Retrato de uma ilha

Fernando de Noronha: o paraíso sem escritórios de advocacia

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30 de julho de 2004, 11h00

Nenhum homicídio, índice de criminalidade de 0,066% (dois condenados, por apropriação indébita e roubo de uma lancha — em uma população de 3.100 pessoas) e nenhum processo envolvendo porte ou consumo de drogas. Mínimo índice de separações ou divórcios, casamentos feitos apenas em um ou dois dias do mês e prisões rápidas que se limitam a casos de bebedeiras, agressões leves ou desacato à autoridade.

Esse é o retrato judicial de Fernando de Noronha, que o juiz de Direito Fausto Campos e o promotor de Justiça Erik Simões apresentaram para o site Espaço Vital.

Mas, nesse contexto, uma exceção chama a atenção. Em meados de 1998, os três funcionários da única agência bancária existente na ilha — em seu ponto mais central — tiveram a surpresa de se verem ameaçados por um revólver empunhado por um motoqueiro, de capacete com a viseira escurecida por um plástico fumê.

“É um assalto!”, avisou ele, ante a reação do caixa que imaginou estar diante de uma “palhaçada” feita por algum cliente. Quando o assaltante engatilhou o revólver, os bancários perceberam as verdadeiras intenções do visitante e lhe passaram às mãos toda a “fortuna” da agência do Banco Real, naquele dia: R$ 10 mil em dinheiro e R$ 5 mil em cheques.

Em menos de três minutos, o assaltante evadiu-se em sua moto — devidamente identificada pela própria placa — levando numa mochila o dinheiro que lhe permitiria “colocar as contas em dia”. O amadorismo do assalto foi desmascarado pela presença de uma turista que estava próxima e que, querendo fotografar o Banco Real, captou também a moto estacionada.

Foi uma questão de horas para a polícia localizar o assaltante (“Zé”, digamos), recuperar quase todo o dinheiro e despachá-lo para um presídio em Recife.

Conhecido como “gente boa”, sem antecedentes, momentaneamente desempregado, “Zé” contou depois com a generosidade da população que fez um abaixo assinado para que ele cumprisse a pena de oito anos no xadrez que as polícias civis e militar mantêm na ilha. Deferido o pedido, o ex-atrapalhado assaltante voltou a Fernando de Noronha em 2000, já em progressão de regime, transformando-se, no regime semi-aberto, no mais bem sucedido produtor de hortaliças da ilha.

Na quinta-feira da semana passada, penúltimo dia de sua jurisdição em Fernando de Noronha, o juiz Fausto Campos grafou, em sua agenda, dois fatos que se tornarão inesquecíveis naquele 22 de julho: “Zé” compareceu ao gabinete do magistrado para casar-se e para receber seu alvará de soltura. É um caso raro de recuperação e plena reintegração social. Talvez “o paraíso” explique isso.

Um “paraíso” sem registro de homicídios

A ocupação das ilhas que constituem o arquipélago de Fernando de Noronha é quase tão antiga quanto a do continente: o arquipélago foi descoberto por Américo Vespúcio em 1503, na segunda expedição portuguesa ao Brasil.

No ano seguinte, a área foi doada a um espanhol (Fernão de Loronha, que fora um dos financiadores da expedição), que deu o nome ao conjunto de ilhas que nunca chegou a visitar. O nome Fernão de Loronha foi aportuguesado, ao longo dos séculos, ajustando-se à denominação atual, bem brasileira.

De lá para cá, o arquipélago foi invadido e ocupado por portugueses, holandeses, franceses e alemães, sem falar nos americanos, que ali construíram uma base militar durante a Segunda Guerra Mundial. Durante a ocupação portuguesa no século 18, foram erguidas dez fortificações, entre as quais o Forte Nossa Senhora dos Remédios — ainda em pé.

Além destes, também foram construídas a Igreja N. Sra. dos Remédios e prédios coloniais. Já brasileiro, o arquipélago foi território federal, abrigando um presídio.

Transformado em distrito federal de Pernambuco — embora 200 kms. mais próximo da costa do Rio Grande do Norte — o colunista encontrou, na semana passada, Fernando de Noronha ainda sem qualquer registro de homicídios em seus 501 anos de história.

O índice de criminalidade é de 0,066% — talvez o mais baixo do planeta — apesar da ocorrência de um inusitado assalto à única agência bancária (Banco Real) da ilha. “É um paraíso”, define o juiz Fausto Campos, titular da Vara do Júri de Recife, e que presta jurisdição na ilha, uma semana por mês.

Uma ilha sem advogados e padres

Paraibano do município de Patos, engenheiro civil concursado de um órgão estadual de Pernambuco, 57 anos de idade, indicado pelo governador — com o referendo da Assembléia — Edrise Aires Fragoso não pretende se radicar na ilha. Fica no cargo até no máximo dezembro de 2006, depois se aposenta e volta a viver em Recife.

“Precisamos de investimentos na área de bons restaurantes, frota pesqueira, atividades de pesca, casas noturnas e atividades culturais”, dimensiona o administrador, ante possível interesse de investidores do Sul.

Ele, o juiz e o promotor trazem ao colunista, em momentos distintos, uma mesma informação: não há escritórios de Advocacia na ilha. Os litígios envolvem a participação de advogados apenas de Recife, onde as ações (são, no mais das vezes, casos de sustação de protestos) têm que ser ajuizadas. Já os pequenos casos locais são resolvidos com o pessoal da Defensoria Pública que, periodicamente, se desloca do continente para a ilha.

Com todos os 30 processos possíveis efetivamente sentenciados nos últimos seis meses, o juiz Fausto Campos vaticina que “aqui os advogados morreriam de fome”. São evidentes contrastes com o “paraíso” que Fernando de Noronha é.

O prédio da única igreja está mal-conservado — diríamos que “caindo aos pedaços”. Talvez seja o reflexo de a ilha não ter padres. Nas festas religiosas e para as celebrações de casamentos, um arcebispo emérito de Maceió (aposentado) é necessariamente convocado.

Mulheres e investimentos serão bem-vindos

Os guias turísticos brincam com os turistas recém chegados e passam uma informação que é apenas parcialmente verdadeira: “da população de três mil e cem pessoas, são três homens para cada mulher”. A predominância masculina é confirmada pelo administrador-geral Edrise Aires Fragoso, mas com um retoque feito a partir de dados do IBGE: são 52% de homens e 48% de mulheres, quando se trata de população fixa que, pelo último censo (ano 2000), é de 2.051 pessoas e que hoje chegariam a 2.300.

Mas há predominância eminentemente masculina na chamada população temporária: são garçons, cozinheiros, guias turísticos, mergulhadores, garis etc., formando um estimado exército de outros 700 homens e apenas 100 mulheres. É, assim, uma população total de 3.100 pessoas, com 1.859 homens (59,9%) e 1.241 mulheres (41,1%).

O administrador, que é, por alguns, conhecido como “prefeitão”, comemora que não há desemprego e que o hospital (São Lucas) é bem equipado, com dois médicos, um dentista e leitos suficientes para eventuais necessidades. O ensino vai bem, obrigado: são 22 alunos no ensino médio; 300 no fundamental; e 108 no pré-escolar — retrato de um Brasil jovem. Não há crianças fora das salas de aulas.

No último ano, foram 20 casamentos, contra um divórcio; e 32 nascimentos, contra dez óbitos. Uma “quebra de sigilo bancário” aponta que os depósitos em poupança, na única agência bancária, eram de R$ 1.350.938,93 no último dia útil de 2002.

Mas há problemas. A conservação viária deixa a desejar; o abastecimento de água ainda fica sujeito ao regime de chuvas, enquanto não entra em operação o sistema de dessalinização. Não há espaço para a abertura de mais pousadas. A última delas envolve uma curiosa parceria entre um morador da ilha, os filhos de Abílio Diniz (Pão de Açúcar) e o apresentador Luciano Huck, com o uso de uma privilegiada área de terras, que os nativos vêem com desconfiança.

O administrador Edrise informa que o controle acionário da “Pousada Maravilha” (diárias de R$ 1.500,00 na alta temporada) é de José Gaudêncio, morador, ex-servidor do Ibama, com 50% do controle acionário, mas ressalva que “a construção é anterior à minha gestão”.

Outro problema é o altíssimo custo de vida: nada tem preço menor do que “um noronha” (expressão cunhada para valer o equivalente a R$ 2,50). Esse é o preço da tarifa de ônibus urbano, de uma garrafinha de água mineral sem gás, do cafezinho, de uma caixa de chicletes etc.

A única loja que vende disquetes cobra R$ 4,00 por unidade — um absurdo ante os R$ 1,00 que pagamos em Porto Alegre. Diárias de hospedagem e refeições em restaurantes (todos muito simples) afinam pela mesma voracidade.

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