Farpas e afagos

Jobim assume presidência do STF e defende controle externo

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3 de junho de 2004, 20h38

A reforma, modernização, o controle do Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça, algumas farpas e outros afagos fizeram parte do discurso de pose do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, nesta terça-feira (3/6).

Durante a cerimônia, que contou com a presença de diversos parlamentares e membros do Judiciário, o ministro ressaltou a importância da criação do Conselho Nacional de Justiça, um dos pontos da reforma do Judiciário em votação no Senado, deve ser visto como “um órgão voltado para a consistência e funcionalidade do sistema” e não como um inimigo.

Para ele, o Poder Judiciário não comporta espaço para biografias individuais e que, para solucionar os seus problemas, a mesa de discussões tem de se ampliar.“Devem estar na mesa o governo, os políticos, os filósofos, os antropólogos, os economistas, os administradores. Também as organizações sociais e os sindicatos de trabalhadores e patrões”.

Jobim propôs que os poderes Executivo e Legislativo baixem as armas. Sugeriu a elaboração de uma agenda comum, “para dimensionar a nossa capacidade de oferta de decisões e seus gargalos”.

Segundo o novo ministro, o sistema Judiciário brasileiro precisa responder a três exigências da sociedade: acessibilidade a todos, previsibilidade de suas decisões, e decisões em tempo social e economicamente tolerável.

Jobim destacou ainda a necessidade de modernização dos tribunais. Atacou aqueles que são contrários a ela e querem a manutenção do da complexidade processual. “A informatização é mais do que um imperativo de modernização administrativa. É condição operacional indispensável para a legitimidade, posto ser esta o produto da eficiência”.

O ministro também distribuiu alguns afagos. Um deles foi para o ex-deputado federal Ulysses Guimarães, a quem lembrou para dizer que “Muitos de nós procuram dar explicações. Caçam culpados. É inútil”. Para Jobim, “a história não registra e não se satisfaz com queixas, explicações ou desculpas. A história lembra do que fizemos e do que deixamos de fazer”. Ao fim do discurso, ele citou também, em agradecimento, nomes como Fernando Henrique Cardoso, Germano Rigotto, José Genoino, José Serra e Miro Teixeira.

Alvo determinado

Em seu discurso, o presidente da OAB Roberto Busato aproveitou para desferir críticas ao governo Lula. Segundo ele, o modelo econômico atual não atende pressupostos básicos como a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. Ao contrário, ele faz do Brasil “um dos países mais injustos do planeta”.

Busato também questionou a constitucionalidade do salário mínimo. “O salário mínimo brasileiro não atende a quesito algum estabelecido pela Constituição. Ano a ano, o que se tem é o reajuste de uma ilegalidade o reajuste da miséria, sob o mesmo e indefectível argumento: a camisa-de-força do modelo econômico-financeiro”.

A edição de medidas provisórias foi outro ponto atacado pelo presidente da OAB. Segundo ele, o governo continua a utiliza-las “sem observância ao preceito constitucional de urgência e relevância”. Para Busato, o uso “compulsivo e desregrado, desde sua concepção, em 1988, gerou um ambiente de promiscuidade legislativa, lesivo não apenas à ordem constitucional e moral do país, como também à atração de investimentos econômicos”.

Leia a íntegra do discurso do ministro Jobim

Senhor Presidente da República

(a história)

Esta é a trigésima nona sessão em que o órgão de cúpula do Poder Judiciário Republicano empossa seus novos dirigentes. Considerado o Supremo Tribunal de Justiça do Império, esta seria a quinquagéssima sessão. Entre Império e República, lá se vão 175 anos. Soube o tribunal vir do Império e firmar-se na República. Foi a República que lhe deu a cara e a personalidade. Órgão com funções republicanas. Para assegurar e garantir a república. São 113 anos de história.


A compreensão do Poder Judiciário passa pela compreensão da própria República. As instituições nascem da história política de um povo. São as circunstâncias e embates históricos que produzem o desenho. O 15 de novembro foi, no início, um golpe militar, interno ao regime imperial. Após, converte-se na derrubada do regime. Porque se tratara de um golpe militar sem povo, os republicanos se impuseram uma específica configuração ao novo estado brasileiro.

Tinha que ser fortemente federalista, porque o império havia sido um estado unitário. Tinha que ser presidencialista, porque o império fora um regime de gabinete. Os republicanos viam o sistema parlamentar como uma acomodação européia com as monarquias. A par disso, tinham os republicanos de forjar instituições judiciárias condizentes com suas necessidades políticas.

A exacerbação descentralizadora esteve nas palavras do apostolado positivista do Brasil que falara na:

"… concórdia das pátrias americanas de origem portuguesa …"([1])

Era o máximo da ousadia. Era o "fanatismo dos conversos". A assembléia reagiu. Instituiu o Supremo Tribunal Federal e desenhou o Poder Judiciário republicano. Um poder com um tribunal para servir à República. Assegurar a unidade nacional pela aplicação do direito republicano. Foi para isso — ser um tribunal da federação.

(tempos modernos)

E a história prosseguiu. Veio a revolução de 30. Depois, o estado novo em 37. A reconstitucionalização de 46. O parlamentarismo de 61. O regime militar de 64. A superação, sem ruptura, de 85. Junto a isso e ao lado disso, massificaram-se as relações jurídicas. Os direitos subjetivos individuais cederam espaço para os direitos coletivos e transindividuais. O aparato judiciário não acompanhou esse fluir.

Ficamos para trás. A paralização reacionária produziu distorções no modelo. Paulatinamente, o supremo tribunal e os tribunais superiores foram perdendo a função de cortes da federação. A cada passo foram sendo transformados em tribunais de justiça às partes. Passaram a ser terceiros e quarto graus de jurisdição. Esvaziou-se a justiça nos estados.

O grau de definitividade da decisão de 1º grau chegou próximo de zero. Tudo tinha e tem que chegar ao supremo tribunal e às cortes superiores. O tempo se dilatou. Veio a morosidade. A nação passou a perceber a disfuncionalidade do poder judiciário. Começou a cobrar. Era o fim do isolamento do Poder Judiciário.

A questão judiciária passou a ser tema urgente da nação. O tema foi arrancado do restrito círculo dos magistrados, promotores e advogados. Não mais se trata de discutir e resolver o conflito entre esses atores. Não mais se trata do espaço de cada um nesse poder da república. O tema chegou à rua. A cidadania quer resultados.

Quer um sistema judiciário sem donos e feitores. Quer um sistema que sirva à nação e não a seus membros. A nação quer e precisa de um sistema judiciário que responda a três exigências:

– acessibililidade a todos;

– previsibilidade de suas decisões;

– e decisões em tempo social e economicamente tolerável.

Essa é a necessidade. Temos que atender a essas exigências. O poder judiciário não é fim em si mesmo. Não é espaço para biografias individuais. Não é uma academia para a afirmação de teses abstratas. É, isto sim, um instrumento da nação. Tem papel a cumprir no desenvolvimento do país. Tem que ser parceiro dos demais poderes. Tem que prestar contas à nação. É tempo de transparência e de cobranças.

Quem não faz o seu papel na história não é nem bom, nem mau. Pior – é inútil. Criamos uma enormidade de problemas porque nos opomos a falar sobre os nossos. Evitamos falar de nós mesmos e desqualificamos quem fala de nós. O momento exige, de todos nós, lucidez política e humildade. A mesa de discusões tem que se ampliar. Não mais só os tradicionais atores – juízes, promotores e advogados. Devem estar na mesa o governo, os políticos, os filósofos, os antropólogos, os economistas, os administradores. Também as organizações sociais e os sindicatos de trabalhadores e patrões. Enfim, todos os que são e fazem o país. Todos críticos quanto ao nosso desempenho.


Muitos de nós procuram dar explicações. Caçam culpados. É inútil. Nisso não esqueço o Dr. Ulysses – Ulysses Guimarães. A esse propósito ele lembrava Benjamin Disraeli:

Never complain

Never explain

Never apologize.

A história não registra e não se satisfaz com queixas, explicações ou desculpas. A história lembra do que fizemos e do que deixamos de fazer. Nada mais. A história incopora resultados e fatos. Não há registro e espaço para boas intenções. A nossa geração não tem muito tempo. O diagnóstico de nosso problema é conhecido. É urgente a terapia. E é aqui a questão. Há concordância com odiagnóstico. E só divergências radicais quanto à terapia.

A reforma, dizem todos, passa, entre outros, pelo sistema processual e pela gestão administrativa. Quando se começa a identificar as modificações necessárias, surge a desavença. Logo alguns verberam sobre urdidas conspirações contra o Poder Judiciário. Outros utilizam a retórica da perversidade e dizem:

– as mudanças propostas moverão o poder judiciário para a direção contrária.

E outros recorrem às teses da futilidade e da ameaça. Todos esses manejam a retórica da intransigência, identificada por Hirschman. Só têm compromissos com seus interesses. Necessário é que venhamos a produzir debates e deliberações que possam modificar as opiniões e as convicções. Aliás, alguém já disse que o pior para a verdade não são as mentiras, são as convicções.

Os convictos querem só marcar posição. Não pretendem resultados. Eles se deleitam com a monotonia das coisas mortas. Para as reformas, precisamos identificar os nossos consensos e nossos dissensos. Vamos à mesa. Todos: advogados, juízes, promotores, acadêmicos, organizações sociais… O poder executivo e o poder legislativo.

Baixemos as armas. Vamos ao diálogo e ao debate democrático.

(agenda)

Proponho a elaboração de uma agenda comum. Eis um de seus possíveis itens. Vamos dimensionar a nossa capacidade de oferta de decisões e seus gargalos. Esse dimensionamento, absolutamente necessário, reclama uma análise estratégica do poder judiciário, na sua integralidade.

Análise essa que induza os 27 Tribunais de Justiça Estaduais, os 24 Tribunais Regionais do Trabalho, os 5 Tribunais Regionais Federais, com todas as suas estruturas de primeiro grau, juntamente com os quatro tribunais superiores e com o Supremo Tribunal Federal a começarem a agir em comum e de forma sistêmica.

A divisão constitucional em tribunais com competências específicas foi pensada para produzir consistência ao todo. Em momento algum se pensou nas autonomias dos órgãos judiciários para impedir o diálogo e obstruir a complementariedade. É assim que devemos pensar a nossa ação futura. Creio que o Conselho Nacional de Justiça, que o Senado Federal está para votar na reforma constitucional, deve ser visto nesta perspectiva.

Um órgão voltado para a consistência e funcionalidade do sistema. O debate de surdos forjou a expressão "controle externo", porque em sua composição se encontram membros não integrantes da magistratura. Lembro a composição pretendida: nove são integrantes da magistratura, desde o supremo tribunal até o juiz de primeiro grau. Quatro outros são oriundos das carreiras que a própria constituição define como "funções essenciais à justiça" – a advocacia e o Ministério Público.

Pergunto: estes quatro últimos não têm nada com o Poder Judiciário? São absolutamente estranhos aos seus problemas? Advogados e Promotores não têm nenhuma responsabilidade com a funcionalidade desse poder?

A resposta está na constituição. São eles ínsitos ao sistema. Basta ver onde se encontram na textura constitucional. É impossível falar sobre o Poder Judiciário sem contar com eles. Integram, assim, o que podemos chamar de Poder Judiciário em sentido lato. Têm eles legitimidade constitucional para pensar e discutir as políticas estratégicas que poderão ser formuladas por tal conselho.


Se viessem a ser excluídos, onde estaria a legitimação de um órgão que precisa integrar todos os atores, posto que deve definir papéis e condutas? Temos, na composição, dois outros membros indicados pelas casas do congresso nacional. São os representantes da cidadania. As exigências para sua escolha são as mesmas para ministros deste tribunal. São as mesmas exigidas para a formação das listas para os oriundos da advocacia e do MP: notável saber jurídico e conduta ilibada.

Impossível pensar que esse conselho, por sua só composição, venha ferir autonomias e independências. Salvo se entendermos que a máquina Judiciária não tem contas a prestar à nação quanto às suas condutas administrativas e financeiras. Salvo se entendermos que o concurso público ou a aprovação pelo Senado Federal tenha dado ao magistrado um poder sem responsabilidade.

A independência não é incompatível com responsabilidade. Pelo contrário, a independência exige a responsabilidade. As funções correcionais outorgadas ao conselho têm caráter subsidiário e complementar aos órgãos dos tribunais.

Onde falharem estes, há a possibilidade de acionar aquele. Nada, absolutamente nada, de extravagante. Trata-se de subsidiariedade. É claro o texto em debate no Senado Federal. O conselho nada terá com o conteúdo das decisões Judiciais. Nada com a nota que dá conteúdo e explica, determinantemente, a independência do judiciário: a atividade jurisdicional.

O produto dessa atividade é examinada, avaliada e eventualmente substituída, quando da decisão dos recursos. A jurisdição é o âmbito para essas questões. Creio que a análise da capacidade de oferta de decisões nos conduzirá ao retorno à idéia mestra do desenho republicano: o fortalecimento da Justiça nos estados.

É nesse ponto que emerge o tema dos recursos. Temos uma miríade de recursos que se reproduzem em cada grau de jurisdição. Além do mais e principalmente, temos a possibilidade do uso indiscriminado e sem conseqüências desses recursos.

Esse conjunto produziu, no Supremo Tribunal e nos Tribunais Superiores, a usurpação de funções dos tribunais nos estados. Precisamos rever isso tudo com responsabilidade e coragem. Aqueles que pensam o processo de forma só acadêmica preocupam-se com a consistência sistêmica do modelo e não com sua funcionalidade.

Colocam em segundo plano a função real do processo: a produção de decisões em tempo eficaz. Nossa legitimidade está indissoluvelmente ligada à eficiência operacional. Há que modernizar a gestão dos tribunais. A informatização é mais do que um imperativo de modernização administrativa. É condição operacional indispensável para a legitimidade, posto ser esta o produto da eficiência.

Há aqueles que querem a ineficiência. Querem a manutenção da complexidade processual. Tudo porque a morosidade lhes assegura um subsídio oculto à sua atividade. Este é outro item possível desta agenda aberta. Devemos dimensionar e identificar a demanda de decisões. Toda a delonga no cumprimento da obrigação acaba fazendo com que o devedor seja financiado pelo orçamento do judiciário, considerada a taxa de juros:

(a) deixo de cumprir, hoje, minha obrigação, para cumpri-la anos após;

(b) o valor não desembolsado, capitalizado ao logo dos anos, à taxa de juros do mercado, acaba sendo superior ao valor final da obrigação decorrente da decisão do processo;

(c) aproprio-me do excedente.

Esse excedente acaba sendo resultado de um financiamento oriundo da morosidade e bancado pelo orçamento do Judiciário – leia-se – do contribuinte. Ponha-se isso tudo em demandas de massa. Estas – as demandas de massas – se materializam em infinitas demandas individuais.

Poderemos, assim, ter uma idéia dos subsídios ocultos aos inadimplentes, travestidos em custos da máquina judiciária. Temos que dimensionar a nossa capacidade de oferta de decisões vis a vis aos focos de demandas de decisões. Só assim poderemos dizer à nação quem são os interessados no longo tempo do processo e trazê-los à responsabilidade.


Sejam eles quem forem. Estejam eles onde estiverem. Sempre tendo presente as republicanas funções do poder judiciário. Não somos mais e também não somos menos que os outros poderes. Com eles, harmonicamente com eles, devemos servir à nação. Lembro que, nos anos 70, a nossa geração procurou atribuir ao poder judiciário uma função de oposição ao regime político de então. Não tínhamos espaço para influir nas políticas públicas.

Por isso tentávamos subverter o regime pela sentença. Bravejavamos a distinção entre o legal e o justo. Queríamos, na sentença, o segundo, em lugar do primeiro. Pregávamos a rebeldia jurisdicional. Tudo porque o legal era produto de um regime autoritário. O poder judiciário aparecia como um local em que poderíamos produzir – na sentença – uma oposição ao regime.

As circunstâncias políticas mudaram. O país é outro. O regime autoritário ficou no registro da história. Na plenitude democrática só o voto legitima as políticas públicas. O discurso e a prática de ontem são imprestáveis hoje. A decisão judiciária não pode se produzir fora dos conteúdos da lei – lei essa democraticamente assentada em processo político, constitucionalmente válido.

Não há espaço legítimo para soberanismos judiciários estribados na visão mística de poder sem voto e sem povo. A mensagem democrática e republicana é simples: cada um em seu lugar;

cada um com sua função.

Todos comprometidos e responsáveis com o desenvolvimento do país.

Senhor presidente da república;

Senhor presidente da câmara dos deputados;

Senhor presidente do senado federal e do congresso nacional;

Parlamentares;

Governadores

Magistrados e magistradas:

É essa a regra do convívio democrático.

São estes os pressupostos da ação.

São essas as exigências do futuro.

Façamos um acordo a bem do Brasil e do seu futuro.

De um Brasil que reclama a inclusão social e o bem estar de todos.

Que exige o desenvolvimento social e econômico.

Que passa a enfrentar os seus obstáculos culturais, sociais e econômicos.

Que discute e quer dar solução à exclusão dos negros.

Que sente o desafio deste século.

Sejamos – todos – merecedores da condição de brasileiros.

Lembro de meu avô walter:

"não adianta fazer praça da nossa miséria e das nossas dificuldades; o que precisamos é ter a coragem de dominá-las. Só os desalentados é que abandonam o combate da vida."

Meus colegas de Tribunal. Agradeço a confiança. A tradição do tribunal foi mantida. Vejo esta presidência como um espaço para servir ao Judiciário nacional e ao tribunal e, portanto, à Nação. Não é – usando de expressão muito cara aos movimentos políticos dos anos 60 – não é – repito – a presidência um aparelho para projetos pessoais. Para servir, não para mandar.

Magistradas e magistrados.

Só a convergência de vontades fortalece a ação.

Vamos ao diálogo e ao entendimento.

Tenhamos o espírito aberto ao discernimento

Agradeço a meus colegas e à sorte pela presença de Ellen Gracie na vice-presidência. Haverá, como já está havendo, a efetiva partilha de tarefas e ações a bem da administração do tribunal e do exercício de sua função de órgão de cúpula no Poder Judiciário nacional. Conheço Ellen desde muitos anos. Sei de seu caráter, capacidade, transparência, franqueza e coragem.

Faço menções pessoais. Refiro, com gratidão e reverência, a pessoa de Fernando Henrique Cardoso. O deputado de 1987 aprendeu, com Fernando, que a tolerância é filha da reflexão. Registro, também com gratidão, a presença de Pedro Simon – em 1986 ele teve a coragem de arrancar, para a política, um advogado de Santa Maria.

Agradeço, emocionado, a presença de meus amigos de sempre – desde a Constituinte: Miro Teixeira, José Serra, José Genoino e Sigmaringa Seixas. Um já se foi: Luiz Eduardo Magalhães. Aprendi muito com vocês – aliás com o parlamento brasileiro – Câmara e Senado.


Agradeço ao Rio Grande.

Ao governador Germano Rigotto.

Agradeço a meu sempre professor Lélio Candiota de Campos.

Aos meus colegas da turma de 1968.

À Santa Maria da Boca do Monte.

Ao meu pai e à memória de minha mãe, a meus filhos, a meus irmãos, a meus enteados.

Agradeço a palavra de todos.

Desconsiderem os exageros de Velloso.

É o carinho mineiro do amigo.

Carlos Mário, tu sabes, todos nós sabemos, que ao fim de tudo, quando nada temos para dar, o que individualmente conta é a amizade dos reais amigos.

Tu és um deles.

Mas, acima de tudo, agradeço o amor, para dar e para ter – reciprocamente. Isso eu tenho e muito. É Adrienne. Beijo-te as mãos, querida.

Leia íntegra do discurso de Busato

Quero inicialmente manifestar a honra de representar neste ato solene de posse a advocacia brasileira. É um momento de grande significação para todos os atores da cena político-institucional de nosso país e, em especial, para nós, que atuamos no campo do Direito.

Saúdo, em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, os eminentes ministros Nélson Jobim e Ellen Gracie Northfleet, que se empossam respectivamente nos cargos de Presidente e Vice-Presidente deste Supremo Tribunal Federal.

Na expectativa de convivência profícua e democrática, que tem marcado historicamente nossas relações institucionais, desejo a ambos pleno êxito na missão de presidir a mais alta Corte do Judiciário brasileiro.

Poucas solenidades de posse neste Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, foram precedidas de tamanha expectativa nos meios jurídico e político como esta.

Trata-se de reflexo da circunstância histórica que vive o país, marcada por demanda acentuada de Justiça, em todos os níveis, o que dá realce especial ao papel que este Poder desempenha no conjunto das instituições da República.

Em nenhum outro momento da história, o Judiciário foi tão discutido, questionado, exposto e avaliado pelo cidadão comum como hoje. Foi-se o tempo em que as instituições do Estado se mantinham impermeáveis ao controle da sociedade.

Hoje, felizmente, já não há espaço para torres de marfim na paisagem institucional brasileira. A sociedade é cada vez mais participativa e vigilante.

E é bom que assim seja, pois somente com uma cidadania consciente e politizada o país terá instituições fortes e acreditadas e poderá romper as bitolas do subdesenvolvimento. E esse processo entre nós está apenas se iniciando.

A tendência é a sociedade tornar-se cada vez mais exigente e reivindicativa – e as instituições do Estado precisam aprimorar-se e ajustar-se a esse novo momento.

Por tradição, cabe à Ordem dos Advogados do Brasil, nesta cerimônia, manifestar-se em nome da advocacia e da sociedade civil, perante os três Poderes da República aqui representados. E registro como discreto e significativo sinal de mudança no perfil geopolítico do país o fato de tanto a OAB como os três Poderes terem hoje em seu comando homens nascidos e formados no interior: o Presidente da República, de Garanhuns, Pernambuco; o Presidente do Supremo, de Santa Maria, Rio Grande do Sul; o Presidente do Congresso, de Pinheiro, Maranhão; e o Presidente da Ordem, de Caçador, Santa Catarina, e radicado em Ponta Grossa, Paraná.

Ressalto o forte simbolismo deste ritual, que enfatiza o papel da OAB de porta-voz da cidadania, missão que nos é estabelecida pelo Estatuto da Advocacia, que nos compromete não apenas com as justas demandas corporativas, mas também e sobretudo com a defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado democrático de Direito.

E é no estrito cumprimento desta missão estatutária que nos manifestamos com freqüência a respeito de questões da conjuntura político-institucional brasileira. Tratamos de política sem sectarismo ou partidarismo, na sua essência etimológica, de gestão do bem comum.

Nossa ideologia é a defesa da cidadania e da Constituição. Nessa trincheira sempre estivemos e estaremos, quer enfrentando o autoritarismo, em defesa das liberdades fundamentais, quer pugnando pelo aprimoramento das instituições jurídicas e do Estado, em tempo de democracia.


Senhoras e Senhores,

Não temos a pretensão de agradar ou desagradar.

Não somos governo, nem oposição. Cultuamos a coerência e não temos projeto de poder. Eventualmente, forças partidárias se identificam com nosso discurso ou dele buscam tirar proveito, quer por convicção, quer por oportunismo.

Mas isso não desvia nosso foco, nem nosso objetivo. Nossa meta é tão-somente a defesa da cidadania e da ordem jurídica do Estado democrático de Direito – e nenhum assunto que envolva essas causas nos é estranho, indiferente ou inoportuno.

E isso nos remete a uma constatação implacável, que tenho feito reiteradamente – e aqui a repito: O Brasil é um país inconstitucional. Sendo esta Corte a cidadela máxima de defesa da Constituição, cabem aqui o registro e a reflexão em torno dessa afirmação.

Estamos há anos em desacordo com o preceito constitucional expresso nos três primeiros itens do artigo 3° de nossa Carta Magna, que estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil :

"I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais."

Sabemos que o modelo econômico que aí está, e que remonta a administrações anteriores, não atende a nenhum desses pressupostos. Ao contrário, os afronta, ao acentuar as desigualdades, reduzir a produção e aumentar o desemprego, tornando-nos um dos países mais injustos do Planeta.

E isso é uma aberração não apenas moral, mas também jurídica, à qual espantosamente nos tornamos insensíveis e à qual vimos nos adaptando na seqüência e sucessão das administrações.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, a exemplo do que já ocorria em relação à ordem constitucional anterior, cultivamos o estranho hábito de ajustar a nossa Lei Maior aos programas de governo, e não o oposto, como estabelece o juramento constitucional que cada governante presta perante a nação ao ser empossado, razão maior do brutal acúmulo de processos nesta Egrégia Corte.

Resulta disso a síndrome do reformismo que há anos tomou conta do país. Invocam-se os mais diversos argumentos contábeis e financeiros para justificar supressão de direitos (inclusive direitos adquiridos), violação de cláusulas pétreas ou mesmo inconstitucionalidades explícitas.

Os interesses da banca internacional são inquestionáveis, invioláveis, cumpridos algumas vezes com rigor acima do exigido. Devemos ser igualmente exigentes em relação à Constituição – e particularmente aos direitos sociais nela consagrados.

É o caso, por exemplo, do salário mínimo. Há muito que é inconstitucional, já que não preenche os requisitos estabelecidos no item IV, do artigo 7° de nossa Carta Magna.

Diz esse artigo que:

"São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(…) salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (…)

Esta é a determinação estabelecida pelo constituinte de 88 e jamais cumprida. O salário mínimo deve prover as "necessidades vitais básicas" do trabalhador e de sua família naqueles quesitos relacionados pelo legislador. E, no entanto, não provê.

É insuficiente até para atender a um só indivíduo (que dirá uma família!) num único quesito que se queira pinçar isoladamente do texto: moradia, alimentação, saúde etc.

O salário mínimo brasileiro – inconstitucional desde sua origem – não atende a quesito algum estabelecido pela Constituição. Ano a ano, o que se tem é o reajuste de uma ilegalidade o reajuste da miséria, sob o mesmo e indefectível argumento: a camisa-de-força do modelo econômico-financeiro.


Mas foi para mudá-lo que o povo se manifestou maciçamente nas eleições passadas, anseio que persiste até hoje e aguarda firmemente o seu momento.

Prezamos o superávit fiscal, mas prezamos mais ainda o superávit social. Constatamos que, enquanto se busca ardorosamente o primeiro, descuida-se (quando não simplesmente se despreza) do segundo. Somos ainda uma nação de excluídos – e nenhum país chega ao Primeiro Mundo com sua população do lado de fora. Esta é uma verdade inapelável e irrecorrível. Ou se ajusta a economia a ela ou continuaremos um país desajustado.

São desafios fundamentais, que têm sido negligenciados por sucessivas administrações. E o resultado está expresso no aumento do desemprego, da violência e da perda de credibilidade por parte das instituições do Estado.

Senhoras e Senhores,

O Judiciário não é peça isolada nesse processo, mas às vezes sua inoperância causa estragos consideráveis. Daí a expectativa com que aguardamos a reforma, ainda que parcial, do Judiciário, em vias de ser aprovada pelo Senado.

Caberá ao presidente Nélson Jobim o desafio de comandar a implantação de uma reforma que tramita há doze anos pelo Congresso, submeteu-se às mais diversas e legítimas pressões, mas está longe de ser a dos nossos sonhos. Mesmo assim, traz algumas mudanças positivas nas relações do Judiciário com a sociedade, tornando-o mais próximo e transparente.

Destaco, como sinal deste novo momento, a adoção do princípio do controle externo, que gerou inicialmente incompreensões, mas que já começa a ser melhor assimilado por setores influentes da magistratura.

Para tanto, contribuiu decisivamente, entre outros, o próprio ministro Nélson Jobim, cuja experiência de homem público, com passagens marcantes pelos três Poderes foi deputado federal, constituinte e ministro da Justiça, deu-lhe o descortino necessário para perceber e sustentar o alcance superior desse princípio.

Não se trata de um instrumento contra o Judiciário, que vise a desmerecê-lo em sua autonomia e independência. Muito pelo contrário, trata-se de instrumento a seu favor, capaz de preservar-lhe a boa imagem institucional. Não abrange, evidentemente, a independência jurisdicional dos juízes esta sim, sagrada, intocável e inegociável.

Trata-se de instituir uma instância supervisora, o Conselho Nacional de Justiça, capaz de controlar atos administrativos e julgar desvios de conduta de membros do Judiciário, que, hoje, nos termos da Constituição, são julgados pelas cortes a que pertencem.

Como se sabe e este é não apenas um fundamento do Direito, mas um axioma da sabedoria popular universal ninguém é bom juiz ou advogado em causa própria. Exatamente porque é a instância que administra e distribui justiça a todos os cidadãos e Poderes da República, possuindo membros vitalícios, é que o Judiciário precisa de alguma forma de controle externo. Esse controle é uma via de mão dupla: garante à sociedade uma Justiça transparente e garante à Justiça a intocabilidade de sua imagem perante o público.

E isso, hoje em dia, é particularmente valioso.

Sem credibilidade, as instituições do Estado enfraquecem e perdem eficácia. A OAB diverge de alguns pontos da reforma. Opõe-se, por exemplo, à súmula vinculante, por considerá-la inibidora da independência dos juízes de primeira instância, restringindo suas prerrogativas e obrigando-os a homologar cartorialmente sentenças pré-estabelecidas.

Contra ela, continuaremos a nos bater no Congresso Nacional, cenário adequado para dirimir democraticamente conflitos.

O argumento central dos que a defendem é que descongestionará o Judiciário, tornando-o mais ágil. Temos certeza de que não. Para obter esse descongestionamento, mais eficaz seria a racionalização das codificações processuais, dotando-as de instrumentos que permitam a solução de litígios, reduzindo, sem prejuízo da ampla defesa, a possibilidade de eternização das demandas judiciais, mediante recursos sucessivos, que servem apenas para impedir a produção de justiça.


Como a administração pública é a grande responsável pela avalanche de feitos que, por razões várias, ingressam diariamente nos tribunais superiores, medida desobstruidora eficiente é a que venha a tolher a interposição de recursos pela Administração Pública, sempre que estes implicarem rediscussão de tese já sumulada pelo Supremo Tribunal Federal.

Grande parte dos temas inquietantes do cotidiano brasileiro atual violência, drogas, criminalidade urbana, rebeliões penitenciárias, corrupção administrativa, conflitos fundiários tem, entre os fatores que os tensionam, a inoperância do Poder Judiciário. E essa inoperância gera impunidade, que, por sua vez, gera ambiente propício à violência, à corrupção, à criminalidade organizada e à deterioração das instituições.

Quando falamos em reforma do Judiciário, estamos tratando de algo bem mais abrangente que mudanças pontuais no funcionamento operacional de um Poder. Estamos falando do aperfeiçoamento do próprio Estado democrático de Direito.

Para que a democracia ganhe efetivo conteúdo social e deixe de ser letra morta na Constituição, é preciso que a sociedade disponha de um Judiciário eficiente e acessível a todas as camadas da população.

Não é ainda o que temos. O Brasil, como se sabe, é um dos países com maior concentração de renda do mundo. E, desde o advento da chamada globalização econômica, viu seus dramas sociais se agravarem. Um desses dramas, dos mais pungentes, é a crise de justiça, a deficiência da estrutura judiciária e a falta de acesso do povo a seus serviços.

Daí a importância que a OAB há anos atribui à reforma do Poder Judiciário, importância que só recentemente passou a ser compartilhada pelo poder político. Sem Justiça eficiente e acessível (e não a temos), não há democracia digna desse nome.

Credite-se, a propósito, ao atual governo – e o faço aqui na pessoa de seu ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos – o mérito de ter tido essa percepção de urgência e relevância para essa reforma, acelerando sua tramitação no Congresso e permitindo que, enfim, se materialize, ainda que parcialmente.

Outro avanço que merece registro e aplausos diz respeito ao freio de arrumação na farra dos cursos jurídicos de má qualidade, que comprometem estruturalmente a prestação jurisdicional do país.

O ministro da Educação, Tarso Genro, comprometeu-se com a OAB de suspender temporariamente a concessão de registros e estudar a possibilidade de que nossos pareceres técnicos nessa questão sejam vinculantes. É, sem dúvida, um grande avanço.

Os governos anteriores, é forçoso constatar, não tiveram a mesma sensibilidade e empenho nessas duas questões a reforma do Judiciário e o ensino Jurídico , não obstante os sistemáticos apelos nesse sentido dirigidos pelos que atuam na cena do Direito e pela sociedade civil organizada.

Lamentamos, apenas, que essa sensibilidade, que louvamos, não se manifeste também em relação a outro tema igualmente fundamental para a criação de um ambiente de segurança jurídica no país. Refiro-me às medidas provisórias, que continuam a ser utilizadas sem observância ao preceito constitucional de urgência e relevância.

Não exagero se disser que hoje nem sequer se sabe que medidas provisórias estão em vigência. O seu uso compulsivo e desregrado, desde sua concepção, em 1988, gerou um ambiente de promiscuidade legislativa, lesivo não apenas à ordem constitucional e moral do país, como também à atração de investimentos econômicos.

Sem segurança jurídica, o que há é o caos e a volatilidade, cujos efeitos políticos, sociais e econômicos são de todos conhecidos.

Desde a posse do atual governo, foram editadas 88 medidas provisórias, o que dá a espantosa média mensal de mais de cinco.

No governo passado, em igual período, essa média ficou acima de seis, embora grande parte delas fosse de reedições, depois proibidas por lei. Por essa razão, a média atual é ainda mais preocupante, pois dela não constam reedições.

Nesse quadro, medida provisória, em temas sem urgência e relevância, é fator de insegurança jurídica.

Reporto-me aqui ao renomado jurista argentino Raúl Zaffaroni, que, em seu livro "Poder Judiciário – Crise, Acertos e Desacertos", assim avalia as conseqüências de um ambiente de insegurança jurídica:

"A uma menor segurança jurídica corresponde um menor investimento produtivo e um maior investimento especulativo, ou garantias de maiores rendas, compensatórias da insegurança.

Isto não é compensado com mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos quando o seu protagonista pode ser o próprio Estado."

Portanto, no que diz respeito à atração de investimentos econômicos, o chamado dever de casa – termo tão caro aos nossos tecnocratas – deve incluir prioritariamente o uso restritivo das medidas provisórias. Esse compromisso continuaremos a cobrar deste governo assim como cobramos do governo passado e continuaremos a cobrar de governos futuros, enquanto essa anomalia se mantiver.

Nosso compromisso, repetimos, é com a Constituição e a cidadania e, em sua defesa, não hesitaremos em sustentar posições que eventualmente contrariem a ordem política dominante. Trata-se de atitude coerente com nossa história, de que não abrimos mão nem mesmo nos tempos mais sombrios dos regimes ditatoriais.

Confiando no futuro do Brasil, quero, antes de concluir, reiterar a expectativa da advocacia brasileira de que esta gestão que hoje se inicia, coincidente com as iminentes mudanças trazidas pela reforma do Judiciário, favoreça uma maior valorização das convergências entre os atores da cena judiciária: procuradores, magistrados e advogados.

Historicamente, temos a tendência de valorizar as divergências, deixando de perceber e explorar as amplas convergências já conquistadas. É por meio delas que poderemos construir um ambiente jurídico mais justo e equilibrado para nosso país, nos termos da clássica sentença de São Bernardino de Siena, segundo o qual "a Justiça é a constância de uma perpétua vontade".

De nossa parte, seremos constantes e determinados na busca desse ideal.

Muito obrigado.

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