Questão de atuação

O superego do Ministério Público no caso Waldomiro Diniz

Autor

1 de abril de 2004, 15h35

Autoridade pressupõe poder; poder, responsabilidade; responsabilidade, humildade. Verificando o formato da democracia, nota-se claramente uma pulverização do poder e, conseqüentemente, da autoridade. Sua nota característica. É assim para que ninguém abuse, ninguém possa aniquilar. A legitimação de toda autoridade reside, exatamente, na conformação ao contexto. Fora de esquadro não há autoridade, não há poder legítimo. Na Enciclopédia Digital Master On-line (http://www.enciclopedia.com.br/MED2000/pedia98a/soci24ja.htm), a partir do verbete “autoridade”, encontra-se interessante discurso sobre a importância do contexto no exercício do poder: “(…) a idéia de autoridade pode ser resumida como um poder fortemente estabelecido, legítimo e limitado. É poder porque influencia o comportamento de outros, e forte porque é capaz de impor-se quando questionada. É legítima porque suas qualidades são tidas como verdadeiras e dignas de confiança. É limitada porque estas qualidades que lhe conferem legitimidade só são aceitas em contextos específicos, de acordo com os papéis envolvidos. Um guia só será respeitado enquanto não soubermos o caminho, um soldado só obedecerá ao oficial enquanto estiverem ambos em serviço, e um fiel acatará a sugestão do padre apenas enquanto esta envolver assuntos religiosos. Fora de seus limites, a autoridade do guia, do oficial, do padre ou do pai desaparece junto com sua legitimidade. Suas qualidades não mais são vistas como imprescindíveis”.

A responsabilidade no exercício do poder depende de consciência da limitação do próprio poder a um determinado contexto e finalidade. Essa consciência, por outro lado, depende fundamentalmente de ausência de arrogância. Num país rico e cujo povo historicamente foi submetido à pobreza e à ignorância, a arrogância encontra ambiente favorável para se multiplicar, infelizmente.

Essa deve ser a primeira lição a ser assimilada a partir da nova e obscura fita do caso Waldomiro Diniz, divulgada pelo “Jornal Nacional”, que revela conversa nada ortodoxa, na calada da madrugada, entre um subprocurador da República e o empresário de loterias Carlos Cachoeira.

E podemos falar sobre isto com todo conforto, porque em estudos anteriores ressaltamos a importância fundamental do Ministério Público na defesa da ordem jurídica e das coletividades. Mas, como todo poder, quando se desvia da noção de responsabilidade, é porque algo convida à reflexão.

Miguel Reale, criticando a atuação do Ministério Público na defesa do meio ambiente, por exemplo, pontuou: “(…) Tenho tido notícia de tão exageradas e descabidas defesas do meio ambiente que, se eles tivessem prevalecido na história do povoamento e desenvolvimento do Brasil, ainda estaríamos vinculados às estreitas fronteiras do Tratado de Tordesilhas…” (O Estado de São Paulo, Espaço Aberto,13/03/04).

Na revista Veja desta semana, a propósito de criticar a paralisia da máquina do Governo, a questão ambiental, ou melhor, as autoridades nessa seara foram também lembradas como um entrave ao desenvolvimento nacional: “Em Mato Grosso do Sul, existe uma mina de ferro e manganês que vem sendo explorada desde 1908. Hoje em dia, ela está sob o comando da Vale do Rio Doce, mas seus 500 trabalhadores estão prestes a entrar em férias compulsórias. Isso porque a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, cancelou a licença de exploração até que a Vale pague uma compensação por danos ambientais. Coisa de uns 4 milhões de reais. Na Justiça, a empresa ganhou o direito de renovar a licença de exploração da mina independentemente do pagamento da compensação ambiental. O Ibama, porém, reafirma que uma coisa está ligada à outra – e passado um ano nada se resolveu” (pág. 42).

De fato. A arrogância de certas autoridades brasileiras, possivelmente resquício das duas décadas de ditadura, pode ser um sinal, ainda, de imaturidade política que urge ser enfrentada.

Valter Uzzo, que dispensa apresentações pelos importantes serviços prestados à Advocacia, certa feita, queixando-se da redução do quadro de funcionários da Justiça do Trabalho, também desabafou contra o nosso ranço de autoritarismo: “Para piorar as coisas ainda mais, está se alastrando, cada dia mais, a tal “juizite”, a doença da arrogância, que faz corroer o espírito de cordialidade, respeito mútuo, justeza, equilíbrio e sensatez entre as partes e tão necessários, mormente aos agentes do Estado-juiz, que têm a missão da entrega equilibrada da prestação jurisdicional” (Crise no Judiciário – Agilidade é prejudicada por falta de funcionários” – http://www.conjur.uol.com.br).

Assim como a “juizite”, a “emepetrite” (a doença da arrogância no ambiente do Ministério Público) e tantas outras mutações do mesmo vírus desafiam o exercício da autoridade com humildade e desejo de servir à sociedade (pois o contrário, a autoridade servida pela sociedade, evidentemente não pode ser aceito).

Problema puramente de ego, pois nenhum ser humano nasce mais importante ou mais poderoso do que outro, não em um regime republicano e democrático. A autoridade é um encargo assumido (ou melhor, confiado) ao longo da vida, mas não pode ser confundida com a pessoa que a exerce, até porque esse exercício é sempre temporário. Temporário e falso como o próprio ego. É apenas um papel, como outro qualquer, a ser desempenhado e não incorporado.

SOGYAL RINPOCHE (O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, Ed. Talento, São Paulo, 1999, pág. 159) exemplifica a falsidade do ego: “Imagine uma pessoa que subitamente acorda num hospital depois de sofrer um acidente de carro na estrada, e percebe que está com amnésia total. Por fora, tudo está intacto: ela tem o mesmo rosto, a mesma forma, os sentidos e a mente estão lá, mas não tem a menor idéia ou o menor vestígio de memória de quem é. Exatamente do mesmo modo, não conseguimos nos lembrar da nossa verdadeira identidade, nossa natureza original. Freneticamente e na realidade apavorados, procuramos e improvisamos outra identidade, uma em que possamos nos agarrar com todo o desespero de alguém que vai cair num abismo. Essa identidade falsa e assumida em ignorância é o “ego”.

Dizem que o sentido da democracia se aprende exercitando-a. Se for assim vamos chegar lá. Mas por enquanto haverá muitos sectários do “Você sabe com quem está falando?”

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!