Violência econômica

Costa Leite fala sobre a exclusão e o desrespeito ao judiciário

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26 de março de 2002, 21h10

O aumento do quadro de exclusão social e o desrespeito às decisões judiciais por parte da administração pública são os principais obstáculos ao aperfeiçoamento da democracia brasileira. A afirmação é do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite ao ser condecorado pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul com a Ordem do Mérito Farroupilha, principal comenda do Estado.

O presidente do STJ também citou a violência econômica como fator de desigualdade e desagregação.

Ao concluir seu discurso na Assembléia Legislativa gaúcha, Costa Leite defendeu o fortalecimento do Poder Judiciário como necessário à concretização dos anseios sociais.

(Leia notícia sobre possível candidatura de Costa Leite para a vice-presidência da República).

Veja a íntegra do discurso do presidente do STJ

“É com indisfarçável orgulho que compareço a esta augusta casa de representação popular, de onde emanam as normas para a convivência harmônica de um povo livre, forte, aguerrido e bravo, um povo sobretudo virtuoso — vívida imagem do hino do nosso Rio Grande.

Nestas plagas tão amadas, quando intrépido sopra o minuano, arauto da liberdade, alma irmã da gente farroupilha, parece trazer ecos de um passado secular em que idealistas, mostrando valor e constância na ímpia e injusta guerra, bradavam: “…sirvam as nossas façanhas / de modelo a toda a terra.”

Gaúcho de nascimento e de paixão, é nesse espírito, nessa têmpera que tenho as minhas origens e, embora distante do torrão natal, aqui conservo as raízes, fazendo-me partícipe da nova página que escreve o Rio Grande do Sul na epopéia do Brasil contemporâneo.

Hoje, quando recebo da Assembléia Legislativa da minha terra tamanha honraria, estou certo de que os meus coestaduanos, pelos lídimos representantes, excederam-se em generosidade ao me homenagear duplamente: o Grande Expediente Especial e a outorga da Medalha do Mérito Farroupilha.

A láurea, em si, constitui honra que extrapola os meus merecimentos. Todavia assossega o meu espírito saber, pelo julgamento da própria consciência, que a toga que envergo no Superior Tribunal de Justiça – razão maior da alta distinção – é ornada com os timbres da dignidade e do trabalho.

O momento é um convite à reflexão, virtude que ativa o exercício do juízo crítico e aguça a faculdade de discernir horizontes. E é quando se discernem horizontes, como o fizeram e fazem os farroupilhas, que se operam a metamorfose social e o progresso e se conquista o “único valor imperecível da história”, a saber, a liberdade, na concepção de Albert Camus.

Nessa reflexão, vejo-me engajado na luta que revela a aversão às desigualdades sociais, ao desrespeito aos direitos humanos e ao primado da lei, à violência, e a tudo aquilo que posterga, mais e mais, o sonho do brasileiro de usufruir a verdadeira cidadania, sem exclusão.

Foi com essa visão, atento ao papel ativo do juiz no processo de transformações sociais, que, há dois anos, assumi a Presidência do Superior Tribunal de Justiça. Na ocasião, roguei a Deus que não me deixasse faltar coragem e obstinação para arcar com a hercúlea responsabilidade de dirigir a Alta Corte, hoje reconhecida como o Tribunal da Cidadania.

Senhoras e Senhores:

A despeito das expressivas conquistas em favor dos direitos civis e políticos, o Brasil, infelizmente, ainda vivencia uma preocupante degradação dos direitos econômicos e sociais, com reflexos nos direitos humanos.

Um rápido apanhado dá-nos conta dessa verdade. Grassa a violência em suas múltiplas formas. Resultado de uma fragilizada, ou melhor, inexistente política de segurança pública, convive-se hoje com o medo. É triste constatar a agonia experimentada pelos pais aguardando a volta dos seus filhos sãos e salvos ao recesso do lar. Há territórios livres para a ação impune da criminalidade.

A reação do Estado não pode mais tardar. Dentre as muitas ações urgentes, é fundamental que o controle do sistema penitenciário brasileiro seja transferido das mãos dos comandos do crime organizado para as mãos das autoridades. É preciso dar um basta ao descaso, à incompetência e à corrupção que levaram a tão deplorável situação, perante a qual o aparato estatal se vê desmoralizado.

Assola-nos, ainda, a violência econômica: os índices de pobreza crescem de modo avassalador. No Nordeste, especialmente, região das mais carentes da Federação, crianças e adolescentes, arrimos de família, trabalham nos canaviais, em regime semi-escravo, subnutridos, sem direito sequer à educação fundamental. Se volvermos os olhos para os viadutos e terminais rodoviários, lá estarão crianças famintas, na escola da prostituição e da criminalidade, mendigando o pão que, por direito, lhes é devido. O desanimador quadro nos leva a perceber a premência de se reorientar a discussão sobre o modelo sócio-econômico ideal para o Brasil.

Em plena era dos direitos, tudo isso desperta justa indignação em tantos quantos sonham com uma nação próspera em que sejam respeitados os direitos dos cidadãos.

Como se pode conceber a idéia de um verdadeiro Estado democrático de direito em face da gritante realidade, na qual, por vezes, até o Judiciário, esteio maior da cidadania, é desrespeitado? Deveras, não se compreende o desvio ético consistente no fato de a Administração Pública, além de muitas vezes descumprir decisões judiciais, apostar num dos maiores males do Poder Judiciário – a morosidade – para postergar o cumprimento de obrigações. O Estado-Administração não pode inviabilizar o Estado-Juiz. Isso atenta contra o Estado democrático de direito.

Precisamos avançar rumo à efetivação dos direitos e, para tanto, é fundamental assegurar-se o mais amplo acesso à Justiça e promover-se uma prestação jurisdicional célere e dinâmica, amoldada à realidade dos tempos modernos.

Pela concretude de tal visão tenho lutado desde que assumi a presidência do Superior Tribunal de Justiça. Ela não pode perenizar-se como mera retórica; precisa tornar-se uma realidade palpável e isso pressupõe, com caráter altamente prioritário, a reforma séria, e não uma simples maquiagem, de nossas leis processuais, em que se decotem os excessos do formalismo, diminua-se o número de recursos e contemple-se um novo sistema de execução de julgados, tudo em ordem a garantir a efetividade da provisão judicial.

Já no patamar político-institucional não é demais lembrar que uma nação que deseje concretizar o desiderato maior da supremacia da vontade da lei, o grande pilar da democracia, não pode prescindir de um Judiciário forte, independente e bem aparelhado. É fundamental, ainda, que o Poder Judiciário, nos moldes como o preconizo, interaja com a sociedade, hoje permeada de uma nova noção de cidadania – uma sociedade mais esclarecida e participativa, legitimada a influir no processo decisório e a questionar os entes governamentais.

Acrescento que, para alcançar o nosso País a estatura de nação verdadeiramente livre e experimentar, em toda a plenitude, o ideal de cidadania; para construir uma sociedade mais justa e mais humana, é mister, ainda, que nos unamos, de modo coeso, como as partes de um organismo vivo, sob o manto da solidariedade, diminuindo-se a enorme distância entre a base e o vértice da pirâmide social.

Não se me depara outro caminho. Sem dúvida, o êxito de qualquer empreitada reside no desejo harmônico de todos, na determinação de ir à luta para vencer, embora pareçam insuperáveis os desafios, pois, como sonhava o poeta “Das Utopias”, se as coisas são inatingíveis … ora!/ Não é motivo para não querê-las… / Que tristes os caminhos, se não fora / a mágica presença das estrelas!

Agradeço a Vossa Excelência, Presidente Sérgio Zambiasi, e a seus eminentes pares a distinção, que tanto me dignifica, e, de modo particular, aos ilustres Deputados Ciro Simoni e Otomar Vivian, autores das propostas que me proporcionaram este momento de tanta emoção, quando está prestes a soar a hora de eu dobrar a toga e partir para novos desafios, com vontade férrea de continuar a bem servir o povo brasileiro.

Muito obrigado a todos”.

Revista Consultor Jurídico, 26 de março de 2002.

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