Sistema neoliberal

Deixar de denunciar doença de trabalhador a autoridades é crime

Autor

  • Admilson Viana

    é estudante de direito e afastado de suas funções na Acesita (MG) por concessão pelo INSS do benefício auxílio-saúde acidentário

14 de julho de 2004, 17h43

Deparamo-nos, em pleno Terceiro Milênio, com um número assustador de trabalhadores acidentados – doentes e lesionados – incapacitados e ou até mesmo inválidos.

O fato que nos chama à atenção é que, estes mesmos trabalhadores, na maioria das vezes, não conseguem obter seus benefícios reconhecidos como acidentário (B91). São afastados por doença comum (B31) e, quando retornam ao trabalho ainda doentes, substituídos por trabalhadores mais jovens e com remuneração inferior. O ônus acidentário é, assim, transferindo aos cofres da previdência social.

Ainda, considerando o fato evolutivo, poderíamos, como trabalhadores, comemorar como privilégio estarmos presentes ainda vivos neste Terceiro Milênio.

Mas, a história não é bem assim. Inspiradas no chamado “Consenso de Washington”, as medidas neoliberais adotadas nas economias emergentes, como no caso o Brasil, visam única e exclusivamente à redução das despesas públicas, às privatizações, à flexibilização das relações de trabalho e ainda à abertura do mercado ao comércio exterior.

Com a redução dos postos de trabalho, a flexibilização dos direitos trabalhistas e a necessidade de maior produtividade com maior lucratividade e ao menor custo operacional possível, nossos trabalhadores foram submetidos a altas cargas de trabalho, com suas jornadas dilatadas diariamente, ou nos fins de semana e ou nos dias santificados, afastando estes trabalhadores do convívio social e familiar, e tornando-os responsáveis diretos pelos planos de metas por equipe (PME) dentro das fábricas, que, em jornadas normais de trabalho, são praticamente inatingíveis.

Os trabalhadores diante desta pressão psicológica dentro do ambiente de trabalho, associados ao distanciamento do convívio social e familiar (única fonte de recarregar suas energias), começam então a desenvolver doenças, tornando-os doentes, incapacitados para atividade laboral. Chegam até mesmo ao suicídio por se sentirem incapazes em não atingir as metas estabelecidas, sem respeito às limitações físicas e psicológicas dos trabalhadores.

Doentes e incapacitados, procuram os médicos do trabalho das empresas, responsáveis pelo PCMSO, esperando no mínimo um atendimento cordial e como direito a emissão de uma CAT. Eles, no entanto, têm esse direito negado e como alternativa o afastamento por doença comum (B31) junto ao INSS.

Mas o órgão também possui acordos escusos com as empresas e nega o benefício, restando ao trabalhador o início de uma peregrinação em busca do benefício acidentário. O sindicato torna-se então o único elemento de suporte, apesar de precário na maioria das vezes pelas razões conhecidas.

As CAT’s emitidas por outros órgãos sem ser o empregador, nem sempre são reconhecidas pelo INSS, descumprindo o DECRETO Nº 4.882, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2003, como assim, dispõe:

§3 “O INSS auditará a regularidade e a conformidade das demonstrações ambientais, incluindo-se as de monitoramento biológico, e dos controles internos da empresa relativos ao gerenciamento dos riscos ocupacionais, de modo a assegurar a veracidade das informações prestadas pela empresa e constantes do CNIS, bem como o cumprimento das obrigações relativas ao acidente de trabalho.” (NR)

Com o advento das subnotificações, as empresas, por não emitir a CAT, isentam-se das multas e penalidades, previstas pela omissão, como segue:

O art. 22 da Lei 8.213/91 impõe ao empregador o dever de emitir a CAT:

“A empresa deverá comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o 1º (primeiro) dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário-de-contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social”.

Neste sentido, dispõe ainda o art. 169 da CLT:

“Será obrigatória a notificação das doenças profissionais e das produzidas em virtude de condições especiais de trabalho, comprovadas ou objeto de suspeita, de conformidade com as instruções expedidas pelo Ministério do Trabalho”.

Inicia-se então, uma maratona de sofrimento, de dor e sentimento de impotência diante de tanto descaso.

Quando doente, e afastado pelo INSS por doença comum, o trabalhador procura o médico conveniado com empresa. Relata seu problema, mas quando menciona o nome da empresa ao qual adquiriu a doença ocupacional, parece mencionar uma palavra mágica, porém assustadora aos ouvidos deste médico. Tem então, imediatamente negado qualquer relação da doença com o trabalho, e quando discutido o assunto, ouve a frase:

“Não me envolvo em relações trabalhista, me limito apenas a ser médico”.

Nem sequer um laudo médico, este trabalhador consegue, pois, a sistema neoliberal corrompeu a relação humanística entre alguns médicos e o paciente, sujeitando estes médicos a obrigações, tais como:

a) Descaracterizar a relação das doenças com o trabalho;

b) Reduzir os pedidos de exames de RX e tomografias;

c) Desconhecer a história patológica pregressa do paciente;

d) Resumir o atendimento a uma licença médica de no máximo cinco dias.

Estes fatos são facilmente apurados. Comigo mesmo ocorreu um fato em que fui convidado a participar de uma perícia médica, com vista ao recebimento de seguro. Ao entrar no consultório médico, descrevi todo o acontecimento, mas quando mencionei o nome da empresa ao qual sou funcionário, o médico imediatamente, mudou toda a sua fisionomia, negou a perícia informando que não era perito e se caso tivesse pago alguma quantia pela consulta, devolveria imediatamente o referido valor, dando por encerrada a consulta.

Ao sair do consultório, perguntei à secretária se tinha vaga para uma outra consulta com aquele mesmo médico, e se o médico tinha convênio com a empresa ao qual sou funcionário. A resposta foi positiva, sendo então marcada uma consulta para aquele mesmo instante.

Quando entrei no consultório, o médico perguntou: “Você de novo?”.

Respondi que sim. Só que apresentei a resolução do CFM nº 1.488/98, e informei ao médico que antes ele havia sido indicado como perito e naquele momento eu estava nomeando-o como meu médico, e como tal, deveria examinar-me. O referido médico abaixou a cabeça e demorou dez minutos para iniciar o atendimento, o que por sinal fez com muito profissionalismo. Fatos como este apenas demonstra a deterioração das relações humanísticas.

Há, portanto, uma absoluta necessidade de se fazer cumprir o código de ética médico e a resolução nº 1.488/98 do CFM.

Entretanto, a culpa não pertence isoladamente aos médicos e tampouco às Universidades enquanto aparelho formador destes profissionais. A sociedade tem sua parcela de responsabilidade, por ser omissa e por não denunciar a prática abusiva de alguns médicos.

Retomando ainda aos médicos, estes, muitas vezes, apresentam incapacidades diante deste Terceiro Milênio, marcado pela agilidade das informações e do conhecimento.

Os médicos, também sofrem as conseqüências pela adoção do sistema neoliberal. As empresas/Estado ao qual são conveniados remuneram mal os seus trabalhos, obrigando-os a adotar o processo de atendimento pela quantidade e pela omissão.

Desencadeia-se então o afastamento humanístico, que tanto já nos referimos, entre médico e o paciente, que presenciávamos em outrora.

As empresas e o Estado por não adotarem práticas defensivas de segurança social, transferem toda a responsabilidade aos médicos, transformando a medicina em comércio. Este sistema injusto renega os profissionais médicos a investirem em atualizações técnicas, em treinamentos e até mesmo ao convívio social e familiar como os outros trabalhadores já citados.

Dá para imaginar onde vamos parar?

Médicos mal remunerados e constantemente assediados moralmente por seus patrões (Estado e empresas). Trabalhadores doentes e incapacitados sem receber atendimento médico digno, honroso e eficiente.

Não há saída sem organização de cada seguimento de toda a sociedade.

Os trabalhadores devem ser conscientizados de seus direitos de cidadão e que o direito à saúde é um direito de todos, CF. art. 196. Portanto, os trabalhadores que estiverem doentes e incapacitados não devem se expor a continuar trabalhando doentes em condições indignas.

Devem exigir a emissão da CAT. Se ela for negada pelos médicos que passaram a ser conhecidos como “chapas brancas”, deve-se denunciar tais profissionais ao CFM e ao MP. Tal prática caracteriza crime, sendo que o código penal em seu art. 269, assim o tipifica:

“Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: pena de detenção de seis meses a dois anos e multa”.

Cabe também aos médicos se defender desses maus colegas. Os que pretendem manter os necessários vínculos de profissionalismo responsável e transparente com seus pacientes, no exercício da medicina, devem também se organizar para impedir a continuidade desse estado de coisas por parte dos maus profissionais, que maculam e denigrem a honra do profissional sério, ético e voltado para o trabalho despojado em favor da verdade, da vida, da transparência e equidade nas relações necessária com os pacientes.

Também por meio de organização própria, devem lutar para a melhoria de suas condições de vida e de trabalho, exigindo-se uma remuneração condizente para o seu trabalho, bem como o acesso às informações e aos avanços da ciência, e jamais se submeter aos caprichos do “Deus Mercado”, que corrompe e divide a humanidade.

Aceitar sem resistência esse estado de coisas é a demonstração da negação de todos os princípios que juraram defender, rasgando o seu código de ética médica e respeito à resolução do CFM nº 1.246/88, que também dispõe:

Art. 22 – Apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais ao paciente, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à Comissão de Ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição.

Art. 23 – Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar o paciente.

Art. 24 – Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina.

A globalização da forma como é sendo feita tem caráter devastador nas relações sociais e nos direitos fundamentais. Elimina postos de trabalho, flexibiliza as relações de trabalho, corrompe as instituições públicas, e por pior, desvaloriza a competência profissional do médico, que passa a tratar seus pacientes como mera mercadoria, distanciando a formação humanística como veda, também a resolução do CFM nº 1.246/98:

Art. 70 – Negar ao paciente acesso a seu prontuário médico, ficha clínica ou similar, bem como deixar de dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionar riscos para o paciente ou para terceiros.

Art. 71 – Deixar de fornecer laudo médico ao paciente, quando do encaminhamento ou transferência para fins de continuidade do tratamento, ou na alta, se solicitado.

Cabe ainda aos médicos, efetuarem seus atendimentos dentro dos valores determinados conforme a tabela do CFM, sem se sujeitarem a nenhuma forma de manipulação, buscando o processo de equidade também nas relações médicas, conforme também veda a resolução do CFM nº 1.246/88, que assim se dispõe:

Art. 85 – Utilizar-se de sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos.

Art. 86 – Receber remuneração pela prestação de serviços profissionais a preços vis ou extorsivos, inclusive de convênios.

A globalização, com seu processo neoliberal nas relações do trabalho e as doenças provocadas pelas condições indignas deste trabalho, significa uma nova configuração de ruptura das relações sociais, que se não defendidas trará agravos sem precedentes à economia dos países emergentes.

O ônus desse processo devastador deve ser imposto a quem descumpre as normas constituídas, no caso as empresas mal geridas e descompromissadas com a vida e a dignidade da pessoa humana.

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