Poder sem rumo

Sem representatividade, Estado ilegítimo é fonte de crise.

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9 de março de 2002, 23h00

A crise do Estado contemporâneo perante a globalização e ainda o surgimento de um certo conceito de soberania fluído traduz-se enfim num nouveau État construído sob a ótica neoliberal. A predominância do princípio da subsidiariedade e dotado de nova representatividade nos faz forçosamente refletir qual tipo de Estado realmente desejamos e ainda perscrutar seus fins e interesses.

Não que tais honrosas indagações tanto sobre a legalidade quanto a legitimidade, sejam de todo inéditas. Mas, é curial um novo redimensionamento do conceito e da realidade deste Estado.

Ao percorrer da trajetória histórica-filosófica do Estado poderemos, sem dúvida, nos esclarecer sobre o atual estágio evolutivo do Estado.

Desde do advento do Estado moderno, com a personificação do poder estatal, na figura do monarca absolutista, a justificação do poder político tem sido perseguida em vão por várias ciências sociais, sem, contudo, alcançar unanimidade.

Para Weber, o poder define-se como toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social. O poder, desta forma, é sociologicamente amorfo e só pode significar a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem. E, neste sentido, já sentimos a enorme instrumentalidade do Direito. O poder estatal é caracterizado pela coação que utiliza e, ainda pela dominação sobre um território.

O poder do Estado adere qualidades fundamentais tais como: imperatividade e a natureza integrativa do poder estatal, a capacidade de auto-organização, a unidade e a indivisibilidade do poder, a soberania e os princípios de legalidade e legitimidade.

Não bastando apenas a observância das leis devida não só pelo cidadão mas também pelo próprio Estado. Já a legitimidade é noção de cunho ideológico que exige a consonância do poder com a opinião pública e com os princípios de ordem jurídica vigente.

Vedel considera a legitimidade como fundamento do poder em determinada sociedade. Dallari sublinha o caráter formalista de Weber, adstrito à origem do poder e legitimando o poder espúrio exercido contra a sociedade.

O monopólio legítimo da coação física se traduz num poder de fato e que deve estribar-se em competência e, na autoridade, diluída a coerção caracterizando-se assim o poder de direito. Só o poder de fato não conceitua o Estado de Direito.

Mas a desnecessidade do poder político na sociedade é uma utopia universal. Aliás desde do anarquismo cristão pregado por Santo Agostinho onde Deus concedeu aos homens o poder para que dominassem os irracionais, porém, não para que dominassem os outros homens, sendo ilegítimo todo o poder de uns homens sobre os outros.

Duguit, neste mesmo sentido, recusa-se a aceitar que uma vontade humana possa, legitimamente, impor obrigação a outra, e conclui dizendo que o poder é e será sempre um mero fato, a expressão da existência de homens que submetem e de outros que são submetidos.

A diversidade dos pressupostos filosóficos do anarquismo sempre foi enorme, mas sempre encontrou guarida entre os mais prestigiados doutrinadores como Bobbio que consagrou o Estado como instrumento máximo da espoliação religiosa, política e econômica.

Proudhon chega a extremos e propaga que a propriedade é um roubo e o poder um mal em si mesmo. Bakunin que acreditava na evolução humana do estágio animal para o estágio espiritual, passava expressamente pela eliminação do Estado, da propriedade privada e da religião por serem exatamente expressões da primitiva natureza humana.

Sempre sonharam os oprimidos com uma sociedade sem opressores, mas o Estado é convocado para domar a besta selvagem e, assim tornar possível a pacífica convivência humana e o desenvolvimento da sociedade.

De qualquer maneira com o fracasso do socialismo no mundo, e, proporcional desgaste do capitalismo selvagem, surgiu assim uma nova edição de Estado que ora oscila entre a ótica liberal e a ótica social.

Na fase liberal definida pela tensão permanente entre o subjetivo individual da sociedade civil e o subjetivo monumental do estado, o princípio da cidadania atua como regulador, pois restringia os poderes estatais e, simultaneamente, igualava e universalizava as particularidades dos sujeitos, facilitando o controle social e, conseqüentemente a regulação social. Em verdade o liberalismo almeja a homogeneidade.

O paradigma do Estado social de direito tornou-se administrador admitindo-se assim o predomínio da técnica sobre a ideologia, e o triunfo da Administração sobre a Política. Mas o que esperamos do Estado?

No mundo globalizado e neoliberal, a sociedade civil apresenta-se comumente como não-Estado. Sendo uma esfera histórica constituída, cuja autonomia e competição mútua na prossecução de seus interesses privados devem ser garantidas pelo Estado que deve abster-se de intervir em certas atividades econômicas.

Revela-se atualmente uma sociedade conflituosa e fragmentada, apesar de existir nas sociedades industrializadas um conformismo difuso e acentuado, onde a concentração de poder dita os modelos de comportamento generalizados dos indivíduos. Assim, o indivíduo se encontra massacrado e imerso numa artificial homogeneidade.

O Estado é, portanto, além da síntese das relações sociais, a institucionalização da dominação e juridicamente deve ser compreendido como corporação formada pelo povo, sendo originariamente dotado de poder de mando. Portanto, a soberania é indissociável do conceito de Estado.

A existência objetiva e natural do Estado é decorrência da própria evolução social dos grupos humanos. Um corolário da natureza humana. Quer sejamos contratualistas ou naturalistas.

Infelizmente, o direito não resolve inteiramente o Estado como desejou Kelsen. Ele como organização social complexa foi pouco a pouco migrando para ser um Estado social de Direito. Qualquer que seja o tipo de Estado o direito jamais o resolverá inteiramente face ao seu eminente caráter instrumental.

A partir de então, verifica-se que o social não pode surgir diretamente do relacionamento entre os homens, e sendo anterior aos sujeitos e direcionado a prover estruturas e, finalmente impondo a tendência radical de desintegração.

Por ser incompetente, o Estado social está em crise, quer por não atender as demandas, quer por não atender as reivindicações da sociedade apesar de fortalecer a idéia sistêmica e, ajudar decisivamente para superar os paradigmas tradicionais e, propiciar a construção e o desenvolvimento do Estado democrático de direito.

O mal-interpretado Niccolò Machiavelli (Maquiavel), é quem melhor definiu a soberania dentro de uma concepção laica e realista. Estudando em particular as exigências do governo de um homem só, atiçando a ira cristã e, tendo inclusive seu livro elencado no index da Igreja em 1559.

Vê na soberania o cerne do Estado primordial para a imposição da ordem pública correspondendo à fundamentação filosófica clássica do Estado. E neste sentido, só é realmente soberano o Estado que acata as leis que ele mesmo elabora. Se não for para dar exemplo, pelo menos para dar legitimidade ao comando e ao exercício do império. A moral da soberania longe de ser soberana é indubitavelmente humana. Apesar de ser o conhecido autor de “O príncipe”, o pensador florentino defendeu até mesmo ideais republicanos

O Estado não mais visto como summa potesta, mas dotado de um poder interativo e reflexivo. Posto que é limitado pelos fins do Estado, pelo direito natural, pelas leis e tratados internacionais e, ainda pelo consentimento do povo.

Maquiavel na busca da verdade efetiva rompe com a tradicional escolástica medieval, e destilando ironias através de metáforas, exprime seu pessimismo antropológico e apontou a anarquia como desdobramento necessário das paixões e instintos malévolos.

Mas comparando as frustrações das paixões e dos insaciáveis apetites humanos (que são ilimitados) com os meios de satisfazê-los (que são obviamente limitados) é que tornamos possível à evolução social, e assim, a própria evolução do Estado.

Segundo Kelsen o Estado ideal é o democrático que é sustentado pelos partidos políticos. Por isso, considera natural a tendência a institucionalizar expressamente os partidos no contexto constitucional por serem órgãos para formação da vontade estatal. É fundamental em países de engatinhante democracia o gradual fortalecimento dos partidos políticos que devem desvincular-se da promíscua aderência pessoal para ter conteúdo ideológico representativo.

A democracia significa que a vontade representada na ordem legal do Estado é a mesma vontade dos cidadãos. E mais uma vez, a legitimidade torna-se alvo da preocupação dos teóricos.

Vivenciamos um impasse, pois não desejamos um Estado interventor e nem um omisso. Parece incrível que ainda procuremos um Estado lídimo e legítimo com uma pequena lanterna na mão…tal qual na fábula platônica.

Revista Consultor Jurídico, 10 de março de 2002.

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