Software livre

Sobram desinformações quando o tema em debate é software livre

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28 de abril de 2004, 15h37

Parte I

Como bons entendedores, poucos superam hoje os economistas e jornalistas, pelo menos em generosidade nas auto-avaliações, no que competem com operadores do Direito. Principalmente quando combinam tais atribuições. Meia palavra leiga quase sempre já lhes farta. E das meias verdades alguns se fazem magos, na senda por um lugar ao Sol em meio à vassalagem imperial.

Na Folha de SP de 3 de Abril, um artigo entitulado "Software livre e Microsoft" denuncia, além das críticas denotadas, a intimidade do autor com esse tipo de magia semiológica. A inteligência, clareza e autonomia intelectual de Luiz Nassif, por reconhecidas e admiradas, potencializam o feitiço em leitores incautos. Para quebrar o encanto, quem deseja se imunizar contra perigos da dogmática fundamentalista de mercado precisa conhecer outras faces das palavras que lhe assomam. Dos potenciais beneficiários, não deveria se excluir o autor, nem os de outros discursos com semelhante teor, em destaque crescente na grande mídia.

Às vezes entoados com pretensão de profecia auto-realizável, mas cuja função primordial é adestradora, esses destaques são peças importantes na estratégia que o mercado dispõe para atingir um objetivo natural à sua lógica: o de engessar dependências aos efeitos cada vez mais radicais do atual regime de propriedade intelectual (PI) para Teconologias de Informação e Comunicação (TICs), sobre agentes — cidadãos, empresas, governos — cada vez mais enredados como reféns da informatização, e cujo cativeiro é tido, no mito pós-moderno, como cadinho para produzir o ouro alquímico da eficiência econômica.

Esta radicalização começou de forma aparentemente inóqua, no incio da década de 80, quando a jurisprudência norte americana passou a reconhecer certo tipo de patente, hoje conhecida como patente "de software". Na verdade, trata-se de patente de algoritmo. Algoritmos são, grosso modo, idéias sobre como processar informação através de programas. E softwares são, grosso modo, agrupamentos de programas que se entendem entre si. Já as patentes estabelecem, no âmbito do direito industrial, direito de exclusividade para exploração econômica de invenção.

Será que regras para manipular símbolos fazem parte da natureza humana, com sua competência linguística, ou será que são invenções? Foi preciso um contorcionismo hermenêutico para driblar a letra da venerada Carta Magna da maior democracia do planeta, e estabelecer, depois de várias tentativas, que antes a útima coisa do que a primeira. Logo a concessão desse tipo de patente se multiplicou. É importante notar que direitos de patente de software nada tem a ver com direitos autorais sobre software.

O borrão do medo, da incerteza e da dúvida

Uma patente de software "protege" uma idéia sobre como executar determinada função simbólica com qualquer programa de computador, enquanto o copyright de um programa de computador protege o autor contra o uso indevido da sua obra, originalmente expressa no código fonte deste programa. São proteções que podem se sobrepor, mas são independentes. Para aquilatarmos as consequências da manobra jurídica que legitimou as patentes de software, dando largada à corrida pela radicalização dos regimes de PI, precisamos de perspectiva histórica.

Desde a invenção da imprensa de tipo móvel, a história vem nos ensinando três lições importantes sobre TICs:

seus mercados são por natureza monopolizantes, devido ao "efeito rede" de sua ação;

seus modelos negociais têm eficácia efêmera, devido aos efeitos reflexivos de sua natureza;

seus produtos servem para instrumentar controles de acesso e validação do conhecimento, fundamentais à legitimação do poder político.

A radicalização dos regimes de PI se faz necessária à perpetuação de práticas negociais que já experimentaram estrondoso sucesso com as TICs, apresentando taxas de retorno jamais vistas na história do capitalismo. Mas a sobrevida dessas práticas incorre em custos sociais crescentes, causando-lhes fadiga. Como a sobrevivência a esta fadiga depende, devido à própria evolução das TICs, de regimes jurídicos de propriedade intelectual cada vez mais radicais, parece lícito classificar estas práticas em um modelo que possamos chamar de proprietário. A radicalização jurídica iniciada com o patenteamento de algoritmos não surge, portanto, nem da natureza das TICs nem do acaso. Ela faz parte de uma estratégia comercial e industrial que subsume a filosofia e a ideologia fundamentalistas de mercado.

Os custos sociais crescentes e necessários à manutenção do modelo proprietário como modus negociandi prevalente no mercado das TICs, a julgar pelas amostras, não são de pouca monta. Vemo-las em contenciosos cada vez mais esotéricos, envolvendo conceitos subjetivos e nebulosos que descambam em oxímoros capazes de eletrocutar a lógica jurídica clássica. Como no caso SCO x IBM, o conceito de "trabalho alheio derivado de obra intelectual protegível por sigilo industrial"[2].



 

Para justificar esses custos sociais, tal estratégia precisa contrapor ações marqueteiras à ação política que impõe, através de lobby econômico, esta desenfreada radicalização jurídica sobre o processo legislativo globalizante, mais visível hoje nas pressões imperiais para adesão jurisdicional a acordos globais de "livre comércio". Tais ações ganharam, no informatiquês, o nome "FUD", sigla para "Fear, Uncertainty and Doubt", que se paronimiza com "fudge", borrão.

Ocultando a fadiga do modelo

O FUD começa rejeitando o rótulo "proprietário" para o modelo a que serve. Quer que o chamemos de "comercial". E têm se mostrado mais eficaz quando explora um determinado medo coletivo: o de que controles sociais sobre mercados, mesmo que auto-impostos (como nas práticas negociais com software livre), tolham o sagrado direito à avareza. Neste ponto, o FUD funciona como cenoura presa a uma vara balançando à frente do burro, para induzi-lo a puxar a carroça. Este medo coletivo constitui, ironicamente, a outra face da moeda que economistas chamam de "a tragédia dos comuns". A face trágica desta moeda também serve ao FUD, para questionar o potencial do software livre e para legitimar a palavra de ordem "não existe alternativa" (à aceitação de regime de PI universal, ideologizado, esotérico e radicalizante que o fundamentalismo de mercado chama de PI "forte").

Ocorre, entretanto, que a tragédia dos comuns só atinge mercados de bens que se rivalizem sob o princípio geral da escassez material, o que não deveria ocorrer, devido à sua natureza, com o conhecimento e as idéias, matérias primas do software. Mesmo assim aquela face trágica se assoma no FUD com quem, discorrendo sobre software livre, ignora a natureza do movimento, sua fundamentação semiológica e sua dinâmica produtiva, enquanto insiste em tergiversar sobre sua insustentabilidade econômica. Resta-lhes, para provar a tese, tolher a liberdade do saber para dev/null. Tal qual engenheiros sociais tentando provar que besouros não voam, esses cavaleiros da grande ordem avara desdenham o zumbido da internet, erguida a padrões abertos e essencialmente ainda movida a software livre, até que algum coleóptero irrompa pela janela a perturbar suas elocubrações. É tragédia, mas não exatamente a dos comuns.

No citado artigo, Nassif caracteriza como distorção de mercado o problema que analisa: a precária situação atual do consumidor de bens e serviços de informática. Consensualmente, o autor relaciona esta precariedade com o excessivo poder acumulado por monopolistas no mercado. Porém despreza, precariamente, o papel dos crescentes desequilíbrios dos regimes de PI no contexto do problema, enquanto critica a política governamental que busca neutralizá-los, munido apenas de palavras de ordem. E propõe, como "solução", uma medida cuja ingenuidade distoa fortemente da sua reputação de inteligência. Jogando o jogo de formar opiniões sobre o tema pelo catecismo da estratégia FUD, e denotando fiar-se, para jogá-lo, apenas em fontes nela aninhadas, ele arrisca suas valiosas credenciais.

Doutra feita, não é só a ingenuidade da "solução" ali proposta que as põe em risco. No citado artigo, relações causais se invertem, ilações infundadas são tidas por fatos, ordenamentos jurídicos conflitantes com o pátrio tidos por legítimos, e mais. Essas e outras imprecauções ali servindo para ocultar a fadiga do modelo negocial hoje prevalente nas TICs, por detrás de um alarmista e insubstanciado ataque à atual política governamental para o setor. Enquanto esta fadiga precisa ser dissecada para entendermos o que nos cerca, e vislumbrarmos rumos possíveis na epopéia virtualizante em que estamos metidos, ela é toscamente obnubilada no artigo.

Múltipos desdobramentos

Que começa com um apelo por "mais análise em torno da questão do software livre, por parte do governo". Nomeado pelo Presidente da República para representar a sociedade civil junto ao órgão responsável pelos aspectos normativos fundamentais à segurança coletiva nas práticas sociais informatizadas — o comitê gestor da ICP-Brasil –, atendo com prazer e senso de dever cívico a tal apelo, dando continuidade à minha contribuição para tal análise com o presente texto.

Com uma justificativa para este apelo, o artigo prossegue:

"Especialistas na área, muitos deles críticos em relação à posição dominante do Windows, da Microsoft, consideram que o governo federal está adotando uma atitude temerária, com profundos desdobramentos negativos, se quiser subordinar todas as aplicações da área pública do software livre".

Para adiante aconselhar:

"Mas o caminho mais adequado não é o de tentar destruir a Microsoft. Primeiro, porque não se vai conseguir…"

Pelo que a estratégia FUD já se revela, em abusivas indeterminações de sujetos. "Temerária" para quem? "Profundos desdobramentos negativos" para quem? Intenção destrutiva de quem? Se suspendermos as conotações insinuadas pelo contexto, e desdobrarmos a lógica dos argumentos, o que se desvela é vassalagem. Com os acordos de gaveta entre Microsoft e SCO vindo à tona, de cuja renda a SCO sustenta sua litigação contra a IBM, e contra outras grandes empresas que investem em software livre, em longos e bilionários processos iniciados com acusações vagas e cambiantes e sem nenhum indício preliminar, como também alavanca sua campanha pública de chantagem e extorsão contra grandes usuários do GNU/Linux no rescaldo destas ações, fica claro onde estão as tentativas de destruição.



 

Quem expõe interesses destrutivos é quem estaria irrigando a perigosa aventura da SCO. É quem tem rompido contratos com parceiros no mesmo ritmo em que coage empresas a se aventurarem em parcerias desequilibradas, com possíveis futuras indenizações devidamente contabilizadas, litigando-os até o fundo dos seus bolsos a partir de um saldo bancário de mais de U$ 50 bilhões. É quem vocifera publicamente contra a licença GPL (a do Linux), comparando-a a "um cancer" que precisa ser combatido. É quem trata a segurança alheia como assunto de marketing, investindo em FUD para confundir a segurança do seu cliente com a segurança do seu negócio.

Quem escreve, licencia, comercializa, usa, ou entende que software livre é melhor para empresas (as que não põem todos os ovos no modelo proprietário), instituições e cidadãos, não o faz por querer destruir nada ou ninguém. Tais desejos podem até brotar do instinto de defesa quando seus ideais e ações são atacados — e o estão sendo hoje mais do que nunca –, mas não porque o ideário humanista do software livre os contemple. Esse ideário cotempla, ao contrário, múltiplos desdobramentos socialmente positivos.

Opção racional e viável

Tais como o resgate das liberdades humanas sobre as quais o iluminismo fundou a cidadania e o Estado modernos, hoje asfixiados pela liberdade sem peias do capital. Como as possíveis estratégias produtivas e comerciais capazes de neutralizar abusos na insana corrida pela proprietarização de idéias, promovida pela ideologia da PI "forte". Como a conquista de corações e mentes, inclusive de empresários dispostos a trocar excesso de ganância sob a lei da selva neoliberal, onde obscuridade equivale a chance de lucro, por criatividade empresarial sob a égide da sinergia digital, onde transparência equivale a integridade. Ou, até mesmo, a economia com licenças de uso.

Este ideário não quer destruir a Microsoft, empresa que nenhum pinguinista pode impedir de negociar com software livre se assim o desejar, nem ninguém de negociar com ela nos termos que ela impuser. Tampouco quer destruir mandamento algum de Moisés, pois não está lavrado em pedra que o modelo proprietário é o único legítimo ou economicamente viável para TICs. Modelos negociais prevalentes em torno do software tem mudado a cada vinte anos, na curta história da informática, que não chega a ter sessenta, se marcarmos sua fundação na primeira operação executada por um computador digital programável, em 1949 (EDSAC na Inglaterra).

O modelo proprietário é apenas o último a se tornar prevalente, com a revolução do downsizing. Esta revolução no mercado da informática, promovida pela racionalização da indústria de hardware através da transparência de padrões, resultou na independência do negócio do software em relação ao do hardware, a qual produziu dois desdobramentos polarizantes. Um desses desdobramentos foi permitir ao modelo proprietário tornar-se prevalente (não é por acaso que o início do downsizing coincide com o da radicalização dos regimes de PI). O outro, foi permitir ao modelo livre reviabilizar-se (cujo protótipo prevalecia nos primórdios da informática).

O modelo proprietário vem prevalecendo há mais de vinte anos, e já mostra sinais claros, abundantes e perigosos de fadiga. Mas é também o modelo que mais lucros pode acumular no topo da cadeia alimentar de um mercado por natureza monopolizante, enquanto o modelo livre é o que melhor neutraliza esta tendência. Para resumir, o modelo proprietário pendura a cenoura na ponta da vara amarrada à carroça-mercado, tensionando sua evolução sob a perspectiva social e tangendo, com isso, seu caminho para os rumos da ideologização.

A iniciativa de escolher modelos negociais para licenciamento e serviços no mercado de software é uma decisão autônoma para indivíduos e organizações, e soberana, sim, para Estados que precisam de software. Autônoma também para empresas de software que queiram assim negociar, e estratégica para ambos os lados. Quando e onde houver software disponível sob licenças que protejam liberdades essenciais do usuário, em quantidade, qualidade e chances evolucionárias que satisfaçam as partes, a escolha de práticas negociais nelas baseadas será uma opção racional e viável, como tem mostrado, por exemplo, a IBM. E não uma declaração de guerra às empresas — ou Estados — renitententes, que engessaram suas estratégias sobre um trilho jurídico conduzente ao totalitarismo, como ideologiza Nassif.

A magia das meias palavras

Se a maior dessas empresas renitententes vier algum dia a sucumbir, apesar do elixir de imortalidade que lhe prescreve Nassif, será pela mão fria e invisível da lógica de mercado que veneram, e não pela intenção dos que precisam dele se defender, e nele defender seus interesses pelo resgate da liberdade semiológica e pela autonomia tecnológica. Sugerir que o Estado deva abdicar da missão de defender sua soberania, ou da escolha de suas estratégias, pelo temor das consequências de estar contrariando a sanha totalitarista de fundamentalistas de mercado e seus vassalos, pode até ser realismo, como querem o presidente Bush e os agiotas globais, mas é também FUD.



 

E FUD da pior espécie, que, ao final, se transmuta em combustível ou matéria prima para novas formas de terrorismo ou crime organizado, como cada vez mais se parece a indústria organizada em torno da chantagem legalista para manipular a ideologia e os contenciosos da PI "forte" [1]. A lógica que o autor opera com suas conotações parece ser a mesma, a do poder. A lógica das piadas macabras de Bush sobre as armas de destruição em massa no Iraque: "A culpa é do Sadam, por nos fazer crer que estava mentindo". É certo que um jornalista tão brilhante como Luiz Nassif não se ateria apenas a insinuações e conotações aqui relevadas, para embasar seus argumentos. Quais razões, então, nos apresenta no citado artigo, para atemorizar sujeitos indeterminados? Prossigamos:

"[citando duas fontes] A percepção geral é que o software livre pode ter aplicações úteis, pode ser uma ferramenta de pressão para reduzir o poder de monopólio da Microsoft, mas jamais para desenvolvimento de softwares públicos ou exportação"

Por que o software livre não pode jamais ser ferramenta de desenvolvimento para softwares públicos? Se a licença que fez surgirem o conceito de software livre e sua generalização — o conceito de copyleft — chama-se, justamente, licença pública geral (GNU GPL), por que não pode? Se as razões estiverem em opiniões de fontes que podem ter apostado suas estratégias no modelo negocial prevalente, transmutadas em "percepção geral" pela magia das meias palavras bastantes, precisamos conhecer melhor seus interesses. Pois, afinal, fundamentalistas de mercado não conseguem distinguir interesses capitalistas de interesses sociais ou civis.

Ambiguidades e omissões

Se uma fonte é o ex-colunista do Jornal da Tarde que, em março de 2000, se valeu de uma falácia petitio principii para debochar da preocupação do governo francês com a auditabilidade dos seus sistemas informáticos, enquanto legisladores lá buscavam formular uma política de TI subordinada ao software livre [6], e a outra fonte é uma empresa interessada em surfar a onda do software livre na política governamental de TI, buscando induzi-lo a obrigar seus maiores e globais concorrentes a competirem em desvantagem e no modelo negocial de sua escolha, a situação é mais complicada. A complicação começa com um sequestro de conceito, prática desastrosa na informática.

Ao citar o conceito de software livre lembrado pela primeira fonte, um dos principais especialistas "na área", mas também uma fonte que alterna de maneira curiosa seus chapéus de acadêmico e empresário, autor ou fonte omitem justamente a única restrição imposta pela GPL — e que é a essência do copyleft –, confundindo o conceito de software livre com o de código aberto e com o de domínio público, equívoco que a atual política governamental definitivamente não comete, invalidando, portanto, a crítica de ambos a esta. Por que não se consultou também alguma fonte que entendesse de software livre, como por exemplo, a fundação que lançou a GPL (Free Software Foundation, www.fsf.org), onde se encontraria explicações até em português? Eis o "conceito lembrado":

"…o conceito de software livre é o de um sistema ao qual as pessoas têm acesso livremente, podem trabalhar e desenvolver em cima dele e passar para outras pessoas, que acrescentarão mais implementações."

Esta lembrança omite o dispositivo essencial ao copyleft: caso o licenciado venha a redistribuir o objeto da licença com acréscimos ou modificações, terá que fazê-lo através de licença compatível com a licença original. Além disso, ao omitir também qualquer referência ao instrumento jurídico pelo qual o autor licencia o software, introduz ambiguidades sobre o que ademais dispõe a GPL ou outras licenças copyleft. Omite até mesmo a existência desse instrumento que classificaria o software como livre, se modelado no copyleft, ou de domínio público, se ausente.

Parte II

Quem conhece a GPL, fica com a desagradável impressão de que se induz o leitor, com imprecaução injustificável diante das credenciais arroladas, à confusão entre "livre", "de código aberto" e "de domínio público". Para que? Vejamos o que segue àquela "lambrança":

"O pimeiro ponto sério é a falta de responsáveis pelo software. Surgindo um problema ou um grupo desenvolvedor se desfazendo — já que não existe sustentabilidade econômica para grande parte deles –, fica-se na mão"

A primeira parte da acusação me parece irresponsável. Se o objetivo é criticar a atual política governamental de TI, não se pode imputar ao software livre as mazelas do domínio público, epitomizadas pela "tragédia dos comuns", posto que esta política considera livre somente softwares licenciados sob regime copyleft. No mesmo sentido que os considera quem cunhou os termos e fez os primeiros. Neste sentido jurídico-denotativo — e não no sentido fictício-ideológico de quem sequestra o termo –, software livre, sob licença padrão, tem autor(es), distribuidor(es) e, no código-fonte e na interface de usuário, contrato de adesão — a GPL– gerando vínculos entre estes, e destes com usuários, através do seu objeto: o software enquanto espécie semiológica (como obra intelectual expressa em código fonte).



 

Através desses vínculos, autores de software livre respondem, sim, pela sua parte na obra segundo o direito autoral. Distribuidores respondem, sim, por seus atos com a obra segundo a lei de software e o CDC (inclusive por oferta de garantias, se a distribuição da espécimen for comercial). E licenciados respondem pelo reuso do código-fonte segundo a licença. A GPL impõe uma única obrigação, a quem, por vontade, a ela se vincule como distribuidor. Esses vínculos não contemplam a figura do desenvolvedor, e é importante entender porque, bem como semelhanças e diferenças entre desenvolvedor de software proprietário e distribuidor de software livre, para não "ficar-se na mão" na gerra do FUD. Por enquanto, resta observar que não se pode criticar o que não se conhece sem se fazer de tolo ou ocultar intenções escusas. Daí, melhor saber antes o que é copyleft.

Hacking do copyright

Tal conhecimento permite, por exemplo, entender porque o FUD é tão eficaz contra o conceito. Porque a GPL tanto irrita, atemoriza e desorienta quem tende a resistir a mudanças evolutivas que desafiam dogmas fundamentalistas predominantes no mercado de software, vitirne do capitalismo pós-industrial. A evolução deste mercado é inexorável e se encontra numa importante encruzilhada, com as bandeiras da PI "forte" e do copyleft apontando direções opostas para metas alegadamente as mesmas. Com o FUD a serviço da primeira, empenhado em borrar a segunda com desinformação, frequentemente seus atores e vítimas se confundem, pelo que, insisto, tais atores também podem se beneficiar de conhecimento nítido, para melhor valorar e judicar o papel social das TICs.

É fato que Nassif, tendo se engajado em construtivo debate agora com a comunidade do software livre, buscou e expressou melhor conhecimento sobre open source em posteriores artigos que escreveu sobre o tema. Mas nem todo leitor do seu primeiro artigo terá tido a oportunidade de acompanhar a evolução do seu discurso, no que esta análise procura contribuir.Comecemos, então, pelo que o copyleft não é. O copyleft não se opõe a nenhum regime de direito autoral de copyright. Não nega, não rejeita, não enfraquece a letra de suas leis, muito menos seu espírito. Isto são borrões.

O que podemos honestamente afirmar, e que mais se aproxima desses borrões, é que o copyleft subverte combinações do copyright com a lei do menor esforço. Copyright é um modelo de lei de direito autoral, establecido pela primeira lei do gênero, sancionada na Inglaterra em 1710. Nas jurisdições uniformizadas por tratado internacional do começo do século XX, do qual o Brasil é signatário, estas leis geram para o autor a liberdade de dispor sobre o usufruto e disponibilidade da sua obra, além de outros direitos que vigem na ausência de contrato particular para este fim, implicando em obrigações correspondentes para o usufruinte.

A idéia do copyleft é a de produzir-se, através de contratos de adesão, para jurisdições que garantam tal liberdade ao autor, algo como uma imagem especular das obrigações e direitos "default" do copyright, refletida sobre o eixo que os vincula entre contratantes, a partir daquilo que o copyright estabelece para casos em que um tal contrato particular inexista. O motivo? A alegada meta das leis de copyright, cada vez mais distante dos seus efeitos. Quanto mais essas leis se radicalizam, mais estimulam o negócio monopolizador da intemediação desse usufruto, e menos os seus benefícios sociais diretos ou a produção intelectual per se. Em outras palavras, na linguagem hacker se diria que o copyleft é um hacking do copyright. Um modelo para contratos de adesão que busca corrigir falhas sociais no direito autoral padrão, sem quebrá-lo na tentativa, modelo do qual resultam as quatro liberdades como eixo, e os treze artigos como corpo da GPL.

Diversidade transparente

Essas quatro liberdades foram (e são frequentemente) confundidas com o conceito. Mas não formam o conceito — são antes suas metas. O conceito de software livre está expresso na licença, que precisa ter dentes — a essência do copyleft — para se atingir tais metas. Doutra feita, esses dentes nada tem a ver com obrigações ou interdições de gratuidades ou cobranças, no mercado onde mordem. Esses dentes apenas invertem a natureza da relação jurídica que vincula, de um lado, um empreendimento interessado em suprir uma demanda, e de outro, sua mão de obra básica (programador ou outro empreendimento).

Para se entender esta inversão e consequências, há que se começar observando este vínculo no modelo hoje prevalente. Via de regra, este vínculo no modelo propritário é formado por uma relação trabalhista na qual o programador, em troca de pagamentos e promessas de ganho pelo seu labor (produzir código fonte), cede os direitos de autor e se compromete com o sigilo do resultado (cláusulas NDA). A partir desta relação básica, o empreendimento põe em marcha o seu processo produtivo.



 

Se o processo é industrial, o que constitui o grosso do mercado proprietário, programas em código fonte são especificados e agregados para consituir um software. O software é compilado para um formato que seja executável nos sistemas de destino, formando builds (versões). Aos builds se adiciona uma licença de uso (EULA), para constituirem a matriz de um "produto". Nas EULAs, o empreendimento é identificado como "autor do produto", o software enquanto espécimen (uma cópia de um build) é o objeto "as is" (sem garantias), e o software enquanto espécie (o código fonte que produz o build) é propriedade a ser protegida como segredo industrial e/ou negocial, à revelia de qualquer direito consumidor sobre o "produto licenciado". Às EULAs podem se agregar pacotes de integração e de fornecimento de suporte (aditivos contratuais geralmente de adesão), num regime cartelizado por credenciamentos controlados pelo empreendedor.

Sob o regime copyleft, muita coisa muda com a inversão do controle nesta relação jurídica básica, sobre a qual podem se fundar práticas negociais até nunca dantes navegadas. Mas jamais para lançar o objeto das licenças em domínio público, e seus usuários ao deus-dará, aos monstros que habitam o precipício no fim dos mares, como quer o FUD. Sob este regime o programador (ou empreendimento) retém, como autor, o direito de dispor sobre o usufruto de sua obra (programa), dispondo-a sob contrato de adesão que estabelece não só a liberdade irrestrita de uso do programa enquanto espécimen (exemplar executável), mas também as condições de usufruto do programa enquanto espécie (código-fonte), ou seja, também para empreendimentos de software que o incluam.

Conforme o grau de liberdade que tais condições geram para o licenciado, pode-se distinguir, como faz a Free Software Foundation, dentre tais licenças, as que se enquadram no regime copyleft das que são apenas open source. Ou pode-se juntá-las numa categoria que atrai o nome de "modelo livre", já que, com qualquer delas, o programador exerce suas liberdades de autor, controlando a forma como empreendimentos poderão dispor do seu trabalho intelectual, em troca da renúncia à necessidade de pagamento direto e antecipado ao retorno do seu labor, mas sem precluir tais ganhos. A tais licenças podem ser agregados pacotes de integração e de fornecimento de suporte, num regime de diversidade transparente, controlado pela livre competitividade premiada pela cooperação [3]. Em particular à GPL, que explicita o alcance deste direito de agregação até à esfera comercial, alcance que o FUD tenta borrar antonimizando software livre a "software comercial".

Erosão de direitos

Comparando empreendimentos sob o regime copyleft e sob o modelo proprietário, pode-se concluir que as diferenças se restringem às consequências da inversão no controle da relação jurídica entre estes e sua base de mão de obra. E estas diferenças podem ser entendidas como contrapesos aos poderes econômico e semiológico do empreeendedor, potencial ou real, balanceados pela autonomia daqueles que realmente programam, quando decidem usar sinergisticamente o poder do conhecimento que detêm, em precedência à lógica econômica racional do maior retorno econômico no menor tempo.

Pelo ângulo econômico do processo produtivo completo, a diferença fundamental estará nas métricas de eficiência. No modelo livre as métricas de longo prazo terão como referencial o usuário, e no modelo proprietário, o empreendedor. No primeiro caso, quanto mais barato o valor médio dos produtos e serviços, de qualidade e função equivalentes, melhor. No segundo, quanto mais caro, melhor. Quanto a isso, é salutar não nos iludirmos. Um modelo se guia por critérios sociais, enquanto outro, por critérios capitalistas de eficiência sob as distorções induzidas pelo estágio de monopolismo ou cartelização alcançado pelo correspondente segmento do mercado. O exemplo da privatização de serviços públicos como eletricidade e telefonia nos mostra como esta lógica funciona na prática.

O modelo livre oferece ganhos sociais através do impedimento prático à monopolização e cartelização na esfera dos empreendimentos, naturalmente abusivas, já que o licenciamento do software enquanto espécie, é livre. E, quando menos, ainda o será livre — ou mais livre — sob a cláusula essencial do copyleft (relicenciamento compatível com a licença original), talhada para preservar esta mesma liberdade. O modelo livre oferece mais equilíbrio na distribuição de riscos e barreiras entre os agentes da aventura virtualizante: programadores, empreendedores e usuários, em troca da renúncia à possibilidade de esquemas negociais socialmente abusivos.

Aos usuários, o modelo livre oferce a oportunidade de resgate das liberdades civis que vão se erodindo nessa aventura, principalmente direitos de conhecimento. Ou, como quer o filósofo Jaques Derrida, direitos de defesa da inteligência [7], atacada pelo modus negociandi do modelo proprietário através da supressão ao direito fiduciário de se saber como softwares intermedeiam a comunicação da personalidade civil do usuário da informática, num mundo onde os valores estão cada vez mais virtualmente representados. Ou, como quer o sociólogo Lucien Sfez, direitos de defesa contra a violência simbólica [8], aquela que leva a comunidade de usuários da informática aa entrar em um sistema de crenças (fundamentalismo de mercado) sem que seus membros percebam.



 

Não se trata de se querer impor um conhecimento inalcançável na prática, como se costuma borrar contra a filosofia do software livre e do open source, mas de se resgatar os direitos de acesso e de escolha dos intermediadores, face aos graves riscos de erosão de outros direitos no seu impedimento. O modelo livre oferece tudo isso como contrapeso e alternatva aos crescentes abusos de um regime de PI em rota de insanidade, borrados ao ponto de serem tidos por simples danos colaterais de um processo inevitável, a PI "forte". Enquanto o modelo proprietário oferece o que hoje prevalece por aí, já visível sem ou com as lentes obnubilantes do FUD.

Contra-reforma pós-moderna

Como mais nada muda além daquela relação jurídica básica e seus desdobramentos, e sendo o ser humano uniformemente criativo para equilibrar riscos e oportunidades quaisquer que sejam os pactos negociais envolvidos (entre programador e empreendimento, no caso), empresas quebram, e continuarão quebrando, sem privilegiar modelos negociais no mercado de software. Grupos desenvolvedores (distribuidores no modelo livre) seguirão se formando e desfazendo, quer se ocultem sob o guante de cláusulas NDA e no obscurantismo de EULAs, quer gravitem como comunidade em torno de uma marca, uma empresa ou um mantenedor de software livre. Larry Alisson, CEO da Oracle, afirma que por falta de sustentabilidade econômica nove em cada dez empreendimentos de TIC não passam de um ano, e essa taxa, insensível a modelos, só tende a aumentar. Suponho eu que devido à imprevisibilidade do efeito rede amplificado pela conectividade crescente.

E quando, diante desta quizumba, o usuário fica na mão, a diferença também vem do copyleft ou open source. No modelo livre a vítima terá o código-fonte com direito de nutri-lo, e poderá financiar por sua conta a evolução do software do qual depente. No modelo proprietário a vítima terá a caixa-preta com EULA, e poderá financiar por sua conta o próximo giro no torniquete da PI "forte" com que lhe garroteia o fornecedor, já que todo seu acervo digital estará representado em formatos que são propriedade intelectual deste fornecedor. Ou então a aposentaria de algum advogado contratado para tentar lhe tirar do seu cativeiro digital particular. Ou ambos. Por que Nassif desejou, no seu artigo em foco, atemorizar sujeitos indeterminados com a primeira ameaça, enquanto desprezava a segunda?

Ao observarmos que os critérios de eficiência dos dois modelos tendem a divergir, e a divergir em desfavor do modelo proprietário, devido principalmente à escalada de custos com litigação sob um regime de PI cada vez mais insano [1,2], fica claro porque o uso livre do poder do conhecimento de quem programa representa uma ameaça à ideologia da PI "forte". Também fica claro porque esta ideologia aponta, ao status quo monopolista das TICs, esta radicalização jurídica como o caminho de sobrevida que melhor capitaliza o poder econômico e político por ele já amealhado. Os sabichões que sabem melhor que o Presidente da República o rumo que deve seguir nossa res publica, poderão responder: quo vadis? Se mirarem sem as lentes obnubiantes que querem nos por nos olhos, verão uma paisagem sombria.

Tal caminho parece nos levar a uma nova contra-refoma, com sua pós-moderna reedição da Santa Inquisição. Com o dogma da auto-correção dos mercados desregulados (exceto para PI, é claro!) no lugar do dogma da infalibilidade papal. Com a internet no lugar da imprensa de Gutemberg. Com a autonomia semiológica, atirada ao mesmo saco que a pirataria digital, no lugar da heresia. Com os hackers, crackers, e livre-pensadores no lugar dos bruxos [4]. Com os escritórios de marcas e patentes, de lobbies de Hollywood e de Redmond, e de advocacia da PI "forte" no lugar dos tribunais de inquisição [1]. Com o frio fogo de ubíquos tubos catódicos queimando vivas a reputação e a persona dos neo-hereges sentenciados. Com o Mercado (existe um ou vários?) no lugar da Santa Igreja.

Confusão, curiosidade e charada

É a guerra cognitiva entre o livre comércio e o livre saber, como podemos observar no processo político e legistativo atual, na ação borradora do braço comunicativo desse poder, na profecia Orwelliana., etc. Loucura? o artigo de Nassif continua:

"Se quiser exportar software livre, a situação é mais complicada. Uma política de exportação pressupõe direitos autorais, patentes, licenças. Como trabalhar com um setor sem a proteção das patentes? Cada vez mais a teconologia e o software são produtos integrados, em que ações nacionais tem que levar em conta o mundo."

É difícil captar sentido nesta citação, diante do já exposto. O que seria "Exportar software livre"? Seria exportar mão de obra intelectual para teletrabalho? serviços agregados? licenças de uso? (um autor de software livre pode, havendo interessado, cobrar quanto quiser pela licença do primeiro exemplar, já que não terá concorrente de sua espécie exercendo o direito de livre distribuição). Ou combinações desses? Estaria o sentido da pergunta retórica ligado às assertivas anteriores, ou não? Se o autor declara a "situação complicada" porque opina que software livre não respeita direito autoral, não tem licenciamento nem proteção patentária, estaria levando os leitores a borrarem sua compreensão do assunto, a reboque das desastrosas confusões anteriores. Se o autor sabe que não é bem assim e se queixa apenas da falta de proteção patentária no setor do software livre, esta hipótese merece análise.



 

Mas para isso é preciso conhecer a conotação pretendida na pergunta retórica, já que ela pouco denota para os possíveis sentidos da citação. Se o autor pretende conotar que a falta de proteção patentária decorre das práticas negociais possíveis no setor de software livre, à luz das críticas que faz à atual política governamental, a intenção terá efeito borrativo, como veremos. Doutra feita, se o autor pretende conotar que a falta decorre, via de regra, do ordenamento jurídico vigente no Brasil, como é fato, seu engate na citação constitui apologia pelo adesismo ao lobby imperial para uniformização jurisdicional de regimes de PI "forte", através de tratados globais de "livre comécio". Nesse caso a intenção equivale a subliminar ideologização com o fundamentalismo de mercado.

Para justificar ao leitor a confusão que me assalta, recordo-lhes uma curiosidade. A mesma dúvida, sobre a conotação pretendida com esta mesma pergunta retórica, pairou, e persistiu após contatos diretos, no artigo do Jornal da Tarde em que a primeira fonte citada por Nassif, aquela dos chapéus ágeis, debocha em 2001 de uma poltica pública semelhante na França [6]. Mas para contribuir com mais análise, vou tentar me aproximar desta charada a partir do final da citação. Que tal se as ações nacionais, em particular a política pública para TICs do atual governo brasileiro, comecem por levar em conta, dentre os possíveis mundos, o jurídico? Isto já nos permitiria responder, primeiramente no particular, à fatídica pergunta.

Parte III

A lei brasileira sobre propriedade industrial é clara em relação à patenteabilidade de algoritmos (patentes de software). Se o setor em foco for o de software, a situação é a seguinte: a lei brasileira veda a concessão de patentes a algoritmos exceto se sua expressão em software destinar-se ao controle de algum processo industrial específico, no qual este processo seja o objeto principal da mesma proteção patentária. Softwares que controlam processos semiológicos, e não industriais, ou seja, softwares destinados a rodar com e para outros softwares ou usuários, em computadores ou hardwares genéricos, alcançam, como obra intelectual, apenas a proteção do direito autoral no ordenamento jurídico vigente no Brasil.

Em outras palavras: dentro do segmento de softwares explorados comercialmente, exportáveis e elegíveis alhures à proteção patentária, aqueles destinados a computadores ou hardwares genéricos estão fora do alcance da proteção patentária no Brasil. Sejam eles livres ou proprietários. Proponho rotularmos este segmento de "comercial", para distingui-lo de um complemento seu bem menor no mercado, o dos softwares protegíveis por patentes no Brasil, que chamaríamos de "industrial". As partições livre-proprietário e comercial-industrial são portanto indepententes, e a pergunta retórica neste particular ganha melhor foco. Em poucas palavras, uma coisa nada tem a ver com a outra. É só retórica (ou FUD).

Agora, a mesma pergunta em sentido geral. É fato que quem produz, distribui e negocia com software livre o faz, via de regra e em qualquer jurisdição, sem proteções patentárias. Portanto, é possível trabalhar nesse setor sem esse tipo de proteção, inclusive no Brasil, exportando consultoria e serviços, haja vista existirem empresas que ganham dinheiro com software livre. Tal qual besouros, que voam. Dessas, podemos citar a Conectiva, empresa originária de Curitiba e maior distribuidora GNU/Linux da América Latina. Para não falar de pesos pesados dentre as maiores empresas de TI do mundo, que sabem e querem trabalhar com ambos os modelos (IBM, HP, etc.). No modelo livre, uma empresa não precisa ser autora ou "proprietária" do software — enquanto espécie — para com ele negociar licitamente. Suas atividades estarão suficientemente amparadas pelo direito autoral, pela licença e pelos códigos civil e comercial.

Em mais detalhes: para ganhar dinheiro com software livre do qual não é o autor integral, basta ao empreendimento saber explorar a cessão de direitos com que os programas componentes de autoria alheia são publicamente distribuídos, além de conhecer seu código fonte o suficiente para ter o que agregar-lhe de valor semiológico, de sorte a justificar o valor econômico do que vende. E mesmo não sendo autor de um programa com o qual se trabalha, pode-se contentar em ser dois terços proprietário do mesmo, pois só a disponibilidade estará restrita sob copyleft: o empreendimento só não poderá disponibilizar trabalho dali derivado se a licença for incompatível com a original. Por sua vez, cada usuário se torna — ao contrário do modelo proprietário — cem por cento proprietário (mas não autor!) do seu espécimen do programa, já que a licença copyleft lhe outorga direitos de posse, usufruto e disponibilidade irrestritas sobre o mesmo.



 

Aliás, é possível trabalhar sem proteção patentária da mesma forma que se vinha trabalhado, em todo o mundo e com qualquer tipo de licença de software, durante os primeiros dois terços da história da informática. Ineficiências? A internet foi constituída por padrões abertos, opera por meio de softwares na grande maioria livres, poderia perfeitamente hoje operar só com softwares livres como nos primórdios, tudo isso sem nenhuma proteção patentária. De novo, os besouros. Os grandes avanços na ciência da computação ocorreram, em sua imensa maioria, enquanto o conhecimento nela produzido ainda era considerado científico, abarcado na tradição como cultura e portanto bem comum, antes que lobbistas e advogados da PI "forte" descobrissem a fórmula para o ouro alquímico da era digital.

Legalês e sigilo

Quem trabalha com software livre acreditando na sua filosofia não cobiça a proteção patentária: ao contrário, dispensa-a e evita-a. A filosofia do software livre recomenda que o autor evite codificar algoritmos com proteção patentária vigente, em qualquer código fonte a ser licenciado sob copyleft. E vai além. Recomenda que o autor evite contaminar seu conhecimento deitando a vista sobre código fonte proprietário ou protegido por patentes. Por que a paranóia? Certamente o problema não está no fato de a patente proteger direitos de exploração comercial, já que o regime copyleft não se opõe a isso, como poderá constatar quem se dê ao trabalho de ler a licença GPL (http://www.magnux.org/doc/GPL-pt_BR.txt).

O problema está na radicalização ideológica do conceito de PI. A essência da radicalização promovida pela ideologia da PI "forte" — a corrida pela proprietarização de idéias, no sentido jurídico e não cognitivo — e o jogo sujo que promove com os poderes econômico e político. Esse jogo é entendido, pela filosofia do software livre, como muito desconfortavelmente próximo de metáforas sombrias. Se o jogo com patentes de software fosse limpo, como supõe a ideologia fundamentalista de mercado, o movimento do software livre poderia simplesmente continuar dispensando a proteção patentária, e seguir seu rumo. Mas o jogo é sujo, e cada vez mais parecido com uma forma de terrorismo que age na esfera econômica.

Como saber se a idéia para escrever um trecho de programa poderia ser interpretada por um juiz como propriedade alheia, com escritura nalguma bula lavrada em hermético dialeto legalês, em uma das mais de 100 mil patentes de software registradas nos escritórios de patente do primeiro mundo, ou em uma das centenas de milhares que tramitam em sigilo, e que terão efeito retroativo à data de submissão, se concedidas? Um caso recente e emblemático desse jogo foi protagonizado por Leon Stambler, contado por Bruce Schneier em sua revista eletrônica Chrypto-gram de 15 de março de 2004 (http://www.counterpane.com/).

Munido de duas patentes sobre protocolos de autenticação digitais, Stambler vinha extorquindo empresas que comercializam software para segurança na informática. A análise técnico-jurídica das centenas de páginas de suas patentes custaria às vítimas mais caro do que as centenas de milhares de dólares que ele pedia, em troca da suspensão das ameaças. Mas quando Stambler ameaçou a RSA, a maior empresa de criptografia do mundo, por suposta violação das suas patentes no protocolo SSL, a vítima resolveu trucar. A RSA havia submetido seis patentes do SSL em 1994 nos EUA, que foram concedidas em 1997, enquanto as de Stambler haviam sido submetidas em 1992 e concedidas em 1999.

Como já dito, essas patentes são retroativas à data de submissão, apesar do processo transcorrer em sigilo. Quem submete o pedido é obrigado a publicizar apenas um resumo do pedido, que não pode ser modificado durante o trâmite da concessão. Stambler explorou uma faceta radical do processo patentário na jurisdição norte-americana, que permite que o pedido de patente em si possa ser modificado enquanto tramita, requerendo nova análise — sigilosa — a cada revisão. É a chamada patente “submarino”. Leo Stambler teve sete anos para cozinhar iterativamente suas centenas de páginas de legalês em sigilo, enquanto descobria as idéias que a RSA e outras empresas vinham implementando em softwares, e que poderiam se encaixar no resumo genérico do seu pedido de patente.

Se Stambler teve ou não teve que gastar mais de U$ 20.000 para cada revisão, dinheiro muito bem recebido pelo USPTO (escritório de marcas e patentes dos EUA), isso não vem ao caso. O absurdo nisso tudo é que a RSA provavelmente não conseguirá reaver o que gastou para enfrentar Stambler nos tribunais, o que corresponde a mais do que gastaria se aceitasse ser extorquida, e ainda, beneficiando suas concorrentes, que deixarão de ser extorquidas depois de desarmado o golpe de Stambler. Embora o golpe de Stambler possa parecer um caso isolado, não é. Existem muitas empresas de software hoje que só empregam advogados, que só fazem administrar carteiras de patentes, que só servem para criar barreiras artificiais à entrada de novos concorrentes no mercado de software proprietário.



 

Patente da roda

Cerca de metade das patentes de software que caem no foco de contenciosos jurídicos não resistem ao escrutínio do processo de litígio, acabando invalidadas por algum vício no processo de concessão. O que não deveria espantar ninguém, pois o vício não está no processo, e sim no conceito. Afinal, como pode o USPTO, ou qualquer outro escritório equivalente no primeiro mundo, arrogar para si a oniciência sobre todas as idéias que porventura já tenham sido antes expressas em algum programa de computador, ou neles aproveitáveis, ao declarar inédita, por meio da concessão de uma patente de software, uma idéia semiológica que tenha lhe sido descrita em hermético legalês?

Há um caso ainda não resolvido de ineditismo flagrantemente fraudulento em uma patente concedida à Test Central Inc, empresa que vem com ela extorquindo, à la Stambler, instituições educacionais que implementam mecanismos de avaliação à distância [9]. Porém, o caso mais hilário é o da chamada "fat lines patent", uma patente obtida pela IBM para um processo de plotagem interpolante de gráficos na tela do computador, descrito por Euclides há mais de 2300 anos na sua obra "Elementos", o primeiro livro de matemática herdado por nossa cultura ocidental. "Mas a proteção patentária é só por vinte anos", sofismam os ideólogos da PI "forte". Puro FUD. Expirada a "fat lines patent", basta reeditar a mesma idéia de Euclides em outro dialeto legalês: o caso descrito em seguida entrega o jogo.

Para mostrar a insanidade da radicalização promovida pela ideologia da PI "forte", um advogado australiano pediu recentemente o registro de patente do seu invento, que, depois de concedida, anunciou ele tratar-se da patente da roda. De fato, depois da dica, as quase cem paginas de legalês no seu pedido de patente parecem mesmo estar descrevendo a idéia da circularidade. [5]. "Mas isso invalida a patente!", desculpa-se a autoridade australiana que havia concedido a patente, enquanto acusa o advogado de má fé. Seja má ou boa a fé que moveu o advogado australiano, qual seria a moralidade da fé que move muitos outros em querelantes de bolsos fundos, como por exemplo, a SCO?

Idéias ganham valor quando compartilhadas, não quando possuídas. Trata-se de valor semiológico, seu verdadeiro bem intrínseco. Algoritmos são, por sua vez, idéias cujo valor é puramente semiológico. Economistas e advogados que crêem ter descoberto a fórmula alquímica para transformar títulos de propriedade de idéias semiológicas em rios de dinheiro, mas que não sabem o que é semiologia, poderão ter surpresas desagradáveis com seus cadinhos. Por acaso os bits fazem no chip alguma coisa que não possa fazer o lápis no papel, não importa quão devagar comparativamente? O que há de novo sob o Sol no que tange a gerência de filas, de arquivos e de recursos, com o advento dos sistemas operacionais, além da linguagem e dos parâmetros? Ou das quatro operações, no que linguagens de máquina dos microprocessadores eletrônicos lhes agrega?

O esquema de pirâmide da PI "forte" pode derreter a cera nas asas fundamentalistas do Ícaro pós-moderno, justamente quando o paraíso consumista estiver a um átimo. Quem abraça a causa do software livre, mesmo sabendo que o mundo é capitalista, não se sente seduzido por esse bonde celestial do neo-liberalismo. Se encanta mais com besouros. Uma política industrial que favoreça a produção de software livre serve para incentivar quem saiba, ou queira e planeja, ganhar dinheiro com o modelo livre. Não é para obrigar ninguém a aderir ao modelo, muito menos quem se deixa dominar por temor irracional do que ele representa, pelo temor que sepulta qualquer vestígio de aceitação da lei primeira dos mercados, a da competitividade.

Quem vê o mundo em atitude de respeito pela vida, e com olhos dignificantes em direção ao humano, está convencido de que todos, se não a imensa maioria, merecem uma oportunidade de mudança de rumo, pela chance de que seja para melhor. Algo que não ocorre sem reorientação de valores, o que se chama Política (com p maiúsculo: policy). Bem diferente de política com p minúsculo (politics), arte do más de lo mismo, da qual estamos nos fartando.

Parte IV

Más de lo mismo – I:

O Brasil gasta hoje mais de U$ 1 bilhão em licenciamento de software proprietário, e exporta U$ 160 bilhões, depois de anos de investimento no programa Softex, de incentivo a essas exportações. Alguém decide que o Brasil precisa exportar mais software, como faz a Índia. Há que se ter uma política industiral alocando ainda mais recursos, para "fortalecer" a indústria nacional de software. Outros afirmam que sim, mas sem qualquer mudança de rumo, o que seria temerário porque, dentre outros motivos, segundo Nassif

"significaria alijar o Brasil do maior mercado consumidor do mundo — que são os usuários da plataforma Microsoft."



 

Traduzindo: Por um ralo iriam 2 x 1 = 2 U$ bilhões anuais em licenças proprietárias, para, quem sabe, pelas contas de exportação no setor entariam uns 2 x 160 = U$ 320 milhões. O saldo iria de -840 para -1680. E a Índia? O que ela exporta em software hoje, e aos montes, é mão de obra que se compromete com o sigilo do seu próprio trabalho intelectual, cede o direito autoral do que faz, enquanto morde o fruto do conhecimento da propriedade intelectual alheia (o seu próprio trabalho). Caem, assim, sob a eterna danação do pecado original pós-moderno: se algum dia desenvolverem seus próprios programas, estarão manchados pelo pecado da pirataria, por fazerem trabalho derivativo da propriedade intelectual alheia!.

O governo da Índia se manca, e abraça, para si, o software livre.

Más de lo mismo – II:

O risco que representa o monopólio da Microsoft se torna consenso. Alguém lembra que o Brasil precisa se lembrar que existe uma coisa chamada soberania, essa coisa de essência que a revolução francesa transferiu da realeza para a res publica. Sugere ao Brasil usá-la para dizer ao mercado o que ele, Brasil, entende por software, e como quer contratar os softwares dos quais precisa. Mas aí vem um outro e diz que, com essa coisa chamada mercado, há que se falar na linguagem dela. E que ela não sabe o que é soberania alheia. Então, juntam-se fontes especialistas, lêem alguns tratados alquímicos de economistas monetaristas, e, depois de alguns exercícios mentais, alcança-se uma visão messiânica, onde a luz aparece ao fim do túnel, a ser anunciada por Nassif:

"o caminho mais adequado seria combater a empresa no campo do direito econômico. O episódio da UE, de aplicar uma multa bilionária à Microsoft, é fundamental. …tratar os produtos da Microsoft como utilities. Ou seja, reconhece-se que, por fundamental e monopolista, não se pode deixa-los subordinados às leis de mercado…os produtos teriam os preços monitorados, com margens reguladas de lucro…Mas esse caminho teria que ser procurado no campo do direito internacional"

Não sei se entendo, mas vou tentar traduzir: Nessa visão, o rato-governo sairia da toca para pendurar o sino no pescoço do gato-monopólio. O rato mais encrencado com os agiotas globais, que manipulam juros com seus índices de confiança, no gato que amealhou a maior riqueza no menor tempo, em toda a história do capitalismo. E o modelo livre? Nessa visão, sua adoção aparece como uma atitude temerária, com profundos desdobramentos negativos. O rato estaria cometendo uma loucura se trocasse o sino pela liberdade.

Más de lo mismo – III:

Alguém, que se lembrava dessa coisa tipo soberania, propõe, negocia e aprova, em 2002, uma lei estadual, no Rio Grande do Sul, que estabelece a preferência do governo estatual pelo software livre em licitações públicas. Mas aí, depois da troca de partido político no governo estadual, um terceiro partido, envolvido com o sutatus quo do mercado da informática, ajuíza ação direta de inconstitucionalidade contra a lei, com pedido de liminar, contando com a apatia — ou simpatia — da atual gestão, ré no processo.Na corte constitucional , o ministro relator vota pela concessão da liminar, no que é seguido pela turma de magistrados. Ao explicar o terceiro dos seus três argumentos favoráveis à concessão da liminar, o relator teria afirmado:

"A lei (do Rio Grande do Sul) estreita contra a natureza dos produtos que lhe servem de objeto normativo, os bens informáticos"

Novamente, não sei se entendo, mas me esforço: Primeiro, não entendo como preferência estreitaria a natureza do que quer que esteja sob escolha. Preferência não é, em nenhum dicionário e nem de perto, sinônimo de veto ou impedimento. Minha — e acredito também a de muitos — preferência por loiras nunca estreitou-me a apreciação e o gozo da beleza morena. Segundo, data venia sr. ministro relator, com todo o respeito ao vosso intelecto e ao dos vossos pares, V. Sa. pode entender tudo de leis jurídicas, mas isso não o qualifica automaticamente como entendedor de softwares.

Muito menos se fiar-se apenas no filtro obnubilante do FUD para eventuais tentativas. O ministro Joaquim Barbosa, que já foi advogado do SERPRO, tentou convocar técnicos para explicitar a diferença entre software livre e não-livre, mas foi voto vencido, enquanto o réu fazia corpo mole na defesa. Daí, o ministro relator veio a confundir duplamente, em seu terceiro argumento, software e negócio com software, o que me parece, pelo pouco que conheço do idioma que permite a brasileiros leigos e doutos em Direito se comunicarem, mais ideologia fundamentalista do que técnica ou lógica jurídica.

Software livre em nada estreita contra a natureza dos produtos que constituem bens informáticos, muito ao contrário. Aquilo que o conceito de software livre estreita, são modalidades de contratação de certos bens informáticos (a saber, uso, reuso de código e serviços com software), não a natureza ou tipo destes. E este estreitamento visa, justamente, ampliar a natureza desses bens, natureza que se resume, no caso do software, ao seu valor semiológico. Ou seja, ao seu valor funcional de prótese humana para comunicação e/ou computação em meio virtual. Qualquer software, já feito ou por se fazer, pode ser livre sem que tal modalidade atente contra sua natureza ou tipo, ao passo que, não sendo livre, este fato é que atenta, como restou explicado nesse texto, contra sua potencial natureza.



 

Isto porque:

O tipo do software é caracterizado por sua função técnica, de cunho comunicacional e computacional, ditada pela lógica do seu código fonte.

A natureza do software é caracterizada por sua função semiológica, de cunho relacional entre função técnica e práticas socias, ditada pela semântica deste mesmo código.

A modalidade de contratação do software é caracterizada por sua função comercial ou "consumista", de cunho sócio-econômico, ditada pelo instrumento jurídico que licencia o mesmo.

A classificação "livre" (pretendida pela lei gaúcha e similares) se aplica a licenças de software, lavradas em código inteligível à máquina jurídica, e não à natureza ou tipo de softwares, lavrados em código inteligível a microprocessadores eletrônicos.

Para que o software seja livre, basta que o autor ou seu preposto proponha, para licenciá-lo, um contrato de adesão modelado no conceito de copyleft, valorizando suas funções semiológica e social, independentemente de sua natureza ou tipo. E para que o software não seja livre, basta que o autor o licencie de outra forma. A quem contrata software de um determinado tipo e natureza cabe, por sua vez, aceitar ou não este ou aquele contrato, que será necessariamente de adesão se o software for "de prateleira", ou negociado se o software for "de encomenda". Havendo escolha no mercado, a seleção entre contratos pode embutir uma escolha de modalidade contratual, quaisquer que sejam os critérios julgados pertinentes. E não havendo escolha embutida, certamente que preferência alguma por modalidade contratual poderá ser exercida, não sendo "preferência", nem de longe, sinônimo de veto ou impedimento.

Guerra contra a inteligência

Por que o Estado, mesmo em instância adequada, estaria impedido de se pronunciar sobre preferência pela modalidade de contratos que sejam eventuais objetos licitatórios, devido à camuflagem desses contratos como idênticos aos objetos que licenciam, e ao travestimento do conceito de preferência por semântica injustificadamente vulgar? Esta vulgaridade, injustificada principalmente quando emana da mais alta corte do país, certamente trará suas consequências neste caso. Com a lei gaúcha suspensa por liminar, os atuais administradores estaduais no RS, e aqueles atingidos pela jurisprudência eventualmente gerada a partir desta decisão, estarão livres para comprar o que bem entenderem, com quem desejar, sem respeitar qualquer critério, à guisa de "licitação de bens informáticos", igualados que foram o negócio e seu objeto na justificativa da sentença liminar, enquanto esta justificativa se sustentar.

A farra borrativa que o status quo promoverá com tal sustento se encarregará de estimular administradores a continuar com as mesmas velhas práticas licitatórias dirigidas, já diversas vezes repreendidas por tribunais de contas estaduais e da união. Práticas que permitem, com a adequada blindagem de falaciosos critérios de inexigibilidade concorrencial, construídos sobre argumentos borrados como acima e assoprados pelos ventos monopolistas e monopolizantes do status quo, o abrigo fácil de nefastos canais invisíveis. Tanto finaceiros, para desvio de verbas públicas, quanto semiológicos, para perpetuação do cativeiro digital erquido pelo modelo proprietário. Diante do meu desentendimento sobre um tal modus judicandi, busco outros dados no contexto mais amplo em que se assomam a minha estupefação e tal terceira justificativa, para aliviar meu angustiante estado de confusão. O que posso encontrar?

Vejo que o partido querelante é justamente aquele cujo presidente está pessoalmente empenhado em abafar a CPI do Banestado, que investiga desvios de verbas públicas estimados em mais de U$ 30 bilhões. Presidente este que passou a posar de vestal com o espetáculo midiático do caso Waldomiro, que difama justamente a mais alta figura do governo federal a bancar a atual política governamental para TICs. Política à qual se amolda em espírito a lei gaúcha, temporariamente suspensa em sua letra pela corte constitucional em 18/04. Corte esta que virá, a partir de maio, a ser dirigida por um ministro que confessou, de público, ter quietamente adulterado, enquanto à época deputado constituinte, entre votação e aprovação legislativa, a nossa Lei Maior, cuja proteção e guarda é missão dos seus ministros. Ministros estes que, em sua maioria, repelem qualquer tentativa legislativa de se instituir controle externo sobre o poder judiciário, único poder da nossa res publica não controlado pelo processo eleitoral. Processo eleitoral este dirigido por um desses ministros, quem, no exercício e ao justificar de público a ação manipulativa do seu colega, insinou como talvez desnecessária, supérflua ou inútil a tal missão:

Cito-o in verbis, para encerrar, conforme o diário de maior circulação na capital federal [10]:

"O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Sepúlveda Pertence chegou a brincar com a situação [manipulação da Constituição]. ‘Estou torcendo para que apareça o artigo 102; aí, a gente arquiva os processos todos’, afirmou, citando o artigo da Constituição que define atribuições do Supremo" [Tribunal Federal]

Já que a lógica do poder é mesmo macabra, resta-me lastimar que o ministro não tenha torcido para arquivar somente o processo contra a lei gaúcha e congêneres.

Entendendo ou não, meu caro leitor, isto ou aquilo, a culpa não é da atual política governamental para TICs. É da guerra contra a inteligência, de que fala o filósofo Jaques Derrida. Ou, em palavras mais simples (para as vítimas da guerra), a culpa é dos besouros, que não deveriam voar. Quanto à política, a do governo federal para TICs é com p maiúsculo.

v2. 21/04/04

Bibliografia

[1]- Rezende, Pedro A D: "Governo, Informática, Conhecimento: Quais as relações possíveis?"

Semana do Software Livre no Legislativo, Congresso Nacional, agosto de 2003,

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/ssl_senado.htm

[2]- ___________. "O caso SCO x IBM"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fisl2003.htm

[3]-____________, "A GPL é compatível com as leis brasileiras?"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/debate_sl.html#comp

[4]-____________, "Bruxos pós-modernos e a neo Inquisição"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/beting.htm

[5]- CNN World: "Man seeks sqare deal, patents wheel"

http://edition.cnn.com/2001/WORLD/asiapcf/auspac/07/02/australia.wheel

[6]- Meira, Silvio: "Software aberto à francesa",

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/francesa.htm

[7]- Duarte-Plon, Leneide: "A mídia segundo o filósofo",

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=272TVQ001

[8]- Sfez, Lucien: "As tecnologias do espírito", em "Para navegar no século 21",

Ed. Francisco M Martins, EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999

[9]- Carnevale, Dan: "Company Claims to Own Online Testing"

Politech list, http://politechbot.com/pipermail/politech/2004-March/000555.html

[10]- "Ação contra Nelson Jobim". Correio Braziliense, 10 de outubro de 2003, pp. 6.

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