Investigação criminal

A propaganda do MP ou um minotauro chamado Poder

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13 de julho de 2004, 12h12

Em “Totem e Tabu”, Freud desenvolve uma teoria, que dele não vem com certeza, ligada, em parte, à necessidade de obediência. Vem isso de tempos inenarráveis. Sempre houve a necessidade de lideranças, principalmente depois de serem o pajé, o sumo sacerdote, o faraó, o rei, o ditador enfim, decapitados, queimados em praça pública, enterrados em vida ou votados a tipo outro de morte na qual o homem e a mulher (só para que não me digam machista) são férteis. Morto o chefe, os cidadãos se põem como formigas desorientadas pela química proveniente da mosca vespeira. Então, é preciso inventar outro mandonista. Assim, após a desordem inicial, logo surge uma cabeça empoada. Não há mistério nisso. A tendência ao servilismo nasceu com o mundo e só há de acabar quando algum tresloucado explodir o planeta em mil pedaços.

Seria risível a tentativa de voltar aos primórdios da humanidade para explicar o que vem acontecendo ao Brasil no período pós-ditadura. Os militares tiveram suas estátuas demolidas em praça pública. Houve, em seqüência, um turbilhonamento do poder. Na ânsia da redemocratização tudo se resolveu com as eleições diretas, pois a vontade do povo deve prevalecer num país posto sob o império do respeito às garantias e direitos individuais. Assim foi. Tivemos presidência, primeiro em votação indireta, com Tancredo Neves. O destino lhe foi cruel.

A artroscopia começava a ser usada. Tancredo se foi. Veio Sarney. Este nos deixou, ainda, um pedaço de terrorismo estatal e boa porção de marimbondos esvoaçando em torno da Academia Brasileira de Letras, aquela mesma que elegeu um egresso do autoritarismo, um homem chamado Marco Maciel. Outros caciques, desta vez postos no trono por sufrágio popular, conduziram os destinos da nação. Não é muito importante a identificação dos presidentes posteriores. É relevante, sim, o apontamento de um fenômeno que havia no país ao tempo da colonização, manteve-se sob o Império, estabilizou-se sob a República e vige até o momento. A corrupção não é privilégio brasileiro. É universal. Sob Caio Júlio César, atingia os pretores do imperador enquanto iam à cata dos tributos obrigando os plebeus ao escondimento, sob as camas, dos sestércios poupados da cobiça do tirano (vide “Asterix e o Caldeirão de Ouro”).

Havia desonestidade oficial sob Geisel, Médici (o mau) e Figueiredo (bom cavaleiro, sem dúvida), caminhando o defeito até a atualidade. Basta ver o Ministro da Justiça, agora, a acentuar conspicuamente que a corrupção precisa acabar. Gera-se, então, uma nebulosidade propícia a que um grupo, ou uma comunidade enfim, procure açambarcar uma porção do poder balouçante. Assim é que as Comissões Parlamentares de Inquérito, na Câmara dos Deputados, se lançam a inquirições variadas, levando a arbitrariedade ao ponto último de autuar em flagrante advogados que se atrevem a exercer o contraditório.

De outro lado, e ainda disputando o dorso do minotauro, policiais de diversas categorias invadem escritórios e casas de família, revirando móveis e gavetas, sem respeito algum, inclusive, à “lingerie” guardada com imenso carinho pelos moradores, herança sublime da primeira noite de amor. Nisso pagam inocentes e pecadores, embora não se tenha ainda qualquer condenação. Entremeados nas providências catonianas atuam juízes, promotores públicos e agentes da polícia, sendo a iniciativa, vez por outra, concretizada sem suporte judicial. Explicam os fautores: empunham a bandeira contra os corruptos e corruptores. Funciona tudo como uma criminalidade lesa-pátria.

Aqui, no esforço de se transformar em merecedor do aplauso popular, todo aquele que detém, em pequena ou grande porção, os eflúvios do arbítrio, busca a notoriedade, usando o jornaleco do vilarejo ou os grandes matutinos da nação, sendo acolitado, não se sabe por qual razão, por gigantesco empresariado que lhe dá, gratuitamente, uma janela eletrônica a projetar, desvairadamente, pretensões que amedrontam o país inteiro, transformando o Ministério Público, se sucesso houver, em comunidade sem amarras, censuras ou limites externos, bastando-lhe o simples refluir da própria vontade.

O Brasil de hoje dá medo. Não é uma pátria dentro da qual os amantes da liberdade possam respirar sem preocupação com sombras escuras nas esquinas. É medo do bandido, sim, mas é pavor daqueles que pretendem reprimir o ladrão. É receio das ilicitudes englobadas nas vestes do facínora e no distintivo do xerife. Os dois lados afiam a foice quando sangram, sem vergonha alguma, a letra da Constituição Federal, uns porque nasceram para isso, outros porque perderam a lembrança da legalidade.

Estonteante, dentro do contexto, é a consciência de que surgiram do passado muitos arautos da censura à liberdade, todos aplaudindo comportamentos legalmente duvidosos, desenvolvendo esforços, no entretempo, para o hipotético retorno da nação à imaculabilidade. Cuida-se de contágio verrinoso a enodoar o sangue que corre nas veias de magistrados menos prudentes e num pedaço muito grande dos encarregados da persecução, valendo-se o grupo ensandecido do velho princípio de que os fins justificam os meios. Isso não é novidade. Repita-se: já aconteceu e acontecerá. Vêem-se exemplos de tal costume entre os animais inferiores.

Com efeito, juntam-se as hienas para a derrubada de animais isolados; encarniçam-se os rapinantes enquanto vigiam o bicho que não consegue, pois enjaulado, sobreviver à matilha; a ordem vigente é a destruição do suspeito. E parece alvissareiro esse comportamento, merecendo, realce-se, a louvação de um ex-ministro da justiça, coonestador, no passado, dos primeiros movimentos de uma ditadura mais branda e hoje formando, segundo sofisticado raciocínio, ao lado de quem pretende maior carga de capacidade persecutória.

Na verdade, o hoje advogado Saulo Ramos pretende que o Supremo Tribunal Federal resolva razoavelmente o conflito entre a pretensão investigatória do Ministério Público e a reação daqueles que querem deixar a Instituição entre limites formais constitucionalmente delineados. Afirma esse antigo Ministro da Justiça que a Suprema Corte poderia dar a tais investigações efeitos “ex nunc” e não “ex tunc” (Folha de São Paulo, “Tendências e Debates”, 09 de julho de 2004). Acentua, ainda, que o povo não sabe o que isso significa, mas que o Supremo sabe. Quer dizer, o advogado Saulo Ramos, que o Supremo Tribunal Federal poderia manter a validez das investigações realizadas até o momento pelos representantes da Instituição, ligando-se tal reflexão às operações que tiveram, na imprensa brasileira, estrepitosos comentários. Saulo Ramos quer arbitrar uma disputa entre a ilegalidade aberta e a liberdade jurídica. Não há acordo entre os dois conceitos. Não existe a semi-ilicitude, como não se admite, também, dona de bordel fantasiada de duquesa. Ou é prostituta ou não é. Portanto, fica mal a sugestão aos Ministros no sentido de que fechem os olhos às atividades “formalmente irregulares”. A legalidade não é liquidação de mercearia, a ver quem leva mais pelo menor preço.

Aqui, o preço é caro, porque significa obstáculo anteposto a uma concentrada tentativa de convencer o povo de que é preciso fraudar a lei e a dogmática para atendimento às finalidades da repressão. Aliás, o Ministro Marco Aurélio e outros membros da Suprema Corte têm dado mostras de estarem dispostos a pagar o custo elevado da manutenção do princípio da legalidade. Nesse passo, menor valor tem a propaganda gratuita das pretensões da nobre Instituição. Uns e outros hão de ter o retorno devido, sempre à altura dos princípios constitucionais em vigor.

Vai o escrito a uns poucos leitores. É mais ou menos como tentar revidar à propaganda na “Globo”. O advogado Saulo Ramos escreve na “Folha”. Este cronista não consegue chegar lá. Desistiu. Davi não chega aos pés de Golias.

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