Caminho alternativo

Súmula vinculante é propagada como cura para paciente terminal

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10 de junho de 2004, 11h57

Dentre os fatores do atual quadro de desprestígio do Poder Judiciário brasileiro perante a sociedade pode-se destacar, sem qualquer receio, a morosidade dos Juízos e Tribunais, bem assim a incerteza gerada por decisões conflitantes naquelas questões capazes de gerar “impacto de massa”. Os magistrados brasileiros não ignoram estes fatores! Ao contrário, são também vítimas de um sistema judicial que atribui às regras e formas processuais transcendência maior que a própria solução final e concreta do conflito no seu mérito, ou seja, na sua essência.

Como todo problema complexo, a morosidade do Judiciário e as suas decisões conflitantes decorrem de múltiplos fatores: a estrutura constitucional verticalizada dos diversos segmentos da Justiça; o excessivo número de recursos e meios de impugnação previstos na legislação infraconstitucional; a facilidade de acesso aos recursos extraordinários pelas partes que detém recursos financeiros; a adequação e o impacto de cada fato social nas diferentes regiões brasileiras, sabidamente divididas por abismos sócio-econômicos e demográficos. Aqueles que já viveram a experiência de estar em Juízo defendendo algum interesse bem sabem que há, invariavelmente, a chance de rediscutir a questão através de mais um recurso, o que acaba por comprometer o princípio da duração razoável do processo.

Problemas complexos, como é de popular sabedoria, não comportam soluções milagrosas! Demandam reflexão aguda de causas e efeitos. É por este motivo que os juízes brasileiros há mais de dez anos vêm se posicionando de forma contrária à chamada súmula vinculante, instrumento perverso de concentração de poderes e que, equivocadamente, vem sendo propagandeado como o grande elixir para a cura de um paciente terminal.

O acesso de todos à ordem jurídica justa constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. A “capilarização” da Justiça, com a distribuição uniforme de juízes de todos os segmentos pelo vasto território da nação, constitui a melhor ferramenta de que dispõe o Estado para difundir a cidadania entre o seu povo. Nada justifica, portanto, a concepção de um sistema que, na sua essência, retira poderes da base da magistratura e os concentra nas cúpulas dos Tribunais Superiores. No caso particular da Justiça do Trabalho, indaga-se: de que valeria uma estrutura funcional composta por mais de três mil juizes, espalhados por vinte e quatro Regiões Judiciárias, se a interpretação final da norma jurídica trabalhista ficasse restrita aos dezessete Ministros que hoje compõe o TST?

Pois bem! A Súmula vinculante atenta contra o valor supremo e universal da magistratura, qual seja a sua independência. Viola o compromisso máximo do juiz com a sua própria convicção, formação jurídica e cultural, origem e valores de raiz. A instituição de um mecanismo constitucional de vinculação compulsória da base do Judiciário à orientação sumulada da cúpula do STF e dos demais Tribunais Superiores acabará por gerar duas graves deformidades: primeiro, transformará magistrados em meros despachantes de ordens, ceifando o seu papel de agentes políticos; segundo, criará intransponível barreira para a construção dialética da ordem jurídica, inerente a qualquer regime verdadeiramente democrático, onde a interpretação da norma abstrata se faz a partir de sua adequação pluralista ao fato social, com a inescusável participação de juízes, membros do Ministério Público e advogados.

Em suma, o sistema alardeado como sendo o grande elixir, solapando a independência e o prestígio da magistratura de base, sobretudo de primeiro grau, redundará em duro golpe contra a “capilarização” da Justiça e, por conseguinte, contra o fortalecimento do Poder. A estrutura excessivamente verticalizada do Judiciário, frise-se, é bem mais refratária e menos permeável às idéias de participação, acesso, transparência e compromisso social que hoje se impõem a um Judiciário fundado, desde a raiz, na democracia.

A Anamatra, neste ponto, defende a construção de uma jurisprudência que retrate os verdadeiros valores da sociedade brasileira, a partir de permanente debate e edificação de novas teses. Este resultado se pode atingir com a adoção da idéia da Súmula impeditiva de recursos, sistema através do qual nenhum recurso poderá ser admitido ou endereçado ao STF e aos Tribunais Superiores sempre que a decisão do órgão jurisdicional de hierarquia inferior refletir o posicionamento das súmulas de jurisprudência expedidas por aqueles Pretórios. Este sistema, a par de impedir o uso abusivo da via recursal para a rediscussão de matérias já superadas, objeto de jurisprudência pacífica, permite que novos fundamentos sejam conhecidos pelos Tribunais Superiores. Mais do que isso, verificada a possível alteração substancial do contexto fático ou social que redundou na edição da súmula, possibilita a sua eventual revisão. Da mesma forma, assegura à magistratura de base a preservação de sua independência jurídica.

Outro ponto a ser destacado é o de que o malfadado sistema da súmula vinculante contraria a nossa tradição jurídica no tocante ao controle da constitucionalidade, na medida em que, concentrando a missão de interpretar as leis nas cúpulas dos Tribunais Superiores, em especial do STF, praticamente aniquila o controle difuso, existente no Brasil desde os primórdios da República.

Também há que se destacar o fato de que edição de normas abstratas que compõem o corpo de nosso Direito Positivo constitui a função precípua do Poder Legislativo, cuja competência constitucional sofrerá sério abalo com a instituição da Súmula vinculante, com inegável comprometimento do princípio da harmonia e independência dos Poderes da República. Isto porque, o poder de editar Súmulas vinculantes equivale ao de normatizar abstratamente a vida social, com o agravante de ser exercido por representantes do Estado não eleitos diretamente pelo povo.

Por derradeiro, é imperioso questionar a quem interessa este pernicioso sistema! Sabe-se que o ressurgimento do liberalismo como pensamento hegemônico, dentre outros efeitos, objetiva impor aos Estados não integrantes da elite econômica mundial exigências de ajustes em seus sistemas jurídicos, o que não passa ao largo da regulação da atividade das magistraturas nacionais e do funcionamento de seus Poderes Judiciários. É conhecido o Documento Técnico n. 319 do Banco Mundial que, traçando as diretrizes do “Setor Judiciário” para a América Latina e Caribe, traduz a expectativa e a interferência do capital internacional nos processos de reforma do Estado destes países periféricos. Muito embora não faça referência expressa à súmula vinculante, em diversas passagens o Documento n. 319 deixa clara a intenção de estabelecer mecanismos de limitação do exercício da função jurisdicional pela base da magistratura, elevando como valor aquilo que chama de “previsibilidade jurídica”. O que quer o Banco Mundial, braço financeiro do FMI e importante instrumento de execução de suas políticas, é impor aos Estados Latino Americanos “padrões internacionais de jurisdição”, onde os Estados membros dos mercados comuns tenham a certeza da aplicação uniforme das leis e da “previsibilidade” nos resultados dos processos.

Em suma, é necessária e urgente a reflexão sobre o sistema da Súmula vinculante também sob a ótica da preservação da soberania nacional e das bases de nossa democracia.

A Anamatra, acompanhando a posição das demais entidades representativas da magistratura nacional, sobretudo AMB e Ajufe, posiciona-se contrariamente à proposta de instituição da súmula vinculante, inserta no texto da Reforma do Poder Judiciário (artigo 103-A da PEC n. 29/2000 do Senado Federal – n. 96/1992 da Câmara dos Deputados).

Como alternativa, defende a criação da súmula impeditiva de recursos que, atingindo plenamente os mesmos objetivos, não fere o princípio da livre convicção do julgador.

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