de seu direito à prestação jurisdicional do Estado, a ser por este implementada sem indevidas dilações. Trata-se de direito que, instituído em favor de todos os membros da coletividade, vem proclamado em importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos básicos da pessoa humana (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, 1; Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 6º, 1, v.g. ), cabendo referir, no ponto, a esse respeito, expressiva decisão que proferiu o Supremo Tribunal Federal:

O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

– O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do ‘due process of law’.

O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva e nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

– O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional.”

(HC 80.379/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

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b>5. Há, ainda, a considerar um outro aspecto que se me afigura de importância irrecusável. Refiro-me ao tema pertinente ao denominado “controle externo” do Poder Judiciário.

A questão da fiscalização externa dos atos dos magistrados, quando desvestidos de conteúdo jurisdicional, projeta-se como um dos tópicos mais relevantes, expressivos e sensíveis da agenda de reformulação institucional do Poder Judiciário.

Sempre entendi essencial e plenamente compatível com a idéia republicana – que possui extração constitucional – a necessidade de instaurar-se, em nosso País, um sistema destinado a viabilizar a instituição de modelo vocacionado a conferir efetividade ao processo de fiscalização social dos atos não-jurisdicionais emanados dos membros e órgãos do Poder Judiciário.

Cheguei a propor, por isso mesmo, em 22/5/1997, quando de minha posse na Presidência do E. Supremo Tribunal Federal, a extensão do mecanismo do “impeachment”, hoje restrito aos membros da Suprema Corte brasileira (CF, art. 52, II), a todos os magistrados, assinalando, então, que os Juízes do nosso mais alto Tribunal judiciário têm estado sujeitos, historicamente, a uma modalidade de fiscalização político-administrativa que representa a forma mais radical de controle externo, porque instaurável, perante órgão de outro Poder da República (o Senado Federal, no caso), por iniciativa de qualquer cidadão (Lei nº 1.079/50, art. 41).

A circunstância de os Ministros do Supremo Tribunal Federal, nas infrações político-administrativas (“crimes de responsabilidade”), haverem sido submetidos, desde a nossa primeira Constituição republicana (1891), à jurisdição política do Senado Federal, órgão integrante do Poder Legislativo, jamais interferiu nem afetou a independência pessoal e a liberdade funcional dos magistrados que compõem a Corte Suprema brasileira.

Vê-se, desse modo, a partir de nossa própria experiência institucional, que a idéia de fiscalização social e externa, não obstante hoje restrita aos magistrados do Supremo Tribunal Federal, revela-se imanente ao sistema da Constituição, por traduzir mecanismo compatível com o postulado republicano.


Nem se diga que o princípio da divisão funcional do poder qualificar-se-ia como obstáculo institucional à concretização desse modelo de fiscalização externa. É que o postulado da separação de poderes, ainda que traduza clara limitação material ao poder de reforma constitucional, não basta, só por si, para excluir a possibilidade de responsabilização disciplinar ou administrativa de magistrados faltosos e inidôneos que tenham revelado, em seu comportamento funcional, absoluta inadequação aos vetores axiológicos e aos parâmetros ético-jurídicos que necessariamente devem reger a atuação dos membros do Poder Judiciário.

Não se pode ignorar que o princípio republicano consagra o dogma de que todos os agentes públicos, inclusive os magistrados, são responsáveis em face da lei e perante a Constituição, devendo expor-se, por isso mesmo, de maneira plena, às conseqüências que derivem de eventuais comportamentos ilícitos.

É por essa razão que tive o ensejo de enfatizar, quando na Presidência do Supremo Tribunal Federal, que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, cujo desempenho funcional respeite, integralmente, os princípios éticos e os postulados jurídicos que condicionam e que conferem legitimidade ao exercício da atividade pública. O direito ao governo honesto – não custa enfatizar – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.

O sistema democrático e o modelo republicano não admitem, nem podem tolerar a existência de regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade.

Nenhuma instituição da República está acima da Constituição, nem pode pretender-se excluída da crítica social ou do alcance da fiscalização da coletividade.

É preciso, pois, reconhecer a soberania da Constituição, proclamando-lhe a superioridade sobre todos os atos do Poder Público e sobre todas as instituições e agentes do Estado, em ordem a reconhecer que o tema pertinente à fiscalização externa do Poder Judiciário – presentes os valores republicanos que informam o nosso sistema constitucional – qualifica-se como verdadeiro pressuposto de legitimação material do exercício responsável do poder e da própria prática democrática das instituições do Estado brasileiro.

6. Outras idéias podem – e devem – ser apresentadas no curso dos debates em torno da reforma judiciária, <b>com o objetivo de permitir, sempre, ampla reflexão sobre temas diversos pertinentes à questão em exame, tais como:

(a) o controle normativo abstrato preventivo de constitucionalidade, hoje não admitido em nosso sistema jurídico (RTJ 136/25-26, Rel. Min. CELSO DE MELLO), cuja introdução teria o objetivo de viabilizar a fiscalização prévia e em tese da legitimidade constitucional de projetos de lei e de propostas de emenda à Constituição, de um lado, e, de outro, de tratados ou convenções internacionais, na fase em que tais atos de Direito Internacional Público ainda se achem sujeitos à apreciação pelo Congresso Nacional ou à ratificação pelo Presidente da República.

Cabe relembrar, neste ponto, que o modelo vigente em Portugal admite a fiscalização preventiva de constitucionalidade quanto a meros projetos de lei, já aprovados pelo Parlamento, ou quanto a tratados internacionais ainda dependentes da ratificação presidencial.

Se o Tribunal Constitucional, nesse sistema, se pronunciar pela inconstitucionalidade, deverá o projeto de lei ser vetado pela Presidência da República, ou, tratando-se de convenção internacional, esta só poderá ser ratificada, se a Assembléia da República, reapreciando-a, vier a aprová-la por maioria qualificada de 2/3 dos seus membros presentes;

(b) a instituição do sistema de contencioso administrativo em sentido próprio, com função jurisdicional, destinado a resolver, em caráter definitivo, situações de litígio entre pessoas políticas (União, Estados, DF e Municípios) e respectivas entidades autárquicas e paraestatais, ou entre umas e outras, desde que situadas na mesma esfera institucional de governo;

(c) a valorização e o estímulo à utilização da mediação, da conciliação e da arbitragem, como instrumentos eficazes de resolução de conflitos referentes a direitos patrimoniais disponíveis.

7. Entendo recomendável discutir, ainda, a possível reintrodução, em nosso sistema constitucional, do instrumento da argüição de relevância, para permitir à Suprema Corte o exercício do poder de selecionar, com prudente discrição, as causas suscetíveis de exame jurisdicional, em sede de recurso extraordinário, à semelhança do que já ocorreu sob a égide da Carta Política anterior e do que se verifica, hoje, no sistema processual argentino (CPC, art. 280, na redação dada pela Lei federal argentina nº 23.774/90) e no ordenamento jurídico norte-americano, com o instituto do “writ of certiorari”.

Torna-se evidente que a disciplinação do instrumento da relevância exigirá reformulação do texto constitucional, notadamente para permitir e viabilizar – em função de uma atividade eminentemente discricionária – o exercício, pela Corte, do poder de selecionar as causas sujeitas a seu julgamento recursal, a partir de dado pertinente ao relevo, à repercussão e à transcendência da questão para o interesse público.

Com a definição de parâmetros objetivos, destinados a condicionar a atividade processual do Supremo Tribunal Federal, tornar-se-á possível delimitar – para inibir eventuais excessos – a carga de discricionariedade judicial subjacente ao ato de seleção das causas que venham a ser admitidas em função de seu maior grau de relevância, de transcendência ou de repercussão geral.

8. No contexto da reforma judiciária, torna-se importante valorizar um outro tema, que, historicamente, tem sido relegado a plano injustamente secundário.

Refiro-me à necessidade de discutir o processo de modernização, aparelhamento e reorganização institucional da Justiça brasileira sob a perspectiva dos problemas e dos fatores de ordem estrutural que tanto agravam a situação de crise a que se acha exposta, hoje, no Brasil, a primeira instância judiciária.

É certo que se deu um passo muito importante com a previsão constitucional dos Juizados especiais. A experiência desses órgãos colegiados, no plano da organização judiciária local de primeira instância, tem sido altamente positiva, notadamente porque os Juizados especiais – além de darem conseqüência real ao processo de democratização da Justiça – apóiam-se em fundamentos que valorizam os postulados da oralidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade.

É por essa razão que o Congresso Nacional promulgou, em 18/3/99, a Emenda Constitucional nº 22 com a finalidade de estender essa importante experiência institucional ao âmbito da Justiça Federal.

Torna-se essencial destacar, neste ponto – tal como o fez o eminente e saudoso Ministro EVANDRO LINS -, que o verdadeiro núcleo embrionário da reforma judiciária reside, certamente, na valorização e na experiência dos Juizados especiais, cuja previsão, no Direito luso-brasileiro, decorre de norma inscrita na Constituição Portuguesa de 1822, cujo art. 181 – em notável antecipação do que viria a constar do art. 98, I, da Constituição brasileira de 1988 – assim dispunha:

“As atribuições dos Juízes electivos são:

I – Julgar sem recurso as causas cíveis de pequena importância designadas na lei, e as criminais em que se tratar de delitos leves, que também serão declarados pela lei.

Em todas estas causas procederão verbalmente, ouvindo as partes, e mandando reduzir o resultado a auto público;

II – Exercitar os juízos de conciliação de que trata o artigo 195º; (…).”

É preciso recuperar o tempo perdido e dispensar aos órgãos judiciários situados no primeiro grau de jurisdição a atenção de que tanto necessitam e da qual se fazem dignos merecedores. A questão judiciária – é preciso enfatizar – não se resume, não se esgota, nem se identifica, unicamente, com a crise que afeta a cúpula do sistema de administração da justiça em nosso País. Não hesito, por isso mesmo, em proclamar – tal como o fiz quando de minha posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal – que, no Brasil, hoje, o processo de reorganização do Poder Judiciário há de iniciar-se por sua base fundamental, que reside na primeira instância judiciária.

9. Impende mencionar, ainda, dentre tantos outros temas impregnados de grande relevância, o fato de que a Constituição brasileira de l988, refletindo, generosamente, as modernas tendências que orientam a formulação da Carta de Direitos, instituiu, com fundamento numa visão global, contemporânea e sistêmica do tema – valorizando, em especial, a perspectiva “ex parte populi”, que é, sempre, a perspectiva da liberdade -, um sistema devidamente organizado de proteção aos direitos da pessoa humana, viabilizando, desse modo, consoante ressalta o saudoso NORBERTO BOBBIO (“A Era dos Direitos” , l992, Editora Campus), a consolidação da ordem democrática e a edificação de um modelo em que predomine, na abordagem da relação política, a partir de uma radical inversão de perspectivas, não mais o ângulo do soberano, mas, essencialmente, a visão e as concepções do cidadão, da pessoa social e da própria coletividade.

Dentro desse contexto, torna-se imperioso que o Poder Judiciário, no exercício de suas funções institucionais, atue, de maneira decisiva, como o órgão protetor dos direitos da pessoa humana, permitindo, desse modo, que se forje, no espírito das pessoas, a necessária consciência crítica sobre a importância vital da Constituição e das declarações internacionais de direitos, como instrumentos de limitação do poder e de salvaguarda essencial das liberdades públicas reconhecidas às pessoas em geral.

Esta é uma verdade que não se pode desconhecer: a emergência das sociedades totalitárias está causalmente vinculada, de modo rígido e inseparável, à desconsideração das liberdades públicas e ao desprezo, por parte do Estado, dos direitos da pessoa humana, que constituem valores fundantes e condicionantes da própria ordem político-jurídica instaurada no âmbito da comunidade estatal.

Aos magistrados – a quem não incumbe realizar os desígnios dos governantes – compete defender a supremacia da Constituição e a intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana, tais como consagrados pelo ordenamento interno ou pelas declarações internacionais de direitos, cabendo-lhes repelir, no desempenho do ofício jurisdicional, práticas atentatórias às liberdades essenciais, neutralizando, desse modo, qualquer ensaio de opressão estatal.

Pode ocorrer, no entanto, que os juízes nacionais não realizem a função político-jurídica de defesa dos direitos básicos da pessoa humana, negando-lhes proteção e falhando no desempenho dessa essencial atividade que incumbe ao Poder Judiciário.

Impõe-se, caso ocorrente tal situação, viabilizar o acesso das pessoas à jurisdição internacional, em tema de direitos humanos.

Entendo, na perspectiva do sistema normativo brasileiro, que se deve proclamar, formalmente, em sede constitucional, em favor de qualquer interessado, o reconhecimento da possibilidade de acesso à jurisdição internacional, em matéria de direitos básicos da pessoa humana, desde que satisfeitos dois requisitos essenciais: (a) tenha sido previamente esgotada a via processual no plano da jurisdição interna brasileira e (b) tenha o Brasil subscrito ou aderido às convenções internacionais que consagrem os direitos vindicados pela parte reclamante.

Proponho, desse modo, “de jure constituendo”, que, esgotada a jurisdição interna, seja reconhecida, a quem se considerar lesado em seus direitos fundamentais, a possibilidade de recorrer aos tribunais ou organismos internacionais constituídos segundo tratados ou convenções dos quais o Brasil, mediante subscrição ou adesão, seja parte.

Essa proposta tem por finalidade neutralizar eventual ação diplomática do Estado brasileiro, que, à semelhança do que ocorreu com o retardamento na aceitação da cláusula inscrita no art. 62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, culmine por recusar a competência jurisdicional de Cortes Internacionais (como o Comitê dos Direitos do Homem, previsto no Protocolo Adicional Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), subtraindo-se, arbitrariamente – não obstante o sentido inequívoco da vontade estatal manifestada na norma inscrita no art. 7º do ADCT/88 – ao controle internacional em tema de respeito e proteção aos direitos básicos da pessoa humana.

É preciso ter presente, neste ponto, que a Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada, consensualmente, pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 1993, recomendou que os Estados-partes de tratados referentes a direitos humanos considerem a possibilidade de aceitar todos os procedimentos facultativos existentes para a apresentação de reclamações e o exame de comunicações, sempre que as instâncias nacionais ou domésticas se mostrarem falhas ou omissas (princípio da subsidiariedade).

Impõe-se destacar, ainda, que o Estado brasileiro, no âmbito externo, tem assumido crescentes obrigações jurídicas e políticas. Já subscreveu ou aderiu a importantes instrumentos ou declarações de direitos, tais como a Convenção contra a Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a Convenção sobre os Direitos da Criança, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher.

Essa nova realidade concernente à proteção dos direitos humanos torna imprescindível, em face dos deveres assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional, que os direitos básicos da pessoa humana, tais como aqueles consagrados em documentos internacionais subscritos pelo Estado brasileiro, passem a constituir objeto de efetiva proteção doméstica e internacional, por parte de nosso País.

Os mecanismos internacionais de proteção aos direitos básicos da pessoa humana, longe de afetarem a soberania interna dos Estados nacionais, destinam-se, no contexto de um processo de crescente globalização das próprias liberdades públicas, a criar instrumentos de salvaguarda vinculados ao cumprimento das obrigações e dos compromissos que cada Estado-parte – o Brasil, inclusive – assumiu na ordem externa, em tema de direitos humanos, que constituem uma realidade político-jurídica indivisível e em processo de contínua expansão.

As inaceitáveis violações dos direitos humanos, quando absurdamente toleradas pelas autoridades locais do Estado nacional, devem ser repelidas pela ação conseqüente e eficaz de organismos externos investidos de jurisdição internacional para apreciar – esgotada, previamente, sem sucesso, a via processual doméstica – qualquer reclamação formulada contra o País, que, embora participando formalmente de convenção ou tratado sobre direitos básicos da pessoa, tenha, ainda assim, descumprido o compromisso solenemente assumido na esfera internacional.

A questão dos direitos humanos não mais traduz problema de caráter doméstico ou interno dos Estados nacionais, pois as liberdades fundamentais reconhecidas em favor das pessoas qualificam-se como prerrogativas que extravasam os limites e o âmbito de validade espacial dos ordenamentos normativos de cada Estado particular.

Para que o sistema de proteção aos direitos básicos da pessoa humana tenha efetiva atuação (e projeção) no plano interno brasileiro, impõe-se – sem prejuízo de outras medidas pertinentes – a adoção de providências, tais como:

(a) o reconhecimento da possibilidade constitucional de acesso à jurisdição internacional, em ordem a permitir, sempre em caráter subsidiário, que as decisões emanadas de organismos supranacionais possam ser executadas internamente em nosso País;

(b) a outorga explícita de hierarquia constitucional aos tratados celebrados pelo Brasil, em matéria de direitos humanos, à semelhança do que estabelece a Constituição argentina (1853), com a reforma introduzida em 1994 (art. 75, nº 22), afastando-se, desse modo, a discussão e a controvérsia em torno do alcance do art. 5º, § 2º, da Constituição do Brasil;

(c) a estipulação, no texto constitucional brasileiro, de cláusula que subordine, à prévia aprovação do Congresso Nacional, a denúncia, pelo Presidente da República, de tratados internacionais em geral e, em particular, daqueles que versem o tema dos direitos humanos, à semelhança do que dispõem as Constituições da Espanha (art. 96, § 2º c/c o art. 94, § 1º, “c”), da Suécia (art. 4º do Capítulo 10), da Holanda (art. 91, § 1º), do Paraguai (art. 142), do Peru (art. 57, última parte, c/c o art. 56, nº 1) e da Argentina (art. 75, nº 22, na redação dada pela Reforma de 1994);

(d) a subscrição e ratificação, pelo Brasil, do Protocolo Adicional Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em ordem a reconhecer a jurisdição do Comitê dos Direitos do Homem, nos casos de reclamações individuais contra alegadas violações, por autoridades brasileiras, aos direitos enunciados nesse Pacto.

Busca-se, com tais propostas, democratizar o acesso à jurisdição internacional, quer no âmbito do sistema interamericano, quer no domínio do sistema global (ONU) de defesa dos direitos básicos da pessoa humana.

10. É preciso ter presente, ainda, no contexto da reforma judiciária brasileira, uma outra questão que se me afigura revestida de inquestionável relevância.

Entendo que o Estado brasileiro, como já o fez a República Argentina, deve adequar a sua ordem constitucional à nova realidade político-jurídica que emerge da experiência comunitária, estimulada pelo crescente processo de integração regional protagonizado pelo Brasil e por nossos parceiros do MERCOSUL.

Isso significa, seja para efeito de aplicação do direito comunitário pelo juiz nacional, seja para efeito de instituição de um Tribunal Comunitário, que a Constituição do Brasil, para implementar tais objetivos, deve admitir:

(a) a possibilidade de nosso País celebrar tratados de integração que deleguem competências e jurisdição a organizações supraestatais;

(b) a supremacia ou o primado das normas de direito comunitário sobre o direito positivo interno de caráter infraconstitucional, pois os tratados internacionais não podem contrariar o texto da Constituição da República (RTJ 84/724, Rel. Min. DJACI FALCÃO – RTJ 179/493-496, Rel. Min. CELSO DE MELLO);

(c) o princípio do efeito direto ou da aplicabilidade imediata dos tratados comunitários, uma vez regularmente celebrados pelo Estado brasileiro (vide, a esse respeito, ampla discussão do tema, em julgamento efetuado pelo Supremo Tribunal Federal: RTJ 174/463-465, Rel. Min. CELSO DE MELLO);

(d) a possibilidade de os juízes estrangeiros vinculados aos Estados-membros do MERCOSUL solicitarem, diretamente, aos magistrados brasileiros, sem prévia intervenção do Presidente do Supremo Tribunal Federal, a execução de providências processuais, mediante expedição de carta rogatória, de juízo a juízo.

11. Finalmente, e sempre no contexto da reforma do Poder Judiciário, há outras considerações que podem ser submetidas ao debate público, tais como aquelas referentes: (a) à vedação do nepotismo, não só na esfera dos Tribunais, mas, também, no âmbito dos demais Poderes da República, (b) à sugestão de progressiva eliminação, até a sua definitiva supressão, das hipóteses de prerrogativa de foro, “ratione muneris”, de determinados agentes públicos, nas infrações penais comuns, (c) à extinção de privilégios processuais concedidos às entidades de direito público, (d) à revisão do alcance dos efeitos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, em ordem a permitir que o Supremo Tribunal Federal, na hipótese de vir a julgá-la procedente, possa expedir provimento normativo destinado a colmatar a omissão, se, decorrido prazo razoável, o órgão estatal inadimplente persistir na situação de inércia e (e) à conveniência de se instituir, no âmbito da competência jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça, o sistema de controle abstrato de legalidade, tendo por objeto atos normativos de caráter infralegal, como portarias normativas, instruções gerais e regulamentos editados pela Administração Pública, permitindo, desse modo, que essa Alta Corte judiciária, em decisão revestida de força obrigatória geral, possa neutralizar desvios de legalidade praticados pelos setores estatais no exercício inadequado do poder regulamentar.

12. Estas, em suma, são algumas das reflexões, que, desde minha posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal (22/05/1997), venho fazendo com o objetivo de contribuir para o debate em torno da questão judiciária.

É chegado o momento de intensificar a discussão em torno da reforma do Poder Judiciário, ampliando o círculo dos protagonistas centrais desse debate, para, nele, incluir, democraticamente, todos os segmentos da sociedade civil, em ordem a conferir, às decisões que venham a ser tomadas pelo Congresso Nacional (que é a instância formal de poder competente para a adoção de tais medidas), o necessário coeficiente de legitimidade político-social.

A questão do Poder Judiciário, que se revela impregnada de forte componente político-institucional, é demasiadamente importante para ser apenas discutida pelos operadores do Direito. É por tal razão que se impõe a ativa participação de todos os cidadãos nesse debate, pois a possibilidade de ampla reflexão social em torno da questão judiciária – que hoje constitui dado revelador da própria crise do Estado -, além de dar significado real à fórmula democrática, terá a virtude de atribuir plena e essencial legitimação ao processo decisório instaurado perante o Congresso Nacional.

Nota de rodapé

1- Ministro do Supremo Tribunal Federal

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