Saúde em jogo

Município é obrigado a fornecer remédio contra epilepsia

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15 de junho de 2004, 13h09

A Adminstração Pública deve cumprir o dever constitucional de garantir a saúde e dar assistência à população. Com esse entendimento, o juiz Ítalo Morelle, da 3ª Vara da Comarca de Botucatu, interior de São Paulo, determinou que o município forneça medicamento contra epilepsia ao menor Oderlan dos Santos. Ainda cabe recurso.

Os pais do menor recorreram à Justiça com o argumento de que o garoto é portador de Síndrome Epiléptica de Difícil Controle e que o remédio necessário para o tratamento da doença não foi fornecido pela rede pública.

Oderlan precisa fazer uso contínuo do medicamento. Caso contrário, corre risco de morte. O juiz Morelle acolheu os argumentos.

Em sua sentença, o magistrado cita os artigos 196 e 198, II, da Constituição Federal. Os dispositivos determinam como dever do Poder Público garantir políticas preventivas de saúde, sem prejuízo das atividades assistenciais.

Morelle cita trecho de texto escrito há mais de um século por Joaquim Manuel de Macedo para mostrar como a Constituição foi e vem sendo desrespeitada ao longo dos anos. No texto, de título A carteira do meu tio, o escritor registra: “Constituição nunca foi e não é ainda hoje executada e, quando o for, o Brasil apreciará devidamente e mais até agora, a sua bela monarquia”.

Leia a determinação:

JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE BOTUCATU

3ª Vara – Competência Cumulativa

Processo n. 755/04

V I S T O S et cetera

A hipótese vertente pertine a ação de conhecimento aforada por Oderlan dos Santos (criança devidamente representada) contra Município de Botucatu.

Escorçadamente e em brevíssimo sumário, prende-se o seu repto e inconformismo ante óbice para obtenção de medicamento necessário o tratamento de sua moléstia (Síndrome Epiléptica de Difícil Controle – CID – 10 – G. 40.0), eis que, não fornecido graciosamente pelo requerido. Obtempera que, sem o fármaco, arrostará risco de vida.

Aparelham a vestibular os documentos de f. 09/18.

O despacho inaugural de cunho positivo foi proferido a f. 22/4. Acolitou-se alvitre do Ministério Público (f. 39) e deferiu-se o pleito in limine. No mesmo fôlego, fixou-se astreintes e determinou-se a citação.

In opportuno tempore, adveio resposta (f. 33/7). Não alçou prejudicial e, ao fundo, resistiu à pretensão. Trouxe documentos a f. 38/9.

Réplica a f. 42/3.

Tentame para composição inexitoso. Adveio saneamento e determinação para dilação probatória (f. 49).

Laudo psicossocial a f. 52/6. Laudo médico a f. 69/71.

Inquiridas duas testemunhas (f. 88/9).

Instrução encerrada a f. 87.

Memoriais a f. 90/3 e 95/8, sustentando as partes os seus anteriores posicionamentos, desta feita e contudo, à luz do contexto probatório.

Alfim e ao cabo, o Parecer Ministerial (f. 100/2) prestigiando o desideratum do acionante.

Sinopse ex lege.

DECIDO.

Prospera a pretensão deduzida.

Deveras e ver-se-á linhas avante.

Cônsone o texto expresso e hialino da Magna Charta (art. 196 e 198, II), impossível furtar-se a acionada ao cumprimento de seu mister.

Por oportuno, a seguinte glosa do Pretório Excelso:

“Saúde Pública – Fornecimento gratuito de medicamentos a pessoas carentes e a portadoras do vírus HIV – Responsabilidade também repassado ao Município(1)

E , prosseguindo :

“Ademais, o reconhecimento da validade jurídica de programas de distribuição de medicamentos à pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição Federal (art. 5o., caput, e 196) e, representa, na concretização, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde, especialmente daqueles que nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua dignidade”. (2)

O repto do requerido, concernente a procedimentos administrativos, concordes à padronização, ainda que fulcrado em ordenamento infraconstitucional, não mostra-se apto para gerar óbice ao autor de ver realizada garantia constitucional básica sua, id est, o direito à saúde e, sob outro prisma, o direito à vida, ante a gravidade de seu morbo e a imperiosa necessidade do medicamento de uso contínuo. Na mesma toada, apuros ou embaraços financeiros.

E, repise-se, a efetivação de tal garantia (direito à saúde e à vida) compete, em rigor, a qualquer dos entes da Federação, Município, inclusive.

Evidenciou o pequeno autor sua hipossuficiência econômica e a imperiosa necessidade da droga , a qual, não possui recursos para adquirir. É o que depreende-se, sem ensancha à dúvidas, do labor técnico realizado, assim como, a prova oral coligida sob a umbela garantidora do contraditório (f. 88/9). Na mesma esteira, a imperiosa necessidade do fármaco, constatada a sua moléstia pelo laudo médico (f. 69/71).

Last but not least:

Lamenta-se o vetusto hábito, nestas plagas tupiniquins de desrespeitar-se a Constituição Federal. E vetusto, cônsone o texto de um dos expoentes do beletrismo pátrio, lavrado no século transacto (XIX):

“Aqui jaz quem nunca viveu! (3)

Eis aí, pois, a santa mártir, meu sobrinho: quando ela nasceu, um povo inteiro saldou-a, como a fonte inesgotável de toda a sua felicidade, como o elemento poderoso de sua grandeza futura; saudou-a com o entusiasmo e a fé com que os hebreus receberam as doze Tábuas da Lei: pobre mártir!

Não a deixaram nunca fazer o bem que pode: apunhalaram-na, apunhalam-na ainda hoje, todos os dias, e , entretanto, cobrem-se com o seu nome e fingem amá-la os mesmos sacrílegos que a desrespeitam, que a ferem, que a pisam aos pés…isto é, terás reconhecido por experiência que a Constituição nunca foi e não é ainda hoje executada e, quando o for, o Brasil apreciará devidamente e mais até agora, a sua bela monarquia(4)

O texto encimado, secular, infelizmente, amolda-se como mão à luva à realidade hodierna. E, remete ao escólio do Texto Sagrado:

“Nil sub sole norum” (Nada de novo sob o sol). (5)

Nestes termos:

JULGO PROCEDENTE a presente ação e faço-o com apreciação do mérito (art. 269, I, do CPC)

Via de conseqüência determino o fornecimento gratuito e contínuo do medicamento obsecrado pelo autor, fornecimento este, a ser efetivado pelo requerido, mediante adrede apresentação de comando médico.

Sustida, pois, em definitivo, a liminar dantes deferida.

Sucumbente, arcará o requerido com custas e despesas processuais, bem como, honorários advocatícios que arbitro em 15% sobre o valor da causa.

Fixo a honorária do médico perito em um salário mínimo.

Deposite-se e intime-se para retirada de alvará de levantamento.

Recorro ex officio.

P.R.I.C.

Botucatu, 13 de junho de 2.004 (Domingo).

ITALO MORELLE

Juiz de Direito

Notas de Rodapé:

1) STF – RT 788 – junho de 2.001 – p. 194/5

2) Op. cit

3) Referência a Constituição do Império do Brasil, de 25 de março de 1.824

4) “A CARTEIRA DO MEU TIO” – Joaquim Manuel de Macedo (1.820-1.882) – Record – Pp. 19/20

5) Eclesiastes I, 10

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