O senhor juiz

Marco Aurélio não se curva a patrulhamentos, diz Luís Nassif.

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28 de março de 2002, 14h18

O ministro Marco Aurélio de Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), é um sujeito polêmico, como costumam ser as pessoas com compromisso exclusivo com suas próprias convicções. Não se curva a patrulhamentos do governo nem da oposição e, suprema coragem, nem da opinião pública nem de sua própria corporação.

É um legalista na acepção ampla do termo, como o é FHC, independentemente dos erros que ambos cometem e possam vir a cometer. São dele a condenação da humilhação imposta aos líderes do MST e ao ex-senador Jader Barbalho e a crítica ao excesso de Medidas Provisórias. Como é dele a afirmação de que a ação de revista da Lunus (a empresa de Jorge Murad) foi inteiramente legal e não passou por Brasília.

A juíza Sandra de Santis é feita da mesma massa. É dela a sentença considerando que os rapazes que assassinaram o índio Galdino não cometeram homicídio doloso, isto é, não tinham intenção de matá-lo.

Ambos têm duas coisas em comum: são marido e mulher e não temem o clamor das ruas.

Quando a sede de sangue da turba toma as praças e as manchetes de jornais, quando o Brasil moderno se torna bárbaro em torno dessas unanimidades ignorantes, o casal está lá, firme nas suas convicções e levando paulada de todo lado.

Há uma diferença na sua preparação para a guerra. A juíza Sandra se recusa a ler jornais para não ter sua saúde afetada. O eco das ruas vem através do que os filhos ouvem nas suas escolas. De fígado de aço, o ministro prefere ler tudo o que sai para poder entender a lógica da turba e agir pedagogicamente sobre a selvageria.

Se você não tem idéia do que significa investir contra a turba, faça um pequeno teste. Pegue no auge um desses temas em torno dos quais se forma a unanimidade e faça alguma ponderação que não seja de adesão total à turba. Você verá a ferocidade estampada nos olhos dos demais. Quanto mais medíocre o linchador, maior a sua ferocidade. Ele não procurará brandir argumentos ou discutir. Ele tem o seu argumento, e que ninguém ouse confrontá-lo. Não acatará o conhecimento técnico nem respeitará a opinião alheia. Sua arma é uma só: todo mundo pensa assim, logo é assim o certo.

Escudado na maioria, descarregará suas frustrações pessoais, seus fracassos individuais. Sua sanha, sua sede de sangue se propagará por todos os cantos. A mídia lhe dará atenção porque julga que ele é maioria, não cabe a veículos de massa ir contra a maioria e nem existe uma cultura civilizadora em sua ação.

Para atender a essa sanha, programas populares de TV lincharão o culpado, revistas tidas como de nível o chamarão de “monstro”, jornais ocultarão indícios que possam amenizar a imagem do culpado. É como em um bar, onde o álcool ajuda a criar essa unanimidade macabra. E o país inteiro se unirá em torno dessa catarse, da mesma maneira que as tribos bárbaras em torno dos sacrifícios rituais.

Agora coloque-se no lugar do juiz que terá de dar a sentença. É nesses momentos agudos que sobressai a figura do magistrado Marco Aurélio de Mello, não apenas a do juiz da mais alta corte mas a do mestre, a pessoa com compromisso exclusivo com os ensinamentos e com os princípios.

Muitas vezes Marco Aurélio se precipita, pisa no tomate, especialmente ao se pronunciar sobre temas que não constam dos autos. Se estudasse melhor a história recente do MST não viria com esse argumento de que a ação de invasão da fazenda do presidente da República visou dar voz às demandas legítimas dos sem-terra. Solicita-se que, antes da próxima manifestação sobre o assunto, converse com especialistas ou, melhor que isso, que visite as regiões invadidas.

Mas, quando se insurge contra a humilhação imposta aos membros do MST, é a voz dos direitos individuais que se ergue de forma intrépida. E, quando o secretário-geral da Presidência, Arthur Virgílio, com sua truculência amazônica, rebate que não faz diferença a maneira como os líderes do MST foram detidos, percebe-se que FHC conseguiu, a exemplo de Marco Aurélio, exercer uma profunda ação pedagógica sobre a opinião pública. Mas não conseguiu educar os seus.

Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2002.

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