Sigilo bancário

Contradição entre a LC 105 e a Carta Magna ainda não foi resolvida

Autor

  • Renato Poltronieri

    é advogado de Demarest e Almeida Advogados especialista em Direito Público mestre em Direito Constitucional Político e Econômico e doutorando em Direito pela PUC de São Paulo.

8 de setembro de 2002, 16h34

Por mais que o tema possa estar sendo assimilado nos meandros da teoria do direito e estar passando pelo crivo do poder judiciário, persistem dúvidas, jurídico-teóricas, ainda insuperadas, sobre a constitucionalidade ou não da Lei Complementar (LC) nº 105/00, diante do conceito constitucional de cláusula pétrea, posto que não se pode negar o caráter político de algumas normas aprovadas, bem como de alguns julgados, quando o objeto principal tratado nas normas e nos julgados remete a questões tributárias.

Iniciando nossa crítica construtiva sobre o tema, cabe lembrar que a LC nº 105/00, dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, dando outras providências, que dentre elas, a mais peculiar, apresenta a faculdade da administração tributária da União (inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor movimentados pelos contribuintes) receber das instituições financeiras, definidas na norma, informações referentes às operações efetuadas pelos usuários de serviços bancários, como por exemplo os:

I- depósitos e resgates, inclusive em conta de poupança,

II- pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques,

III- emissão de ordens de créditos,

IV- contratos de mútuo,

V- descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito, dentre outras operações.

Uma definição simples de cláusula pétrea, dentre tantas possíveis, pode ser a de determinação constitucional material, rígida e permanente, insuscetível de ser objeto de qualquer deliberação e/ou proposta de modificação pelo Poder Legislativo, principalmente, ainda que por emenda à Constituição Federal (CF) (tipo legislativo que altera a CF; é norma superior no escalonamento normativo constitucional à LC), malgrado o poder constitucional derivado.

É possível notar aquela definição ao se analisar o texto do art. 60, parágrafo 4º, da CF/88. Como se apresenta pacificamente na doutrina e jurisprudência brasileira, não podem ser objeto de deliberação a proposta de Emenda à CF (Poder Constitucional derivado):

I- o voto direto, secreto, universal e periódico;

II- a separação dos poderes;

III- os direitos e garantias individuais, que, especificamente para esse texto, são consubstanciados no art. 5º da CF.

A inconstitucionalidade da norma, se ocorrente, já existe antes mesmo de um projeto de Emenda Constitucional transformar-se em norma vigente, tendo em vista que o mero processamento já afronta à ordem constitucional em vigor, ou seja, a própria Constituição.

Diante desse contexto normativo-teórico, como será a forma jurídica acertada de se analisar e interpretar LC nº 105/00, que dentre seus feitos, mesmo diante de um “procedimento administrativo definido em Lei”, permite a quebra do sigilo bancário do contribuinte, sem autorização prévia do Poder Judiciário, afrontando preceitos de direito fundamental de inviolabilidade da intimidade, do sigilo da correspondência, comunicações telegráficas, de dados etc. (traçadas no art. 5º, X e XII) que estão definidos, por determinação constitucional, como inalteráveis por constituírem cláusula pétrea?

Cabe salientar, diante da complexidade da matéria, que o Estado democrático de direito constitui-se pela conjugação de seus elementos principais como povo, território e governo, especialmente pelo respeito aos ditames legais, no que diz respeito a um governo legítimo, submisso à ordem normativa e obediente aos princípios democráticos e constitucionais, independentemente dessas considerações soarem como retórica, diante da situação jurídico-normativa que o Estado brasileiro assimila.

Nesse sentido, a relação concernente ao conceito de cláusula pétrea e a proteção do sigilo bancário e fiscal, uma das garantias e direitos individuais, concedida “petreamente” pela CF, está servindo de exemplo de corrosão do sistema normativo brasileiro, afora expressar, como por exemplo, a voracidade de se arrecadar, desmedida em proporções e, agora também, em procedimentos.

Indaga-se: poderia proceder a afirmação de que o sigilo bancário e fiscal, sem a referida LC, não poderia ser quebrado?; ou se o sistema normativo nacional, pretérito à ela, não bastava para alcançar o sonegador, tendo em vista que o sistema jurídico nacional permite que a autoridade fiscal, demonstrando a existência de indícios, recebesse do Poder Judiciário a tutela para sua completa investigação (de acordo com art. 5º, XII, CF/88)?

O que o sistema jurídico abarca é a segurança irrestrita dos indivíduos, é a sua proteção, principalmente pelo art. 5º da CF, e não o sonegador. Ser sonegador, em princípio, deveria ser exceção. Em sendo assim, a violação de sigilo bancário e fiscal também, como constitucionalmente é tratado. A proteção específica serve para o contribuinte proteger-se contra o arbítrio, contra a perseguição de qualquer natureza.

Mesmo a regulamentação da LC nº 105/00 pelo Decreto federal (nº 3.724/01), relacionando as hipóteses e o procedimento em que as informações bancárias possam ser solicitadas e entregues ao fisco, sem autorização judiciária prévia, não presta qualquer constitucionalidade ao procedimento administrativo, pois a análise deve ser pautada sob o aspecto maior da violabilidade de dados, independentemente de sua regulamentação.

Veja-se o artigo 145, parágrafo 1º, da CF que determina que o fisco poderá identificar, respeitados os direitos individuais (art. 5º X e XII), nos termos da “Lei” (?), o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

A interpretação possível do alcance da LC nº 105/00, de acordo com o sentido da norma, por uma interpretação dedutiva, pára em “respeitados os direitos individuais”, pois os termos da “Lei” a que se refere o art. 145, parágrafo 1º/CF, diz respeito ao procedimento de se identificar na norma. desde que não contrarie aqueles direitos individuais determinados, como supracitado, em nossa Constituição. Se a identificação normativa os contrariar, não deve prosseguir; se o procedimento normatizado também o fizer, não pode permanecer no mundo jurídico.

Diante dessa reflexão teórica-dogmática acerca da preservação do sigilo fiscal e bancário do contribuinte, seria oportuno discutir-se as práticas jurídicas possíveis para defender-se ou questionar-se a constitucionalidade da LC nº 105/00, diante do conceito de cláusula pétrea e frente ao perigo de sua assimilação no núcleo administrativo e social, pela inércia crítica.

Cite-se, como exemplo, a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, conforme disposto na CF/88. Ao que parece, apropriado não só rever as reflexões de direito material, que se esvaecem, mas também as de direito processual, como uma das formas de se preservar aquele. No entanto, isto é tema para um outro debate.

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    é advogado de Demarest e Almeida Advogados, especialista em Direito Público, mestre em Direito Constitucional, Político e Econômico, e doutorando em Direito pela PUC de São Paulo.

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