O Iraque é aqui

“Operação Anaconda se demonstra uma verdadeira cobra cega”

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21 de junho de 2004, 10h51

Temos observado, entre atônitos e impotentes, a uma preocupante utilização de falsos argumentos políticos como justificativa para autoridades constituídas de diversos estados manietarem a opinião pública interna e externa, em busca de apoio para iniciativas que analisadas mais profundamente, demonstram-se não tão bem intencionadas como se imaginava quando apresentadas ao público.

Assim é que a pretexto de combater o terrorismo os EUA e seus aliados invadiram o já destruído Afeganistão, e, mais recentemente, o Iraque, e, transportando esse fenômeno da geopolítica para a nossa realidade veremos que aqui, o discurso do combate à corrupção e à criminalidade tem servido de justificativa para toda sorte de violações aos mais elementares princípios e garantias da liberdade e dos direitos civis em nosso país.

Para ficarmos apenas em um exemplo, vejamos a operação Anaconda – que tem-se demonstrado uma verdadeira cobra-cega. Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma “mega operação” da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, “uma investigação como jamais vista na história”, tem-se revelado apenas num amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes.

Alguns fatos continuam sem explicação. O único material existente no início do processo e que embasou a busca e apreensão e a acusação contra juízes, delegados e outros personagens da trama, era o conjunto de escutas telefônicas mantido por cerca de dois anos pela Polícia Federal, sem que se tivesse previamente checado ou investigado qualquer dos pontos de interesse investigativo.

Vejamos o caso do juiz federal Ali Mazloum, acusado de abuso de autoridade por ter determinado a policiais rodoviários federais, que realizavam escutas telefônicas sem ordem judicial, que apresentassem à Justiça o material colhido ilegalmente, esses mesmos policiais rodoviários federais, agora, estão sendo investigados por ordem do mesmo Ministério Público Federal, por realizarem as escutas ilegais.

O mesmo Ali Mazloum está sendo apontado como membro de uma quadrilha de venda de sentenças que beneficiariam o empresário Ari Natalino, sendo que o juiz Ali, na ação em que julgou o empresário, condenou-o, isto, depois de ainda ter determinado a prisão preventiva de sua mulher, em outro processo, onde a mesma acabou igualmente condenada.

Outra aberração contra o juiz Ali foi apontá-lo como membro dessa mesma quadrilha, com base em uma escuta telefônica onde o nome reiteradamente mencionado pelos interlocutores é MARIO e não ALI.

Detendo-se ainda nos irmãos Mazloum (Cassem e Ali), verificamos que os mesmos são apontados como membros de uma quadrilha, da qual participaria o delegado Bellini, porque este, nas escutas telefônicas, não investigadas antes da formalização das acusações, telefonava para a sua mulher, dizendo que iria demorar porque estava em reunião com o juiz Cassem, quando, em verdade, utilizava o argumento para esconder as suas investidas noturnas à Boate Bomboa (night club). Também com base em escutas telefônicas não investigadas, Cassem Mazloum é acusado de ter recebido da quadrilha passagens de primeira classe para o Líbano, terra natal de sua família, quando, em verdade, viajou com a família pela classe econômica e pagou pelas passagens.

A mídia chegou a explorar informação contra Cassem Mazloum, indiscutivelmente vazada por alguém que o estava investigando, sobre uma suposta remessa de dinheiro ao Afeganistão que seria comprovada pela sua declaração de IR (erro comum nas declarações de IR feitas pela Internet). A acusação, embora patética, constou na denúncia apresentada ao Judiciário (como se alguém pudesse supor ser o Afeganistão um paraíso fiscal e ainda declarasse ao IR uma remessa ilegal de dinheiro ao exterior). A exploração do assunto pela mídia causou um efeito tão bombástico que certamente influenciou o TRF, dias antes de apreciar o pedido de recebimento ou não da denúncia.

Com a avançar do tempo e das investigações, a Anaconda vai mostrando ao país o emaranhado de trapalhadas que a fazem parecer uma cobra-cega. Veja-se o caso do engenheiro Hugo Stermman Filho, que passou onze dias preso porque a Polícia Federal e o Ministério Público Federal o confundiram com Hugo Carlette.

Mais grave, até agora, foi a prisão do advogado Carlos Alberto da Costa Silva, que passou seis meses preso, pelo simples fato de constar como procurador de uma empresa off shore, supostamente envolvida nas acusações. O STF, ao deferir a ordem de Habeas Corpus ao advogado, mencionou que a sua prisão fez-se com base em suposições, não em fatos.

É certo que aparentemente alguns dos demais acusados estão envolvidos em atos suspeitos, porém, nada, absolutamente nada justifica a série de trapalhadas, injustiças de terrorismo moral a que estão submetidos vários dos personagens da Operação Anaconda, contra os quais não há sequer indícios de cometimento de crimes, mas que já se encontram com as suas carreiras e vidas pessoais irremediavelmente destruídas, pela irresponsabilidade e incompetência do estado em realizar uma investigação inteligente, com respeito às garantias e liberdades individuais, para que tanto lutamos neste país.

É muito estranho que organizações não governamentais, instituições, intelectuais, partidos políticos e veículos de comunicação estejam assistindo passivamente a barbárie cometida pelo Estado Brasileiro contra essas pessoas, a pretexto de combate à corrupção e da criminalidade, como se o Estado Democrático de Direito, a liberdade e a Democracia fossem um patrimônio coletivo de menor importância, um entrave aos messias e iluminados que querem combater o mal.

Também por medo de questionar uma “mega” operação contra a corrupção ninguém confrontou até o momento o fato de a Anaconda ter sido deflagrada, com enrome estardalhaço na mídia, apenas com base em escutas telefônicas não checadas, poucos dias antes do já aguardado oferecimento de denúncia contra o empresário acusado de assassinar o prefeito de Santo André, cujos CDs com as gravações das conversas que comprometeriam gente graúda do governo estariam guardadas na casa do juiz Rocha Mattos, que garante terem sido apreendidas pela Polícia Federal, que por sua vez garante não as ter apreendido, e tudo fica por isto mesmo, porque, afinal, quem dará credibilidade a um juiz federal que foi pego pela “mega” operação Anaconda, que está limpando o país da corrupção?!

Será que iremos todos assistir calados a esse espetáculo que se assemelha, em métodos e em violência às instituições, ao que o mundo assiste calado no Iraque (e que pode estar escondendo propósitos inconfessáveis)? E quando as vítimas formos nós, quem nos irá defender?

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