Poder investigatório

Constituição permite investigação criminal pelo MP, diz Bicudo.

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14 de julho de 2004, 17h39

Impedir a ampla atuação do Ministério Público é encorajar a ilegalidade daqueles que se situam em patamares superiores da sociedade e, por isso, se sentem imunes às investigações. A opinião é do vice-prefeito de São Paulo, presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos e ex-promotor, Hélio Bicudo, que divulgou parecer sobre a polêmica do poder investigatório criminal do MP. O caso será decidido em breve pelo Supremo Tribunal Federal.

No documento, Bicudo discorda do argumento do presidente do STF Nelson Jobim. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele disse que a matéria, “devidamente discutida na Assembléia Constituinte, não foi aprovada”. Para Bicudo, “isso não constitui argumento jurídico para a proibição pretendida (que limitaria a atuação do MP)”.

Para sustentar a tese, o vice-prefeito afirma que a Constituição não precisa autorizar expressamente o que se pretende proibido. O que não é proibido seria naturalmente permitido.

Bicudo afirma que não basta a simples leitura do “texto constitucional para chegar-se à conclusão pretendida” (a de afastar o Ministério Público da investigação criminal)”. A interpretação da norma deve ser, no entanto, feita de acordo com os sistemas e princípios encontrados no conjunto do documento, como os costumes e a realidade sócio-política brasileira.

Ao interpretar a lei, não se pode ignorar, segundo ele, que a polícia brasileira não conseguiu sair do atoleiro em que se “afunda pela corrupção e pela prática da violência”. Bicudo argumenta, ainda, que as corregedorias de polícia não têm transparência para investigar criminalmente.

Ele cita as investigações feitas pelo MP sobre as atividades do “Esquadrão da Morte”, que trouxeram à tona a violência, corrupção e favorecimento ao tráfico de drogas praticados por policiais. Segundo Bicudo, as investigações foram questionadas perante o Supremo Tribunal Federal que, entretanto, as considerou legais e necessárias.

O vice-prefeito afirma que o STF, ao decidir sobre a questão, “deverá fazer profunda reflexão sobre a questão constitucional e infra-constitucional, sem esquecer o seu papel de árbitro maior não só da Lei Magna, mas da própria realidade brasileira, pois interpretar é descobrir tudo aquilo que a norma contém, para que ela seja instrumento da paz social”.

Leia íntegra do Parecer

Reconhecer ao Ministério Público o poder de investigar e, com os elementos colhidos, ingressar em juízo para requerer a abertura da ação penal é atribuição que vem sendo questionada diante do dispositivo constitucional que concede à polícia civil as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais (artigo 144, §4º, da Constituição Federal).

Ultimamente, deputado federal do Maranhão, acusado, em procedimento penal, de fraudes contra o Sistema Único de Saúde a partir de investigações realizadas pelo Ministério Público, pediu ao Supremo Tribunal Federal a anulação do processo com a alegação de que a investigação criminal é defesa ao parquet , desde que não prevista na Carta Política.

Diga-se, antes de mais, que o argumento usado pelo ilustre presidente daquela corte, Ministro Nelson Jobim, em recente entrevista à imprensa (cf. O Estado de S. Paulo, ed. de 07.07.04), de que a matéria, devidamente discutida na Assembléia Constituinte, não foi aprovada, não constitui, data venia , argumento jurídico para a proibição pretendida.

A interpretação histórica tendo em vista a intenção legislativa cede o passo, à interpretação sistemática do texto.

Na verdade a Constituição não precisaria autorizar expressamente o que se pretende proibido, ante a meridiana conclusão de que aquilo que não é proibido é naturalmente permitido.

A questão não é tão simples como possa parecer, não bastando a simples leitura do aludido texto constitucional para chegar-se à conclusão pretendida, qual seja, a de se afastar o Ministério Público da investigação criminal. “A lei, escreve Francesco Ferrara, citado por Alípio Silveira, não se identifica com a letra da lei. Esta é apenas um meio de comunicação: As palavras são símbolos e portadoras de pensamento, mas podem ser defeituosas”. (O fator político-social na interpretação das leis, 1946, p.37)

A interpretação de uma norma constitucional não pode se ater exclusivamente ao que nela está escrito. A norma tem de estar conforme com o sistema e com os princípios gerais ínsitos no conjunto do texto constitucional, como os costumes e a realidade sócio-política.

Na lição de Carlos Maximiliano, a tarefa primordial do executor das normas estabelecidas é descobrir a relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o direito.


Para o conseguir, explica o ilustre autor, “será mister um trabalho preliminar, descobrir e firmar o sentido verdadeiro da regra positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão”.(cf. Comentários à Constituição Brasileira, I /127, Freitas Bastos, 1954).

A interpretação, no parecer de Vander Eycken, é a pesquisa do direito em um caso particular, com o auxílio de todos os dados de expressão jurídica de que se dispõe ( Mèthode Positive de l’interprétation juridique, 1907, p. 348).

Vejamos: como escreve Gomes Canotilho, o sentido das normas constitucionais desvenda-se através da utilização como elementos interpretativos: do elemento filológico (literal, gramatical, textual); do elemento lógico (elemento sistemático); do elemento histórico; do elemento teleológico (elemento racional) (cf. Direito Constitucional, p. 219).

É, segundo o constitucionalista português, a articulação desses vários fatores hermenêuticos que irá apontar para uma interpretação jurídica da Constituição em que o princípio da legalidade (normatividade) constitucional é fundamentalmente salvaguardado pela ampla relevância atribuída ao texto: ponto de partida para a tarefa de mediação ou captação de sentido por parte dos concretizadores das normas constitucionais: limite da tarefa de interpretação, pois a função do intérprete será a de desvendar o sentido do texto sem ir para além ou , muito menos, centrar-se no teor literal do preceito (Canotilho, op. e loc. cit).

Na hipótese, com base na lição do eminente constitucionalista, do ponto de vista racional do dispositivo ora em discussão, vamos encontrar no artigo 127, da Constituição Federal, que ao Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Por aí já se vê a relevância das atribuições do Ministério Público que lhe são assinadas, tendo ademais em vista que é, dentre outros, fundamento do Estado, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, II e III).

Tudo, em consonância com os objetivos fundamentais da República, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a promoção do bem de todos, sem quaisquer preconceitos (artigo 3º, I, III e IX, da Constituição Federal).

Se ao Ministério Público incumbe a defesa de ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, essas atribuições objetivam a concretude daquilo que é o fundamento do Estado, tendo em vista as metas assinaladas, indispensáveis para a construção de uma sociedade democrática.

Quando a Constituição confere poder geral ou prescreve dever, franqueia, também, implicitamente, todos os poderes particulares, necessários para o exercício de um, ou o cumprimento do outro. (Carlos Maximiliano, op.cit. p.138)

Isto aparece muito claro, se nos detivermos na leitura do artigo 129, da Constituição Federal, que estabelece quais são as funções institucionais do Ministério Público.

O dispositivo em questão não fala, explicitamente, na função de investigar. Mas impõe ao Ministério Público o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública promovendo as medidas necessárias à sua garantia; entregando-lhe, ao depois, a requisição de diligências investigatórias; bem como o dever de exercer outras funções, desde que compatíveis com sua finalidade. Portanto, como concluir-se não possa investigar de motu próprio ?

De acrescentar-se que não se pode ignorar, na interpretação da lei, a realidade da sociedade brasileira, onde a polícia não conseguiu – como o atestam inúmeros procedimentos abertos pelo Ministério Público – sair do atoleiro em que se afunda pela corrupção e pela prática da violência.

A esse propósito, os seus órgãos corregedores não têm correspondido às imposições de transparência e da probidade administrativa impostas pela Constituição, relegando a um segundo plano as recomendações das ouvidorias de polícia, deixando de proceder quando averiguações esclarecem a autoria de ilícitos funcionais. Aí o corporativismo fala mais alto, permitindo a mais deslavada impunidade.

A Constituição, como bem assinala Jorge Miranda, “deve ser apreendida, a qualquer instante, como um todo, na busca de uma unidade e harmonia de sentido”.

Assim, o “apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar, assim, chegar a uma idônea síntese globalizante, credível e adotada de energia normativa”. (Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 258, 3ª ed., Coimbra Editora Limitada).


Na hipótese, ad argumenta, de uma contradição de princípios, tal contradição há de ser superada mediante a preferência ou a prioridade, na efetivação de certos princípios frente aos restantes. (Jorge Miranda, op. e loc. cit).

Realmente, se a interpretação sistemática dos textos constitucionais leva à convicção da preeminência da ação do Ministério Público ante a atividade policial, a qual não tem, nos seus titulares, as incumbências e atribuições daquele, ao autor da ação penal não se pode negar a capacidade de reunir as provas para iniciá-la.

Ao elemento sistemático, junte-se o fato de que em um número tão expressivo de casos, a investigação do Ministério Público se sobrepôs à intervenção policial, seja para completá-la, seja para aperfeiçoá-la ou até mesmo para substituí-la.

Os grandes e emblemáticos procedimentos penais foram sempre sustentados pelo Ministério Público que tem, a propósito, uma história de coerência e de independência relativamente aos Poderes do Estado.

Como pondera Recaséns Siches em sua Nueva filosofia de la interpretación Del Derecho , “O direito não é um sistema constante, uniforme, igual, senão que, pelo contrário, é mutável e tem uma dimensão essencialmente plástica, de adaptação a novas situações e circunstâncias. Tem sempre esse caráter, em medida maior e menor; mas em nossa época o tem em uma enorme proporção”. (op. cit, p.109).

Nada tem a ver com a estratificação que se lhe pretende impor.

Recorde-se que as investigações sobre as atividades do “esquadrão da morte” foram efetuadas pelo Ministério Público e desvendaram violência, corrupção, favorecimento ao tráfico de drogas e outras violações de nosso ordenamento jurídico penal por agentes policiais.

Essas investigações foram questionadas perante o Supremo Tribunal Federal que, entretanto, as considerou legais e necessárias. Como controlar, pois a atividade policial senão entrando na sua área de competência? Essas investigações não poderiam prosperar dentro da própria polícia, e somente a ação do Ministério Público as desvendou.

A proibição pretendida busca embasamento em atitudes isoladas de membros do Ministério Público que não têm levado em conta a sua unidade funcional, um de seus fundamentos básicos. O Ministério Público é uno e indivisível.

Distorções na sua atuação que podem ser facilmente corrigíveis decorrem da concepção, já ultrapassada, que entregava ao chefe da Instituição (então demissível ad nutum pelos Governadores de Estado ou pelo Presidente da República) o monopólio no exercício das atribuições do parquet.

A figura do chamado “promotor natural” surgiu, exatamente para impedir a filiação política da Instituição, quando para atender a reclamos da chefia do Poder Executivo, destituíam-se promotores que não se alinhavam a uma determinada linha política.

Nos dias correntes, nomeado dentro da classe, com mandato certo que somente poderá ser revogado segundo as dificuldades do procedimento instituído, o procurador-geral da Justiça não tem a temer sua destituição se sua atuação não se conforma à vontade da política dominante. Ele passa a agir segundo os princípios que informam a pureza procedimental do Ministério Público, na forma do quanto dispõe a Constituição, como já tivemos a oportunidade de assinalar.

Assim, a avocação de procedimentos se torna – diante da unicidade da Instituição – uma atitude normal, como qualificativo da coerência na ação do Ministério Público.

Mas isso, embora tenha contornos constitucionais, é matéria de lei ordinária, de organização do Ministério Público, que deve tê-la com vistas ao princípio de unidade, fundamental na atuação do parquet.

Como se vê, não existem argumentos que possam permitir a redução das atribuições do Ministério Público. Reduzi-las será premiar os chamados delinqüentes de “colarinho branco” e o próprio crime organizado.

Em remate, na decisão a ser tomada, o Supremo Tribunal Federal deverá fazer profunda reflexão sobre a questão constitucional e infra-constitucional, sem esquecer o seu papel de árbitro maior não só da Lei Magna, mas da própria realidade brasileira, pois interpretar é descobrir tudo aquilo que a norma contém, para que ela seja instrumento da paz social.

Neste caso, em especial, não importa que não se tenha editado a lei complementar prevista no inciso VII do artigo 129, da Constituição Federal, pois, como ensina Clèmerson Merlin Clève, “no Brasil, tem-se como certo que todas as disposições, ainda que adjetivas, da Constituição são essenciais, imperativas e, então, mandatórias, como já teve a oportunidade de asseverar Francisco Campos” (“A Fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro”, ed. R.T., p.32).

Muito pelo contrário, como na sociedade atual, onde a alta criminalidade viceja e se desenvolve, impedir-se a ampla atuação do Ministério Público será acoroçoar-se a ilicitude daqueles que se situam em patamares superiores da sociedade e que por isso mesmo se sentem imunes. A lei penal, segundo pensam, não é para eles, mas para aqueles que o sistema político-econômico marginalizou ou excluiu da vida social.

Como se vê, a combinação dos critérios interpretativos de início mencionados, só pode levar a uma conclusão: não se pode retirar meios, quaisquer que sejam, que impeçam ou dificultem a propositura da ação penal pelo Ministério Público. Se a tanto chegarmos, estaremos decretando a própria falência do atual ordenamento jurídico que o constituinte de 86/88 buscou normatizar, tendo em vista a contribuição do Ministério Público na construção do Estado Democrático.

Hélio Bicudo

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