CPI em pauta

Celso de Mello defende prerrogativa contra auto-incriminação

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17 de junho de 2004, 18h17

Os indiciados ou testemunhas, em CPIs, dispõem da prerrogativa contra a auto-incriminação. O entendimento é do ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, que concedeu habeas corpus ao empresário Ari Natalino da Silva, do ramo de combustíveis.

O empresário foi convocado pela CPI dos combustíveis, que investiga a sonegação de impostos, máfia, adulteração e possível indústria de liminares no setor de combustíveis.

O ministro concedeu HC para garantir ao empresário o direito de permanecer em silêncio. O ministro, no entanto, não dispensou Silva de comparecer à CPI.

Leia o voto do ministro:

IMPETRANTE: ROBERTO PODVAL EM FAVOR DE ARI NATALINO DA SILVA CONTRA DA CPI DOS COMBUSTÍVEIS

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus” preventivo, no qual os ilustres impetrantes pretendem a outorga de provimento liminar (fls.15/18), com a expedição do pertinente salvo-conduto (CPP, art. 660, § 4º), destinado a impedir que o ora paciente – ao invocar, perante a CPI dos Combustíveis (Câmara dos Deputados), a prerrogativa contra a auto-incriminação, não obstante alegadamente convocado na condição de testemunha (fls. 4) – venha a sofrer, por parte desse órgão de investigação parlamentar e em função do exercício do direito ao silêncio, qualquer injusto constrangimento em seu “status libertatis”.

Passo a apreciar, como substituto eventual do eminente Relator desta causa (RISTF, art. 38, I), o pedido de medida liminar formulado nesta sede processual, considerada a iminente realização, em 14/10/2003 (fls. 19), da audiência na qual o ora paciente deverá ser inquirido “acerca dos assuntos relativos ao objeto de investigação(…)” promovida pela CPI/Combustíveis (fls. 19).

E, ao fazê-lo, defiro a postulação em causa, para o fim de assegurar, ao ora paciente, o direito de permanecer em silêncio, se e quando inquirido sobre fatos cujo esclarecimento possa importar em sua auto-incriminação, sem dispensá-lo, contudo, da obrigação de comparecer perante o órgão parlamentar ora apontado como coator.

Tenho enfatizado, em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, a propósito da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO), e com apoio na jurisprudência prevalecente no âmbito desta Corte, que assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter em silêncio, sem se expor – em virtude do exercício legítimo dessa faculdade – a qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano (“Nemo tenetur se detegere”).

É que indiciados ou testemunhas dispõem, em nosso ordenamento jurídico, da prerrogativa contra a auto-incriminação, consoante tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ 172/929-930, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 78.814/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Cabe enfatizar que o privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do Inquérito Parlamentar” , p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito” , p. 65 e 73, 1999, Ícone Editora; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira” , vol. 3, p. 126-127, 1992, Saraiva, v.g. ) – traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer pessoa pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política.

Convém assinalar, neste ponto, que, “Embora aludindo ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (…), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação” (ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal” , p. 113, item n. 7, 1997, RT – grifei).

É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu esse direito também em favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo, então, que “Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la” (RTJ 163/626, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei).


Com o explícito reconhecimento dessa prerrogativa, constitucionalizou-se, em nosso sistema jurídico, uma das mais expressivas conseqüências derivadas da cláusula do due process of law.

Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio, consoante reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de seus Poderes e aos seus respectivos agentes e órgãos. Atua, nesse sentido, como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.) .

Cabe registrar que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio, ao explicitar, agora em sede constitucional, o postulado segundo o qual “Nemo tenetur se detegere”, nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda que compõe o “Bill of Rights” norte-americano.

Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal (HC 80.530-MC/PA, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Trata-se de prerrogativa, que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO ( “Direito à Prova no Processo Penal” , p. 111, item n. 7, 1997, RT), “constitui uma decorrência natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em seu próprio prejuízo…”.

O direito de o indiciado/acusado (ou testemunha) permanecer em silêncio – consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em Escobedo v. Illinois (1964) e, de maneira mais incisiva, em Miranda v. Arizona (1966) – insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E esse direito ao silêncio inclui, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o depoente negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial, judiciária ou legislativa, a prática de qualquer infração penal.

É por essa razão que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 68.742/DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO (DJU de 02/04/93), proclamou que o réu não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu status poenalis.

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, enfatizou que qualquer indivíduo submetido a procedimentos investigatórios ou a processos judiciais de natureza penal “tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur se detegere’. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal” (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Em suma: o direito ao silêncio constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República.

Cabe enfatizar, por necessário – e como natural decorrência dessa insuprimível prerrogativa constitucional – que nenhuma conclusão desfavorável ou qualquer restrição de ordem jurídica à situação individual da pessoa que invoca essa cláusula de tutela pode ser extraída de sua válida e legítima opção pelo silêncio. Daí a grave – e corretíssima – advertência de ROGÉRIO LAURIA TUCCI ( “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro” , p. 396, 1993, Saraiva), para quem o direito de permanecer calado “não pode importar desfavorecimento do imputado, até mesmo porque consistiria inominado absurdo entender-se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental do indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem”.

Esse mesmo entendimento é perfilhado por ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO ( “Direito à Prova no Processo Penal” , p. 113, item n. 7, nota de rodapé n. 67, 1997, RT), que repele, por incompatíveis com o novo sistema constitucional, quaisquer disposições legais, prescrições regimentais ou práticas estatais que autorizem inferir, do exercício do direito ao silêncio, inaceitáveis conseqüências prejudiciais à defesa e aos interesses do réu ou do indiciado.


No sistema jurídico brasileiro, não existe qualquer possibilidade de o Poder Público (uma Comissão Parlamentar de Inquérito, p. ex.), por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer, sem prévia decisão judicial condenatória irrecorrível, a culpa de alguém.

Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer comportamento estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção, nem responsabilidade criminal por mera suspeita (RT 690/390 – RT 698/452-454).

É por essa razão que “Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído” (RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Não constitui demasia enfatizar, neste ponto, que o princípio constitucional da não-culpabilidade também consagra, em nosso sistema jurídico, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado, ao réu ou a qualquer pessoa, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.

Em suma: cabe ter presente, no exame da matéria ora em análise, a jurisprudência constitucional que tem prevalecido, sem maiores disceptações, no âmbito do Supremo Tribunal Federal:

“- O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

– O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensar qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes.

O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado.

Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.”

(RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Sendo assim, e sem dispensar o ora paciente da obrigação de comparecer perante a CPI/Combustíveis (fls. 19), defiro o pedido de medida liminar, nos precisos termos expostos nesta decisão, em ordem a assegurar, a esse mesmo paciente, o direito de não ser preso (e de não sofrer qualquer injusta coação) em decorrência de eventual e legítima invocação de seu privilégio contra a auto-incriminação, garantindo-lhe, em conseqüência, a prerrogativa de permanecer em silêncio, ainda que convocado na condição de testemunha (RTJ 163/626 – RTJ 176/805-806), se, das indagações que lhe forem dirigidas, puder derivar situação configuradora de sua própria incriminação penal.

Comunique-se, com urgência, o teor deste ato decisório, ao Senhor Presidente da CPI/Combustíveis.

Expeça-se, ainda, salvo-conduto, em favor do ora paciente, nos termos e para os fins a que se refere o art. 660, § 4º do CPP, de cujo teor deverá constar a parte dispositiva da presente decisão.

2. Requisitem-se informações ao órgão ora apontado como coator, encaminhando-se-lhe cópia da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 13 de outubro de 2003(21:55h) .

Ministro CELSO DE MELLO

(RISTF, art. 38, inciso I)

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