Direitos Humanos

ONU divulga relatório de Asma Jahangir sobre execuções no Brasil

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12 de fevereiro de 2004, 9h47

A relatora especial das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, divulgou na quarta-feira (11/2) o relatório sobre sua recente missão ao Brasil, feita entre 16 de setembro e 8 de outubro de 2003. Durante sua visita, ela percorreu os Estados da Bahia, Pernambuco, Pará, Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, além do Distrito Federal.

O relatório sobre a missão ao Brasil será apresentado — juntamente com o relatório anual de Asma Jahangir — à Comissão de Direitos Humanos da ONU, que se reúne em março e abril de 2004 em Genebra.

Conforme denúncias apresentadas pelo Centro de Justiça Global e outras organizações não-governamentais brasileiras e internacionais, o quadro de violência policial, sobretudo de mortes de civis cometidas por policiais, chamou a atenção da relatora. Segundo ela, “uma análise mais profunda revela que as mortes pela polícia são muitas vezes execuções extrajudiciais precariamente disfarçadas”.

A impunidade desfrutada por maus policiais e grupos de extermínio também foram objeto de críticas e recomendações por parte da relatora, que declarou estar “estupefata com a quantidade de informações sobre violações de direitos humanos perpetradas por forças de segurança, em particular a polícia militar”.

Ainda segundo o relatório, “outro motivo de preocupação da relatora especial é o fato que esse aumento da letalidade da polícia parece ser desculpada por uma parcela da opinião pública e assumida pelas autoridades estatais que consideram a violência necessária, e inevitável produto do controle do crime. Ela lamenta que alguns membros da polícia explorem o clima geral de violência no sentido de transmitir brutalidade e justiça fácil para aqueles que consideram socialmente indesejáveis”.

Entre as 20 recomendações feitas pela relatora ao governo brasileiro ao final de seu relatório, destaca-se o fortalecimento do Ministério Público e das Ouvidorias de Polícia, a reforma do sistema judiciário, a independência dos institutos médico-legais, e, sobretudo, a garantia do governo brasileiro “de que todas as pessoas em perigo de serem executadas, incluindo aqueles que recebem ameaças de morte, sejam efetivamente protegidas”.

A relatora repudiou fortemente as execuções de Flávio Manoel da Silva, assassinado a tiros em Pedras de Fogo(PB), quatro dias após ter prestado depoimento e de Gerson Jesus Bispo, que também forneceu informações sobre a morte de seu irmão, morto por um grupo de extermínio supostamente ligado à policia, em Santo Antonio de Jesus (BA).

O Centro de Justiça Global está disponibilizando uma versão traduzida para o português dos trechos mais importantes do relatório.

Leia o resumo do relatório

Tradução não-oficial, de responsabilidade da Justiça Global

SUMÁRIO

A Relatora Especial recebeu uma quantidade enorme de informações sobre violações de direitos humanos cometidas por forças de segurança, em particular a Policia Militar, com total impunidade. Estes casos são comunicados ao Governo no apêndice a este relatório. [p. 2]

A Relatora Especial recomenda que o processo penal Brasileiro seja racionalizado sem transgredir o respeito à legalidade, a fim de acabar com a impunidade. Os Tribunais devem ser inteiramente reformados com o objetivo de corrigir sua lentidão e de ser menos congestionado. O Ministério Público deveria ser reforçado. Os institutos médico-legais deveriam ser independentes e dirigidos por pessoas que não pertençam às forças policiais. As forças de ordem deveriam melhorar a formação de seus membros em matéria de direitos humanos e melhor selecionar seus policiais.

Os policiais acusados de execuções extrajudiciais devem ser suspensos de suas funções até que um julgamento tenha ocorrido. O Governo deveria constituir uma base de dados sobre violações de direitos humanos atribuídas às forças de ordem. O Governo deveria dar atenção a proteção de todas as pessoas em perigo de execução extrajudicial, notadamente aquelas que recebem ameaças de morte. Maiores recursos deveriam ser destinados aos programas de proteção a testemunhas e o pessoal policial vinculado a este programa deveria ser cuidadosamente selecionado. A Relatora Especial recomenda vivamente que o Relator Especial encarregado de estudar a questão da independência de juizes e advogados efetue uma missão ao Brasil. [p. 2]

INTRODUCAO

3. A Relatora Especial deplora profundamente o assassinato de duas testemunhas por ela entrevistados durante sua visita. Uma testemunha, Flavio Manoel da Silva, com quem ela encontrou em Itambé (estado de Pernambuco), foi morto no dia 27 de Setembro por criminosos desconhecidos após já ter sobrevivido uma tentativa contra sua vida cometida por um policial. No dia 8 de Outubro, Gerson Jesus Bispo, que também forneceu informações à Relatora Especial sobre a morte de seu irmão, morto por um esquadrão da morte supostamente ligado à policia, foi brutalmente assassinado em Santo Antonio de Jesus (estado da Bahia). A Relatora Especial expressa sérias preocupações a respeito do que poderiam ser considerados atos de vingança e encoraja o Governo a tomar todas as medidas necessárias para proteger vítimas e testemunhas de abusos de direitos humanos, em conformidade com os termos de referência acordados para missões de investigação por parte de Relatores Especiais.


4. O assassinato de Flavio Manoel da Silva gerou imediata reação do Governo do Brasil, que ofereceu incluir no programa de proteção a testemunhas todas as testemunhas que conversaram com a Relatora Especial – e que concordassem com a medida. Uma lista inicial de testemunhas foi subseqüentemente submetida pela Relatora Especial ao Governo. Ademais, durante o encontro da Relatora Especial com o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a questão da proteção de pessoas sob ameaça de oficiais da lei foi discutida a exaustão. O Presidente estava profundamente preocupado com o assunto e ordenou que defensores de direitos humanos e testemunhas sob ameaça recebessem proteção pela Polícia Federal. [p. 4]

III. Alegações de violações ao direito à vida

A. Mortes devido ao excessivo uso da força e execuções extrajudiciais atribuídas a agentes das forças da lei

36. (…) Em diferentes regiões, os alvos das execuções podem variar: camponeses sem terra ou lideranças indígenas em áreas rurais no contexto do conflito agrário, jovens provenientes de lares desfavorecidos apanhados em operações anti-drogas ou em retaliação por assassinatos de agentes policiais, defensores de direitos humanos são silenciados. Sobretudo, as vítimas costumam ser jovens afro-descendentes do sexo masculino entre 15 e 19 anos de idade, às vezes envolvidos com gangues criminosas e habitando em comunidades carentes. A Relatora Especial ficou aterrorizada, após conversar com parentes e representantes das vítimas, pela situação geral da população que vive em favelas onde cidadãos inocentes estão atados a um ciclo de violência cultivado por quadrilhas de tráfico de drogas fortemente armadas ou operações policias repressivas indiscriminadas, sem muitos recursos, se existe algum, para procurar proteção.

Esta grave situação pode apenas resultar em números recordes de mortes por policiais. A Relatora Especial notou um recente e perigoso aumento do número de civis mortos pela polícia estadual no Rio de Janeiro e São Paulo. Homicídios pela polícia freqüentemente ocorrem em massivas invasões em favelas principalmente articuladas para prender suspeitos de crimes ou conduzir “limpeza” preventiva. No curso dessas invasões, a polícia, que freqüentemente não possui treinamento e meios apropriados para conduzir essas operações, tem reiteradamente se engajado em disparos fatais injustificados contra suspeitos de crime ou habitantes locais. Há também um número de relatos nos quais a polícia tem simplesmente usado violência e assassinado jovens habitantes de favelas sem alguma provocação.

37. A Relatora Especial foi informada que em março de 2002, 110 membros de uma unidade especial de inteligência da polícia militar de São Paulo, conhecida como GRADI, originalmente criada para investigar crimes de ódio, matou 12 membros de uma suposta quadrilha que estavam viajando em um ônibus na Rodovia Castelinho, em um alegado tiroteio durante uma operação policial. A Relatora Especial recebeu informações de perícias técnicas independentes de que as vítimas sugeridas foram executadas extrajudicialmente.

40. Uma análise mais profunda revela que as mortes pela polícia são muitas vezes execuções extrajudiciais precariamente disfarçadas. De acordo com as ouvidorias de polícia e ONGs encontradas pela Relatora Especial, relatórios policiais freqüentemente apontam que a vítima foi morta em confronto, após resistir à prisão. Invariavelmente, a polícia usa um denominado “auto de resistência” que apresenta uma justificação de uma resposta policial legal perante o uso ilegal de força letal pelas vítimas, transferindo a responsabilidade da polícia para a vítima. Entretanto, laudos de perícia médico-legal e testemunhos geralmente demonstram que os tiros fatais tenham sido disparados à queima roupa, em circunstâncias que sugerem que a pessoa foi vítima de execução extrajudicial. (…).

41. Outro motivo de preocupação da Relatora Especial é o fato que esse aumento da letalidade da polícia parece ser desculpada por uma parcela da opinião pública e assumida pelas autoridades estatais que consideram a violência necessária e inevitável produto do controle do crime. A Relatora Especial igualmente deplora que o legado de violência herdada da ditadura militar continue a formar um prevalecente caráter de certas divisões da polícia militar. Ela lamenta que alguns membros da polícia explorem o clima geral de violência no sentido de transmitir brutalidade e justiça fácil para aqueles que consideram socialmente indesejáveis.

IV CONCLUSOES E RECOMENDACOES [P. 20]

Conclusões

71. A Relatora Especial tem conhecimento que o Governo federal, em conjunto com alguns governos estaduais, está trabalhando visando a melhoria do sistema criminal para a prevenção de execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias, ao criar novas políticas e instituições/estruturas que garantam uma melhor prestação da justiça. Outras reformas chaves, legal e administrativa, estão a caminho. Estas medidas resultam insuficientes em virtude de um sem número de razoes: primeiramente como alguns estados não aceitam integralmente a existência de execuções sumárias e extrajudiciais cometidas pela polícia militar, seus planos permanecem superficiais. Em segundo lugar, as reformas estão sendo conduzidas em pedaços e falta coesão. Finalmente, todas as novas e existentes instituições, comissões e estruturas carecem de conhecimento profissional e capacidade para funcionar efetivamente.


72. A Relatora Especial ficou estupefata com a quantidade de informações sobre violações de direitos humanos perpetradas por forças de segurança, em particular a polícia militar. Muitos dos relatórios foram embasados em evidências que sugerem fortemente que estes graves abusos de direitos humanos ocorrem impunemente.

73. O processo criminal Brasileiro deveria ser simplificado sem comprometer o devido processo legal: as falhas dentro do processo legal permitindo fácil escape da justiça daqueles acusados deveria ser enfrentadas, de modo a acabar com a impunidade.

74. O sistema judicial necessita drásticas reformas para superar atrasos e acúmulo de processos. Há sérias dúvidas sobre a independência do judiciário. Litigantes mostraram nenhuma confiança no sistema ao passo que testemunhas estavam apreensivas em apresentar evidencias em tribunais, que não inspiravam confiança. O sistema do júri funciona bem em grandes cidades, mas é disfuncional em cidades menores, onde a população é inter-relacionada e ligada por laços étnicos ou de outro tipo.

75. A Relatora Especial foi encorajada a ver a vontade coletiva de ministros federais para garantir que os direitos humanos sejam respeitados no Brasil. O Governo federal tem construído parcerias com membros do Congresso, da OAB, promotores públicos e ONGs a fim de melhor implementar sua política de promoção de normas de direitos humanos. A Relatora especial ficou satisfeita em ver uma equipe de trabalho similar no Espírito Santo, onde o recém-eleito governador estava profundamente preocupado com o aumento da criminalidade e de relatos de execuções extrajudiciais cometidas pela polícia.

RECOMENDAÇÕES

76. Todas as propostas de reforma legislativa ou administrativa deveriam enfrentar ambos os problemas de prevenção e responsabilização (accountability) de execuções sumarias e extrajudiciais.

77. O processo e requerimentos de recrutamento de policiais e carcereiros deve ser revisado. Todos os novos contratados pela policia devem ser filtrados (investigados?) sobre afiliações a gangues de criminosos e sua orientação com relação a valores de direitos humanos deve ser testada.

78. Em vistas das fortes alegações e críveis relatos sobre ligações entre elementos criminosos e alguns membros ativos da polícia, procedimentos de investigação justos e transparentes devem ser criados e implementados.

79. A qualidade de cursos de treinamento e atualização para a polícia deve ser regularmente incrementada e incluir um componente de direitos humanos com completo treinamento no uso da força letal como ultimo recurso para a proteção da vida. Recrutas devem ser sensibilizados ao sofrimento das vitimas através de metodologias criativas, e interação humana com vitimas ou seus familiares. Maior participação da sociedade civil incluindo na formatação dos currículos deve ser encorajada.

80. O Governo deve manter uma base de dados compreensível sobre violações de direitos humanos atribuídas a membros das forças da lei. Esta base de dados deve incluir o numero de mortes perpetradas pela polícia, o numero e tipo de acusações criminais, o numero de investigações criminais levadas a cabo e de convicções/absolvições dos acusados. Toda morte violenta sob custódia deve ser registrada; relatórios de investigações para cada morte devem estar disponíveis em cada prisão e centralizados em um departamento governamental. Os nomes e endereços das vitimas também devem ser coletados. Os dados e informações sobre execuções sumárias e extrajudiciais devem estar disponíveis ao publico, incluindo a imprensa e ONGs. Estes dados indicarão o padrão dos crimes e fornecer uma forte base para futuros planos e políticas governamentais.

81. Carcereiros devem receber treinamento e orientação. Todos os centros de detenção devem permitir visitas não-oficiais de pessoas trabalhando em organizações de direitos humanos registradas.

82. O ministério público deve ser fortalecido. O mandato dos chefes das procuradorias deve ser por um período razoável, que permita oportunidades suficientes para consolidarem seu trabalho. Promotores devem receber um time de investigadores e ser encorajados a realizar investigações independentes contra acusações de execuções extrajudiciais. Obstáculos legais que previnem tais investigações independentes devem ser removidas através de nova legislação.

83. Em cada incidente de massacre alegadamente perpetrado pela policia e onde testemunhas se recusarem a testemunhar ou onde haja provas insuficientes para identificar os indivíduos que cometeram o crime, o Governo deve também (além dos procedimentos criminais) realizar um inquérito judicial para determinar a seqüência de eventos para que a vítima seja recompensada.

84. Dependentes de vítimas de execuções extrajudiciais devem ter o direito de receber justa e adequada reparação do Estado em breve espaço de tempo, incluindo compensação financeira.

85. Agências de inteligência devem ser associadas à investigação de assassinatos cometidos por chamados esquadrões da morte, por serem cruciais em revelar a identidade daqueles membros. É criticamente importante reorganizar estes serviços por meio da promoção de indivíduos com integridade e colocação de mais recursos a sua disposição.

86. O prazo limite para processos do crime de assassinato deve ser abolido.

87. Governos (estaduais) devem garantir que todas as queixas e relatos de execuções extrajudiciais sejam prontamente, imparcialmente e efetivamente investigadas por um órgão absolutamente imparcial. O promotor público deve decidir se o assassinato de civis pela policia é “intencional” ou não após conduzir uma investigação independente.

88. Os métodos e conclusões sobre assassinatos criminosos em casos de supostas execuções devem ser tornados públicos. Parentes das vitimas devem ter acesso a informações relevantes à investigação.

89. O Governo deve garantir que todas as pessoas em perigo de serem executadas, incluindo aqueles que recebem ameaças de morte, sejam efetivamente protegidas.

90. O Programa de Proteção a Testemunhas (PROVITA) deve receber mais recursos, e todo policial envolvido neste programa deve ser investigado a fundo.

91. Institutos forenses devem ser autônomos e conduzidos por profissionais não-policiais, por serem estes institutos cruciais para a condução de investigações. Seu apoio técnico deve ser aumentado e atualizado regularmente.

92. As Ouvidorias devem ser reforçadas, seu mandato aumentado e seus relatórios anuais apresentados aos congressos para discussão.

93. Oficiais da policia indiciados em execuções extrajudiciais devem ser temporariamente suspensos até a conclusão do processo.

94. A fim de apoiar a independência do judiciário, uma avaliação mais detalhada do sistema necessita ser levada a cabo por um especialista. A Relatora recomenda enfaticamente que o Relator Especial para a independência de juizes e advogados realize uma missão ao Brasil para que recomendações compreensivas e focalizadas sejam apresentadas nesta área.

95. As presentes e propostas reformas legislativas iniciadas pelo Governo devem ser aceleradas e reavaliadas duas vezes ao ano; elas devem ser descontinuadas se provadas impraticáveis.

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