Ligações perigosas

Escândalo da Kroll mostra relação suspeita do governo com empresa

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23 de julho de 2004, 21h02

O jornalista Márcio Aith, editor de Economia da Folha de S.Paulo, trouxe a público o escândalo que deixou as operações Vampiro e Anaconda, bem como as estripulias de Waldomiro Diniz no chinelo.

Ter mostrado que a mais famosa empresa de investigação do mundo andou bisbilhotando possíveis conexões de gente do governo com empresas, por encomenda de uma concorrente — a Brasil Telecom –, coloca o país no mapa mundial das grandes encrencas internacionais.

Até o momento, o que se discute é se é de bom tom ou não ficar investigando empresas e integrantes do estado-maior do presidente Lula. Ainda não começou o debate sobre o objeto da inquirição. Ou seja, se há ou não ligações escusas nesse cenário. A discussão sobre eventuais práticas ilícitas por parte da Kroll interessa ao governo. A prática de prevaricação, não. Na nota que divulgou, o secretário de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, Luiz Gushiken, diz que a investigação foi ilegal, inconstitucional e que processará seus responsáveis. Mas ficou por aí.

Sem tirar o mérito da reportagem da Folha ou mesmo das alegadas descobertas da Kroll há fatos que só não foram tornados públicos até agora por falta de quem os associasse.

Pão e água

Desde o ano passado, a revista eletrônica Consultor Jurídico (e, provavelmente, outros veículos jornalísticos) passou a receber informações e acusações de advogados, juízes, integrantes do Ministério Público e empresários que, de uma forma ou de outra, avizinharam-se dessa saborosa trama.

O batalhão de advogados atuantes nas diversas faces da história engloba mais de quatrocentos profissionais da área societária à criminal, passando pelo mundo trabalhista e concorrencial. Muito do que vem agora a público já se encontrava entre as milhares de páginas dos autos de processos que se encontram em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília.

A primeira impressão sobre o caso permite fazer duas resenhas sucintas da novela. Uma é a versão de que os petistas têm rixa antiga com o empresário Daniel Dantas — famoso pela facilidade com que faz inimigos e pela capacidade de multiplicar recursos de investidores que o contratam — e, na arbitragem das disputas empresariais, tentaram escanteá-lo. A outra versão seria a de que o PT, efetivamente, tem simpatia especial pela Telecom Italia e não se omitiu quando foi preciso ajudar os amigos.

A respaldar a primeira tese há uma frase dita por Luís Gushiken (aquele que a presidente da Brasil Telecom Carla Cico disse não saber que tinha origem nipônica) antes mesmo de chegar ao Planalto. “Neste governo, esse Daniel Dantas vai passar a pão e água”, afirmou. Em outra cena, o ministro José Dirceu teria pedido à alta direção do Citibank para jogar ao mar seu antipático parceiro no Brasil. Consta que o vice-presidente do conglomerado, cujo patrimônio é duas ou três vezes maior que o PIB brasileiro, veio ao país para responder que Dantas continuaria administrando os fundos do Citi enquanto os acionistas estivessem satisfeitos. E ponto.

Para a segunda teoria há uma fenomenal declaração pública do então ministro das Comunicações, Miro Teixeira, no ano passado. Vocalizando o governo, Miro afirmou que a Telecom Italia “está com absoluta razão” na disputa que trava com o banco Opportunity para reingressar no bloco de controle da Brasil Telecom. “Lamentavelmente, eu não tenho o poder direto de agir”, disse ele, queixando-se da Anatel, então dirigida por Luís Schymura que, segundo a imprensa especializada, resistia à orientação de autorizar a presença da Telecom Italia no comando da sua concorrente, a Brasil Telecom.

Mal comparando, seria como o governo entrar na briga entre a Brahma e a Schincariol e dizer que uma delas é que tem razão e que deveria, sim, decidir os destinos da concorrente.

O fato é que Schymura foi afastado e a Anatel acabou atendendo o pedido da Telecom Italia. Mais tarde o Cade, órgão do governo encarregado de zelar pela livre concorrência, também mudaria de opinião. Especialistas respeitados na área, como os advogados Mauro Grinberg e Floriano Azevedo Marques, que não trabalham para nenhuma das partes, não entenderam porquê.

Cortinas de fumaça

O fio da meada é difícil achar. Até porque, como na macarronada, o espaguete não tem uma ponta só. Não ajuda muito o fato de os dois principais atores da história — o Opportunity e a Telecom Italia — manterem-se em silêncio abissal. O que se sabe é o que chega, em off, pelos assessores e advogados.

No meio do caminho há uma série de cortinas de fumaça e ataques destinados a enfraquecer o inimigo. Ater-se às histórias acessórias é divertido, mas tira o foco da disputa principal.

Entre os casos picantes, para usar a expressão do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, há casos da vida pessoal dos personagens e acusações de crimes financeiros, entre outros lances cinematográficos.

Contra o Opportunity lança-se a acusação de que o banco teria distribuído irregularmente, no exterior, cotas de seus fundos a brasileiros residentes no Brasil. A acusação partiu de Luís Roberto Demarco, ex-sócio de Daniel Dantas, com quem se desentendeu e de quem se tornou arqui-rival.

Demarco e Dantas acusam-se mutuamente de apresentação de documentos falsos em juízo e, ainda, que houve condenação do outro em Cayman, onde os contenciosos arrastam-se até hoje. Entre as impertinências que emergiram no embate da Brasil Telecom circula o envolvimento de Demarco num caso de assédio sexual. No início deste ano ele foi condenado pela 55ª Vara do Trabalho a pagar R$ 150 mil a uma ex-funcionária.

Demarco detém a gratidão do PT por ter criado a bem sucedida lojinha virtual que serviu, durante a campanha, para arrecadar fundos eleitorais na marcha vitoriosa do partido para o Palácio do Planalto.

Público e privado

Outro egresso do Citibank, citado pela Kroll na reportagem da Folha de S.Paulo, o atual presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb Lima, é alvo de torpedos semelhantes. Por ter trabalhado para a Telecom Italia, Casseb é identificado por acionistas da Brasil Telecom como mais um elo dos italianos dentro do governo. Segundo a Folha Casseb teve encontros secretos com executivos da multinacional európeia, no ano passado, monitorados.

A espionagem contra o ministro Luiz Gushiken e o presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, foi feita, segundo o jornal, porque os dois teriam orientado cinco fundos de pensão de estatais – Sistel, Telos, Funcef, Petros e Previ — a desfazer acordos que asseguravam ao banco Opportunity o controle da Brasil Telecom.

A suposta aliança de Casseb com o grupo italiano custou-lhe dúvidas lançadas sobre os R$ 1.748.920,00 que ele enviou, entre 1998 e 2000, para contas no exterior. O presidene do BB está de férias, segundo informa a assessoria do banco. A explicação para o fato de ter dinheiro fora do país, afirma-se, deve-se ao fato de que todo empregado brasileiro do Citibank deve ter uma conta no Brasil, para receber o salário, e outra no exterior, para receber bonificações.

As cinco remessas apuradas, afirma a assessoria, foram todas declaradas à Receita. Quanto à finalidade do envio do dinheiro, a resposta foi a de que isso é assunto particular de Casseb.

Há cascas de bananas para todos os sapatos. A Kroll colocou no rolo como aliados dos italianos contra o controvertido Daniel Dantas, personagens tão diversificadas quanto Luís Favre, Naji Nahas, Nelson Tanure. Personagens da iniciativa privada, esses senhores podem ficar do lado que quiser. Desde que dentro da lei, claro.

O que não se pode aceitar é que o tal núcleo duro do poder ou integrantes da Anatel, do Cade ou da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acabem admitindo que uma empresa possa participar do comando de sua concorrente por opção política e não técnica. Isso, convenha-se é mais comprometedor do que uma empresa privada investigar príncipes do poder.

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