Reprodução assistida

Política de planejamento familiar deve se moldar à realidade atual

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1 de julho de 2004, 16h48

Segundo dados do IBGE, a população brasileira vem crescendo na proporção de 2,3 filhos por mulher, o que representa um índice muito próximo da chamada “taxa de reposição”, que é de 2,1 filhos por mulher.

Tendo em vista que nossa população já atingiu o limite do aceitável, a notícia seria reconfortante não fosse a constatação de que ainda há, no país, regiões muito pobres em que as mulheres têm um filho por ano e podem ultrapassar o total de vinte gestações até a menopausa.

Esses bolsões de excessivo crescimento populacional não se limitam ao interior do país, mas existem também nos grandes centros urbanos. Se nada for feito, os moradores das favelas brasileiras irão aumentar além do dobro nos próximos dez anos, segundo projeção feita pela Fundação Getúlio Vargas.

Conforme o último Censo, as populações faveladas aumentaram três vezes mais do que a média brasileira. Esses números apenas confirmam o que já era possível perceber com a mera observação dos grandes centros: a miséria está aumentando muito, não apenas por questões relacionadas diretamente à economia, mas em conseqüência do descaso dos administradores públicos com a procriação nas camadas mais carentes.

Quanto mais ignorante o indivíduo, mais filhos ele tende a gerar. Primeiro, porque não sabe usar ou não tem meios de adquirir anticoncepcionais. Segundo, porque muitos filhos dão a ilusão de que, quando todos estiverem trabalhando, haverá mais dinheiro para a família e mais chances de sustento para os pais na velhice. Terceiro porque, conforme padrões culturais existentes em determinados locais, muitos filhos significam demonstração de virilidade para o homem e respeitabilidade para a mulher. Trata-se de uma sucessão de equívocos.

O desenvolvimento econômico é inversamente proporcional ao aumento populacional. As regiões mais pobres do Brasil são as que têm as mais altas taxas de natalidade, enquanto as mais prósperas registram as menores. Quanto mais gente, mais difícil alcançar qualidade de vida, mais complicado combater a pobreza. Não há projeto de “fome zero” que consiga vencer a proliferação desenfreada de esfomeados.

O médico Dráuzio Varella, em artigo publicado na Folha de São Paulo de 14/12/2002, observou: “Nasce gente depressa demais no Brasil. Na Copa do Mundo de 1970, éramos 90 milhões em ação num país desigual; em 30 anos, dobramos a população e multiplicamos os problemas sociais”.

O resultado disso é que as crianças carentes acabam abandonadas à própria sorte, pelos pais e pela sociedade. Se conseguem sobreviver às vicissitudes da infância, tornam-se adultos abandonados que geram mais filhos desamparados.

Por essa razão, o Brasil vem sendo acusado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e outras entidades internacionais de: exploração de trabalho infantil, tendo 2,2 milhões de jovens e crianças, com idade entre 5 e 17 anos, trabalhando em situação de risco; exploração sexual de crianças e adolescentes na prostituição; ser um dos principais responsáveis pelo tráfico internacional de seres humanos; não coibir devidamente o crime organizado.

Não há como ignorar o fato de que cada mulher ou menina que engravida, cada criança que nasce, cada família que aumenta precisa de investimento público para sobreviver com um mínimo de decência. E isso não vem sendo realizado no país, que não tem conseguido amenizar as péssimas condições de vida das camadas carentes, muito pelo contrário. Assim, criamos milhões de pessoas fadadas a passar suas vidas em condições subumanas, condenadas ao fracasso, à insatisfação, à marginalidade, à morte prematura.

Todo esse quadro, porém, tem sido insuficiente para convencer setores da administração pública da urgência de medidas para enfrentar a realidade. É preciso esclarecer a população sobre sexualidade e reprodução, dar correta assistência à saúde da mulher e respeitar os direitos de escolha relativos à gravidez. A contracepção precisa estar ao alcance de todos que dela necessitarem e isso implica admitir que meninas e meninos devem receber orientação sexual desde cedo.

Além de prestar atendimento médico gratuito, cabe ao Estado fornecer os anticoncepcionais e preservativos, realizar as operações de esterilização que lhe sejam solicitadas, sem as limitações hoje impostas. As chamadas “políticas de planejamento familiar”, em geral boicotadas por setores conservadores da sociedade, precisam ser ampliadas e adaptadas à realidade da emancipação feminina e dos direitos sexuais. Não resolve instituir programas partindo da premissa de que apenas a mulher casada irá procriar.

Ao contrário, a mulher casada de hoje é, proporcionalmente, a que menos engravida involuntariamente. O maior contingente de crianças carentes resulta de gestações prematuras de mães solteiras, adolescentes, elas próprias verdadeiras crianças.

Por isso, o planejamento não deve ser encarado como familiar, mas como reprodutivo, abrangendo pessoas casadas ou solteiras.

A alegação de que o Brasil tem muito espaço territorial a ser ocupado e os problemas de desigualdade social se resolvem apenas com maior distribuição de renda não pode ser admitida como alvará para a explosão demográfica.

Nossa situação é tão grave que várias medidas precisam ser tomadas simultaneamente. Mesmo porque, os recursos naturais também estão se esgotando.

Dividir a extensão do território nacional pelo número de habitantes e chegar à conclusão de que ainda temos muitos metros quadrados para cada um é falsear o que de fato ocorre. As pessoas não precisam apenas de espaço físico, mas sim de qualidade de vida. Todas querem morar dignamente e ter saúde, educação, trabalho e lazer.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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