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Sentenças suspeitas põem juízes do Rio sob investigação

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10 de março de 2002, 16h51

Uma rede formada por juízes, advogados e funcionários públicos está sendo investigada sob a suspeita de montar um balcão de negócios no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio, uma das mais importantes cortes do país.

Em ampla reportagem publicada neste domingo (10/3), os repórteres Chico Otavio e Bernardo de la Peña do jornal O Globo noticiam supostas práticas criminosas como “liminares que trancam ações e livram os acusados da prisão, sentenças duvidosas em causas milionárias e manobras processuais que desprezam a lei em favor de interesses privados (…) não há estimativa sobre o valor total desses processos, mas só num deles os autores conseguiram validar R$ 1,3 bilhão em apólices do império para a quitação de débitos com o INSS”.

O Globo indica que são três os juízes investigados: Antônio Ivan Athié, Francisco Pizzolante e José Ricardo de Siqueira Regueira.

Segundo afirma o jornal, os diversos casos em investigação exibem as mesmas características: “os perdedores são sempre os cofres públicos e há uma agilidade incomum para executar as sentenças. Enquanto o credor comum da União leva anos para receber o que o Estado lhe deve, há processos como o que tramitou em Vitória, em 1999, em que o juiz deu prazo de 24 horas para a Caixa Econômica Federal depositar R$ 3,2 milhões da conta de um advogado, em saques de FGTS de seus clientes, sem dar à instituição o direito de contestar os valores cobrados”.

A reportagem de O Globo é a primeira de uma série de reportagens em que se pretende mostrar “a rede de amigos formada por juízes de segunda instância, advogados e burocratas públicos que age nas sombras do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), no Rio, favorecida pelas brechas legais, pelo excesso de poder e pelas falhas na estrutura de defesa do setor público”.

Diante da dimensão dos prejuízos causados pelos processos, a Corregedoria do TRF-2 e o Ministério Público Federal decidiram iniciar uma investigação. Uma série de medidas, entre as quais correições, inquéritos, representações, denúncias e notícias-crime, está sendo tomada no Rio e em Brasília para apurar os casos suspeitos e punir os responsáveis. Será uma das maiores investigações já desencadeadas no Judiciário.

As investigações tratam da concessão de vantagens fiscais sem cobertura legal; do superfaturamento de terrenos desapropriados; do desbloqueio de dinheiro de fraudadores; do reconhecimento da validade de papéis podres transformados da noite para o dia em títulos milionários; e de uma indústria de saques judiciais de depósitos de FGTS, chamados por dirigentes da CEF de “ações de arrombamento” pela voracidade com que os cofres públicos são abertos.

Há também casos de réus do colarinho branco favorecidos por liminares que brecam o andamento da ação criminal – um deles parado há mais de um ano, com o risco de prescrição antes do julgamento.

Inquérito civil público, aberto pelo Ministério Público Federal no Rio, com seis volumes, aponta os juízes de segunda instância Antônio Ivan Athié, Francisco Pizzolante e José Ricardo de Siqueira Regueira, todos do TRF-2, como autores das decisões sob investigação. O objetivo do inquérito é apurar se eles cometeram improbidade administrativa.

No exame dos processos que constam do inquérito, o advogado capixaba Beline José Salles Ramos, que trabalha em Vitória, onde Athié foi juiz por 12 anos, destaca-se como favorecido em decisões que envolveram cifras elevadas. O advogado piauiense José Francisco Franco da Silva Oliveira, que tem escritório no Rio, também está sendo investigado. Ele já é alvo de dois inquéritos na Polícia Federal.

Campeão de vitórias na Justiça contra o governo federal, principalmente em saques de FGTS, Franco é investigado pela polícia desde 1993 por suspeita de tráfico de influência. Seu nome aparece no inquérito que investiga as circunstâncias em que cerca de 2.500 pessoas foram admitidas como litisconsortes (vários autores na mesma causa) quando já havia medida liminar concedida na 20ª Vara Federal para o desbloqueio dos saldos do fundo.

Depoimentos à PF, no inquérito 248 de 1993, revelam que Franco atraía clientes sob o argumento de que tinha “liminar em aberto”, o que lhes permitiria pegar carona em uma decisão judicial já proferida.

Há dois anos, outro inquérito foi aberto, a pedido do Ministério Público, para investigar Franco. O nome do advogado apareceu em gravações, autorizadas judicialmente, de conversas telefônicas do banqueiro foragido Alberto Cacciola. O advogado, segundo depoimento de Cacciola na Justiça Federal, teria lhe pedido dinheiro em troca de facilidades no TRF.

Na época, o ex-banqueiro queria anular a busca e apreensão de documentos feita pela polícia em sua casa. Em livro escrito na Itália, o ex-banqueiro dá detalhes sobre a proposta, que, segundo ele, variava de US$ 100 mil a US$ 600 mil, dependendo do tipo de decisão.

A relação entre Franco e os juízes vai além dos corredores da Justiça Federal. Sua mulher, Maria Celina Cassab Oliveira, é chefe de gabinete de Athié, na 5ª Turma do TRF-2. A presença do advogado é também freqüente no gabinete e na casa de Ricardo Regueira. Em 1998, Franco viajou com Regueira para participar do conclave internacional “O Direito no Brasil e nos Estados Unidos”, organizado pelo juiz em Nova York.

Mas Franco não é o único interessado em ações no TRF-2 a privar da vida pessoal de Regueira. Há dois anos, o juiz teve como padrinho de casamento de uma filha o empresário Artur Falk. Ex-dono da Interunion, que lançou em 1994 a loteria Papatudo, Falk figura como réu em processos na Justiça Federal. No mais grave, é acusado de gestão fraudulenta, apropriação indébita e emissão de títulos sem lastro, cujas penas somadas podem chegar a 26 anos de prisão.

Liminares param processo de Falk

Há mais de um ano, liminares concedidas pelo juiz Pizzolante impedem o andamento de um dos processos e o interrogatório de Falk na 2ª Vara Criminal. O banqueiro é parte interessada ainda em 18 agravos, um mandado de segurança, quatro hábeas-corpus, 14 apelações cíveis e um recurso criminal no TRF-2.

Os processos suspeitos fornecem outras pistas sobre a relação de advogados e juízes. Em duas ações milionárias, os juízes Ivan Athié (ainda titular da 4ª Vara Federal do Espírito Santo) e Ricardo Regueira (no TRF-2) atuaram em sintonia. Há três anos, a empresa capixaba Viação Joana D’Arc, representada pelo advogado José Beline, requereu a Athié que validasse apólices da dívida pública emitidas de 1868 e 1913 para usá-las na quitação de dívidas com o INSS. O juiz atendeu ao pedido e concedeu a antecipação da tutela (decisão provisória). Posteriormente, aceitou mais 41 empresas como litisconsortes.

Para evitar que a decisão fosse revogada no TRF-2, as próprias empresas se apressaram a recorrer e ingressaram no tribunal com 17 recursos, todos com o número do processo errado, para impedir que fossem rejeitados pelo sistema de distribuição eletrônica. Dois agravos foram distribuídos para Regueira. Os advogados, então, desistiram dos 15 demais e entraram com petições para corrigir os números do processo original dos dois recursos que foram parar nas mãos do juiz.

Com isso, o magistrado tornou-se o juiz competente para julgar qualquer recurso sobre o caso. Confirmou a decisão de Athié e rejeitou todos os recursos do INSS. Mais tarde, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu a decisão da 4ª Vara. Relatório do TRF, assinado pela corregedora Maria Helena Cisne Cid, entregue ao Conselho da Justiça Federal, em 2001, informa que o valor das apólices validadas no Espírito Santo aproxima-se de R$ 1,3 bilhão.

A situação se repete em saques judiciais de FGTS. Em 1998, Beline entrou com ação na 4ª Vara, em Vitória, pedindo a tutela antecipada para que o estivador João Pinto de Oliveira Neto pudesse sacar o seu fundo de garantia. O advogado alegou que, com a criação do Órgão Gestor da Mão-de-Obra (Ogmo), que substituiu os sindicatos na escalação dos avulsos nos portos, houve quebra do contrato de trabalho. Athié concedeu a tutela antecipada e aceitou que os sindicatos dos estivadores de Vitória apresentassem volumosa lista de litisconsortes, que também poderiam sacar seus fundos.

Outra vez, os recursos da decisão foram julgados por Regueira, que confirmou a decisão de Athié e negou as apelações da CEF. Desde então, os processos capixabas envolvendo FGTS foram para as mãos de Regueira. Os saques podem chegar a R$ 50 milhões, segundo o MP.

Juiz manda CEF pagar em 24 horas

Com a liberação da carta de sentença pelo TRF, Athié aceitou os cálculos feitos pelos dois sindicatos e ordenou que a Caixa pagasse, sem deixar que ela contestasse os valores. Mesmo alertado de que a diferença entre os números apresentados pelos estivadores e os declarados como devidos pela CEF chegava a R$ 5 milhões, o juiz determinou o pagamento em 24 horas, sem exigir as garantias determinadas pela legislação para evitar que o dinheiro não seja devolvido aos cofres públicos se a decisão for suspensa.

A Procuradoria Regional da República, em recurso encaminhado ao STJ, critica a decisão de Athié: “Se um juiz togado é capaz de assim atuar em detrimento de empresa pública, o que não será capaz de fazer contra o simples cidadão?”.

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Leia a reportagem completa do jornal O Globo

Revista Consultor Jurídico, 10 de março de 2002.

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