Dispensa eleitoral

Deficiente físico não é obrigado a votar, decide TSE.

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6 de agosto de 2004, 12h10

Deficiente físico não é obrigado a votar. O Tribunal Superior Eleitoral aprovou a formulação desenvolvida pelo ministro Gilmar Mendes, uma vez que a Constituição Federal de 1988 não cuidou do assunto.

A resposta do TSE foi dada à consulta feita pela Corregedoria Regional Eleitoral do Espírito Santo.

O ministro Gilmar Mendes defendeu a “facultatividade do alistamento e do voto aos cidadãos que apresentem deficiência que impossibilite ou torne extremamente oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais”. Ele ressaltou que a Constituição Federal “nada diz sobre os inválidos” nessa questão eleitoral. Os ministros do TSE acolheram a formulação feita por Gilmar Mendes. Agora, deve ser baixada uma Resolução sobre o assunto.

Conheça a formulação:

PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº 18.483 – VITÓRIA – ES

Interessado: Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo

V O T O – V I S T A

1. Versa este Processo Administrativo sobre consulta formulada pelo Corregedor Regional Eleitoral do Espírito Santo acerca da vigência do art. 6º, inciso I, alínea a, Código Eleitoral. Esse dispositivo desobriga o alistamento eleitoral dos inválidos, em face da disciplina constitucional conferida à matéria pelo art. 14, § 1º, inciso II, que faculta o alistamento e o voto apenas para os analfabetos, os maiores de setenta anos e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

Na Sessão de 13.3.01 votou o ministro Garcia Vieira, relator à época, que, ao acompanhar o Parecer Ministerial, concluiu pela obrigatoriedade do alistamento e do voto aos portadores de incapacidade física. Entendeu que a atual Constituição disciplinou, taxativamente, as hipóteses nas quais o alistamento e o voto seriam facultativos. Ressalvou, entretanto, ser possível a justificação do não-exercício do voto por parte dessas pessoas, a critério do Juiz Eleitoral da zona em que estiver inscrito o interessado, consoante as disposições da Res.- TSE nº 20.71, de 12.9.2000.

Após o voto do Relator, pediu vista o ministro Fernando Neves que, ao levar o feito a julgamento na Sessão de 22.3.01, lembrou que as Constituições de 1946 e de 1967 traziam disposições expressas acerca da possibilidade de exceções à obrigatoriedade do alistamento. Isso não ocorre na Constituição vigente, pelo que acompanhava o voto do Relator. Proferido esse voto, pediu vista o ministro Nelson Jobim.

Continuando o julgamento em 12.2.04, votou o senhor ministro BARROS MONTEIRO, novo relator, que acompanhou os votos proferidos anteriormente. Concluiu não ter sido o dispositivo objeto da consulta recepcionado pela Constituição. Reconheceu nela haver disciplinamento para a matéria, o que não ocorria nos textos constitucionais de 1946 e de 1967, os quais remetiam à legislação infraconstitucional a possibilidade de serem estabelecidas essas exceções. Em face desses posicionamentos, pedi vista para melhor estudar a questão.

2. De fato, o art 14, parágrafo 1º, II, Constituição Federal(1), faculta o alistamento eleitoral e o voto apenas aos analfabetos, aos maiores de setenta anos, aos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Nada diz sobre os inválidos.

O Código Eleitoral, em seu art. 6º, I(2), por outro lado, faculta o alistamento eleitoral aos inválidos, assim como aos maiores de setenta anos.

Valho-me aqui do subsídios constantes da decisão proferida nos embargos infringentes na ADI nº 1.289/DF, de minha relatoria no Supremo Tribunal Federal.

O exame dessa questão avivou-me a memória para uma reflexão de Gustavo Zagrebelsky sobre o ethos da Constituição na sociedade moderna. Diz aquele eminente Professor italiano em seu celebrado trabalho sobre o direito dúctil – il diritto mitte

:

As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado — isto é, as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade da mesma. (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad. de Marina Gascón. 3a. edição. Edt. Trotta S.A., Madrid, 1999. p. 13).

Em seguida, observa aquele eminente Professor:

“No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil., cit., p. 16).


Por isso, conclui que o pensamento a ser adotado, predominantemente em sede constitucional, há de ser o “pensamento do possível”. Leio, ainda, esta passagem desse notável trabalho:

“Da revisão do conceito clássico de soberania (interna e externa), que é o preço a pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade possível – uma unidade dúctil, como se afirmou – deriva também a exigência de que seja abandonada a soberania de um único princípio político dominante, de onde possam ser extraídas, dedutivamente, todas as execuções concretas sobre a base do princípio da exclusão do diferente, segundo a lógica do aut-aut, do “ou dentro ou fora”. A coerência “simples” que se obteria deste modo não poderia ser a lei fundamental intrínseca do direito constitucional atual, que é, precipuamente, a lógica do et-et, e que contém por isso múltiplas promessas para o futuro. Neste sentido, fala-se com acerto de um ‘modo de pensar do possível’ (Möglichkeitsdenken), como algo particularmente adequado ao direito do nosso tempo. Esta atitude mental ‘possibilista’ representa para o pensamento o que a ‘concordância prática’ representa para a ação” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, cit., p. 17).

Em verdade, talvez seja Peter Häberle o mais expressivo defensor dessa forma de pensar o direito constitucional nos tempos hodiernos, entendendo ser o “pensamento jurídico do possível” expressão, conseqüência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta (Häberle, P. Demokratische Verfassungstheorie im Lichte des Möglichkeitsdenken, in: Die Verfassung des Pluralismus, Königstein/TS, 1980, p. 9).

Nessa medida, e essa parece ser uma das importantes conseqüências da orientação perfilhada por Häberle, “uma teoria constitucional das alternativas” pode converter-se numa “teoria constitucional da tolerância” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 6). Daí perceber-se também que a “alternativa enquanto pensamento possível afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do método, tal como verificado na controvérsia sobre a tópica enquanto força produtiva de interpretação” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 7).

A propósito, anota Häberle:

“O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve estar aberto para terceiras ou quartas possibilidades, assim como para compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes Denken). Na res publica, existe um, ethos, jurídico específico do pensamento em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de alternativas abre suas perspectivas para “novas” realidades, para o fato de que a realidade de hoje poder corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa , sem que se considere o novo como o melhor” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 3).

Nessa linha, observa Häberle, que “para o estado de liberdade da , res publica, afigura-se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles que defendem determinadas alternativas”. Daí ensinar que “não existem apenas alternativas em relação à realidade, existem também alternativas em relação a essas alternativas” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 6).

O pensamento do possível tem uma dupla relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento do possível indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à realidade, sobre aquilo que ainda não é real. O pensamento do possível depende também da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo que pode ser real no futuro (Möglich ist nur was in Zukunft wirklich sein kann. É a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossível do possível (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p.10).

Valendo-nos da lição de Scheuner citada por Häberle, se quiser preservar força regulatória em uma sociedade pluralista, a Constituição não pode ser vista como texto acabado ou definitivo, mas sim como “projeto” (“Entwurf”) em desenvolvimento contínuo (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 4).

O legislador constitucional, ao facultar o voto aos maiores de setenta anos, atentou, certamente, para as prováveis limitações físicas decorrentes de sua idade avançada, de modo a não transformar o exercício do voto em transtorno ao seu bem-estar(3).

É certo também que algumas pessoas apresentam deficiências que praticamente tornam impossível o exercício de suas obrigações eleitorais, tais como os tetraplégicos e os deficientes visuais inabilitados para a leitura em braile. Estes podem encontrar-se em situação até mais onerosa do que a os idosos.


Portanto, a solução que mais parece se aproximar desse “pensamento do possível”, na espécie, é exatamente a que faculta o alistamento eleitoral e o voto às pessoas portadoras de deficiências que impossibilitam ou tornam assaz oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais.

Muito mais distante da vontade constitucional seria obrigar o deficiente inabilitado ao sufrágio a deslocar-se para o local de votação e submetê-lo a experiência frustrante de não conseguir exercer os elementares direitos de cidadania, ou, ainda, de fazê-lo, com enorme sacrifício.

Assim, entendo que o “pensamento do possível” no Direito Constitucional autoriza, também aqui, uma interpretação compreensiva que permita ampliar as hipóteses de alistamento facultativo a essas estritas hipóteses.

A questão pode ser vista da perspectiva de lacuna da Constituição.

Nesse sentido, permito-me trazer à colação interessante caso julgado pela Corte de Cassação da Bélgica, mencionado por Perelman em “Lógica Jurídica”. Anota Perelman:

“Durante a guerra de 1914-1918, como a Bélgica estava quase toda ocupada pelas tropas alemãs, com o Rei e o governo belga no Havre, o Rei exercia sozinho o poder legislativo, sob forma de decretos-leis.

‘A impossibilidade de reunir as Câmaras, em conseqüência da guerra, impedia incontestavelmente que se respeitasse o artigo 26 da Constituição (O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, pela câmara dos Representantes e pelo Senado). Mas nenhum dispositivo constitucional permitia sua derrogação, nem mesmo em circunstâncias tão excepcionais. O artigo 25 enuncia o princípio de que os poderes ‘são exercidos da maneira estabelecida pela Constituição’, e o artigo 130 diz expressamente que ‘a Constituição não pode ser suspensa nem no todo nem em parte.’ (A. Vanwelkenhuyzen, De quelques lacunes du droit constitutionnel belge, em Le problème des lacunes en droit, p. 347).

Foi com fundamento nestes dois artigos da Constituição que se atacou a legalidade dos decretos-leis promulgados durante a guerra, porque era contrária ao artigo 26 que se precisa como se exerce o poder legislativo.

Se a teoria de Hans Kelsen fosse conforme à realidade jurídica, e se o texto constitucional devesse constituir a norma fundamental do direito belga, a Corte de Cassação teria de aceitar a argumentação do demandante, que atacava como anticonstitucionais os decretos-leis promulgados somente pelo Rei. Mas, na verdade a Corte não exitou em afirmar que ‘foi pela aplicação dos princípios constitucionais que o Rei tendo permanecido durante a guerra o único órgão do poder legislativo que conservou sua liberdade de ação, tomou as disposições com força de lei que a defesa do território e os interesses vitais da nação exigiam imperiosamente.’”

[…] (Perelman, Chaïm. Lógica Jurídica, trad. Vergínia K. Pupi. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000, p.105).

Perelman responde à indagação sobre a legitimidade da decisão da Corte, com base nos argumentos do Procurador-Geral Terlinden. É o que lê na seguinte passagem do seu trabalho:

“Como pôde a Corte chegar a uma decisão manifestamente contrária ao texto constitucional? Para compreendê-lo, retomemos as conclusões expostas antes do aresto pelo procurador-geral Terlinden, em razão de seu caráter geral e fundamental.

‘Uma lei sempre é feita apenas para um período ou um regime determinado. Adapta-se às circunstâncias que a motivaram e não pode ir além. Ela só se concebe em função de sua necessidade ou de sua utilidade; assim, uma boa lei não deve ser intangível pois vale apenas para o tempo que quis reger. A teoria pode ocupar-se com abstrações. A lei, obra essencialmente prática, aplica-se apenas a situações essencialmente concretas. Explica-se assim que, embora a jurisprudência possa estender a aplicação de um texto, há limites a esta extensão, que são atingidos toda vez que a situação prevista pelo autor da lei venha a ser substituída por outras fora de suas previsões.

Uma lei – constituição ou lei ordinária – nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever.

Obra do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força maior, à necessidade.

Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações que não pôde levar em consideração e nas quais, tornando-se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível dos acontecimentos”. (Vanwelkenhuysen, Le problème des lacunes en droit, cit., pp. 348-349).

[…] (Perelman, Lógica Jurídica, cit., p.106).

Nessa linha, conclui Perelman:


“Se devêssemos interpretar ao pé da letra o artigo 130 da Constituição, o acórdão da Corte de Cassação teria sido, sem dúvida alguma, contra legem. Mas, limitando o alcance deste artigo às situações normais e previsíveis, a Corte de Cassação introduz uma lacuna na Constituição, que não teria estatuído para situações extraordinárias, causadas ‘pela força dos acontecimentos’, ‘por força maior’, ‘pela necessidade (Perelman, Lógica Jurídica, cit. p. 107).

Não é difícil encontrar exemplos do “pensamento do possível” na rica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não raras vezes assentada na eventual configuração de uma omissão ou lacuna constitucional.

São exemplos notórios desse pensamento as decisões do Tribunal que reconheceram a existência de uma “situação jurídica ainda constitucional” relativamente a algumas normas aplicáveis às defensorias públicas.

De certa forma, o precedente firmado no Recurso Extraordinário Criminal no 147.776, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, parece aquele que, entre nós, melhor expressa essa idéia de omissão ou lacuna constitucional apta a justificar interpretação compreensiva do texto constitucional e das situações jurídicas pré-constitucionais.

A ementa do acórdão revela, por si só, o significado da decisão para a versão brasileira do “pensamento constitucional do possível”:

“Ministério Público: Legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen, art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalização das leis.

1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da constituição — ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.

2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68, C. Pr. Penal — constituindo modalidade de assistência judiciária — deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Pen será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328” (RECrim 147.776-8, Rel. Sepúlveda Pertence, Lex-JSTF, 238, p. 390).

Nesse sentido, afigura-se eloqüente a seguinte passagem do voto proferido pelo ministro Sepúlveda Pertence:

“O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição.

Essas alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.

É tipicamente o que sucede com as normas constitucionais que transferem poderes e atribuições de uma instituição preexistente para outra criada pela Constituição, mas cuja implantação real pende não apenas de legislação infraconstitucional, que lhe dê organização normativa, mas também de fatos materiais que lhe possibilitem atuação efetiva.

Isso o que se passa com a Defensoria Pública, no âmbito da União e no da maioria das Unidades da Federação.

Certo, enquanto garantia individual do pobre e correspondente dever do Poder Público, a assistência judiciária alçou-se ao plano constitucional desde o art. 141, § 35, da Constituição de 1946 e subsistiu nas cartas subseqüentes (1967, art. 150, § 32; 1969, art. 153, § 32) e na Constituição em vigor, sob a forma ampliada de ‘assistência jurídica integral’ (art. 5.o, LXXIV).


Entretanto, é inovação substancial do texto de 1988 a imposição à União e aos Estados da instituição da Defensoria Pública, organizada em carreira própria, com membros dotados da garantia constitucional da inamovibilidade e impedidos do exercício privado da advocacia.

O esboço constitucional da Defensoria Pública vem de ser desenvolvido em cores fortes pela LC 80, de 12.1.94, que, em cumprimento do art. 134 da Constituição, ‘organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados’. Do diploma se infere a preocupação de assimilar, quanto possível, o estatuto da Defensoria e o dos seus agentes aos do Ministério Público: assim, a enumeração dos mesmos princípios institucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 3.o); a nomeação a termo, por dois anos, permitida uma recondução, do Defensor Público Geral da União (art. 6.o) e do Distrito Federal (art. 54); a amplitude das garantias e prerrogativas outorgadas aos Defensores Públicos, entre as quais, de particular importância, a de ‘requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições’ (arts. 43, X; 89, X e 128, X).

A Defensoria Pública ganhou, assim, da Constituição e da lei complementar, um equipamento institucional incomparável — em termos de adequação às suas funções típicas —, ao dos agentes de outros organismos públicos — a exemplo da Procuradoria de diversos Estados —, aos quais se vinha entregando individualmente, sem que constituíssem um corpo com identidade própria, a atribuição atípica da prestação de assistência judiciária aos necessitados.

Ora, no direito pré-constitucional, o art. 68, C. Pr. Penal — ao confiá-lo ao Ministério Público —, erigiu em modalidade específica e qualificada de assistência judiciária o patrocínio em juízo da pretensão reparatória do lesado pelo crime.

Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Penal será considerado ainda vigente.

O caso concreto é de São Paulo, onde, notoriamente, não existe Defensoria Pública, persistindo a assistência jurídica como tarefa atípica de Procuradores do Estado.

O acórdão — ainda não publicado — acabou por ser tomado nesse sentido por unanimidade, na sessão plenária de 1.6.94, com a reconsideração dos votos antes proferidos em contrário.

Ora, é notório, no Estado de São Paulo a situação permanece a mesma considerada no precedente: à falta de Defensoria Pública instituída e implementada segundo os moldes da Constituição, a assistência judiciária continua a ser prestada pela Procuradoria-Geral do Estado ou, na sua falta, por advogado.” (RECrim 147.776-8, Rel: Sepúlveda Pertence, Lex – JSTF 238: 390-9 (393-7).

Também aqui se identificou uma lacuna no texto constitucional, que, ao outorgar a atribuição de assistência judiciária às defensorias públicas, não ressalvou as situações jurídicas reguladas de maneira diversa no direito pré-constitucional – ausência de cláusula transitória – ,especialmente naquelas unidades federadas que ainda não haviam instituído os órgãos próprios de defensoria. Dessarte, a justificativa para a mantença do direito pré-constitucional fez-se com base numa disposição transitória implícita, que autorizava a aplicação do modelo legal pré-constitucional até a completa implementação do novo sistema previsto na Constituição.

Assim, pareceu legítimo admitir que a regra constitucional em questão continha uma lacuna: a não-regulação das situações excepcionais existentes na fase inicial de implementação do novo modelo constitucional. Não tendo a matéria sido regulada em disposição transitória, afigurou-se que o próprio intérprete pudesse fazê-lo em consonância com o sistema constitucional.

O mesmo raciocínio expus quando do julgamento dos embargos infringentes na aludida ADI nº 1289(4). Nesse caso, indagava-se se seria possível, na ausência de membros do Ministério Público com dez anos de carreira para compor a necessária lista sêxtupla para preenchimento de vaga do quinto constitucional de Juiz do Tribunal Regional do Trabalho, a complementação com membros do Ministério Público, que embora tivessem sido submetidos ao processo de escolha comum a todos os candidatos, não tivessem completado, ainda, o período a que se refere o art. 94 da Constituição.


O Tribunal entendeu que a aplicação que menos se distanciava do sistema formulado pelo constituinte parecia ser aquela que admitia a composição da lista por procuradores do trabalho que ainda não preenchiam o requisito concernente ao tempo de serviço estipulado

Na espécie, estou convencido também de que a ausência de qualquer disciplina constitucional sobre a matéria tão relevante sugere não um silêncio eloqüente, mas uma clara lacuna de regulação suscetível de ser colmatada mediante interpretação que reconhece o caráter facultativo do alistamento e do voto no caso de deficiência grave. Parece evidente que o constituinte não pretendeu impo o alistamento em tais casos. Trata-se tão-somente uma “lacuna” suscetível de ser superada com base nos próprios princípios estruturantes do sistema constitucional.

Nesses termos, voto no sentido de que resolução deste Tribunal discipline a facultatividade do alistamento e do voto aos cidadãos que apresentem deficiência que impossibilite ou torne extremamente oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais.

Notas de rodapé:

1. Art. 14[…]

[…]

§ 1º – O alistamento eleitoral e o voto são:

facultativos para:

a) os analfabetos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos”.

2. Art. 6º O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de um e outro sexo, salvo:

I – quanto ao alistamento:

a) os inválidos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os que se encontrem fora do país.

II – quanto ao voto:

a) os enfermos;

b) os que se encontrem fora do seu domicílio;

c) os funcionários civis e os militares, em serviço que os impossibilite de votar.

3. Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

4. Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Embargos Infringentes. Cabimento, na hipótese de recurso interposto antes da vigência da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. 3. Cargos vagos de juízes do TRT. Composição de lista. 4. Requisitos dos arts. 94 e 115 da Constituição: quinto constitucional e lista sêxtupla. 5. Ato normativo que menos se distancia do sistema constitucional, ao assegurar aos órgãos participantes do processo a margem de escolha necessária. 6. Salvaguarda simultânea de princípios constitucionais em lugar da prevalência de um sobre outro. 7. Interpretação constitucional aberta que tem como pressuposto e limite o chamado “pensamento jurídico do possível”. 8. Lacuna constitucional. 9. Embargos acolhidos para que seja reformado o acórdão e julgada improcedente a ADI 1.289, declarando-se a constitucionalidade da norma impugnada.

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