Dever público

Justiça manda Estado dar assistência a autistas em SP

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7 de março de 2002, 21h20

B — Da Jurisprudência e da Doutrina

Como se vê, o apresentado não se trata de um conjunto de normas programáticas. As Constituições e as leis asseguram a efetividade social ao direito à saúde, em toda a sua amplitude, reconhecendo-o como direito público subjetivo. E, neste contexto, o instrumento processual de defesa em Juízo de tais direitos é a ação civil pública.

No âmbito Constitucional, Ives Gandra Martins ensina que “na competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, além do Distrito Federal, está a tarefa de cuidarem da saúde e assistência pública, além da proteção das pessoas portadoras de deficiência. Cuidar da saúde pertence à vocação maior do Estado, de rigor, a meu ver voltada para ofertar segurança pública interna e externa, administração da justiça, saúde, educação e assistência social latu sensu” (Comentários à Constituição do Brasil, vol. III, 1988, pág. 382). Mais adiante, complementa: “É também da competência comum cuidar da assistência pública. A expressão assistência pública, em sua amplitude, deve ser entendida não apenas à assistência social ´stricto sensu´ mas a toda a espécie de assistência que o Estado deve ofertar aos mais carentes, desde a saúde, previdência até a orientação (…)”. “Por assistência pública não se deve apenas entender a assistência social, mas também toda a assistência que o cidadão ou residente merece do Estado, por nele viver. A parte final do discurso legislativo supremo é apenas reiterativo dos princípios anteriores, visto que ao cuidar o Estado da assistência pública ou da saúde, dela não pode excluir as pessoas portadoras de deficiência. O que talvez tenha pretendido o legislador foi realçar a necessidade de cuidado maior com as pessoas que têm menores condições físicas, destacando a relevância que tal tratamento jurídico e humanitário deva merecer da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O pleonasmo enfático do discurso constitucional pode, inclusive, ser interpretado como devendo o Estado cuidar mais de tais pessoas que dos demais cidadãos, posto que são mais dependentes e possuem limitações a serem supridas pelo Poder de forma mais acentuada” (ob. cit. pág. 384/385 — grifo nosso).

Sempre é bom ter em vista que se encontram elencadas na Constituição Federal a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático (Art. 1o.). Foram arrolados como objetivos principais (Art. 3o.) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento da nação; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como, importante para a questão presente, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim, deve o Estado criar as condições que gerem o desenvolvimento do povo, tornando viável a vida, o que também significa medidas preventivas e corretivas no âmbito da saúde individual e coletiva. Foi exatamente por tal motivo que à saúde foi conferido tratamento especial na Carta Magna, erigidos seus serviços e ações como de relevância pública (Art. 196 da CF). O tema ainda ganhou constitucionalmente seção própria e foi abordado dando-se ênfase ao acesso universal e igualitário às ações e serviços.

Com efeito, encontra-se em causa a proteção ao “mínimo existencial” de que cuida a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): “Art. 25 — Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde (….)”. Sem saúde, ou melhor, sem a adequada prestação dos essenciais serviços de saúde não há liberdade e igualdade. Ora, o gozo das liberdades clássicas só é possível com um mínimo de bem-estar, envolvendo a saúde. Neste sentido, mencionando o parecer do Digno Promotor de Justiça José Jesus Cazetta Júnior no Mandado de Segurança n. 743/053.00.011924-8 (11a. Vara da Faz. Pública): “Sensata, portanto, a observação de Isaiah Berlin: ‘É um fato que proporcionar direitos ou salvaguardas políticas contra a intervenção do Estado no que diz respeito a homens que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e doentes, é o mesmo que caçoar de sua condição: esses homens precisam de instrução ou de cuidados médicos antes de poderem entender ou utilizar uma liberdade mais ampla (cf. “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”, Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981, pág. 138). Em tom menos candente, mas substancialmente igual, John Rawls advertiu que, entre constrições definitivas da liberdade, figura ‘a ausência generalizada de meios’ (CF. “A Theory of Justice”, Oxford: Oxford University Press, 1980, pág. 204)”. É exatamente por tal motivo que a Carta Magna atribui ao Estado a responsabilidade pela assistência terapêutica integral e gratuita, questão básica para se atingir as outras liberdades e a própria Democracia.


Interessante é ainda trazer à colação o constante no V.Acórdão, oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (Relator Waldir Leôncio Júnior), citando a r.sentença analisada e o mestre José Afonso da Silva: “A saúde é um direito social conforme entende o art. 6o. da Constituição e como direito fundamental do cidadão não é norma programática, não encerra somente uma promessa de atuação do Estado, mas tem aplicação imediata. Na lição do insigne constitucionalista José Afonso da Silva ‘os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade’. Não é despiciendo registrar ainda que se insere entre os objetivos fundamentais da República Brasileira ‘estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária’, tendo-se em vista a realização da justiça social, ou seja, busca a nação a promoção do ‘bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’”. Mais adiante, asseverou, mencionando outro V.Acórdão, que a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores é pacífica no sentido da observância dos dispositivos constitucionais, no que concerne ao ‘direito à saúde’. A proteção, como já visto, também é ampla no caso das pessoas portadoras de deficiência.

Na apelação cível n. 22.786-0, analisando questão individual, a Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu que “se o Estado não pode proporcionar tratamento adequado a todos os menores deficientes, deve promover este tratamento por outros meios, às suas expensas. Jamais utilizar a falta de estrutura como justificativa para sua omissão”. A questão do autismo é idêntica. Os autistas têm direito ao recebimento de atendimento especializado e também de não ingressar em mera fila de espera da superação da inércia estatal. Isso não é tratamento adequado. Se o Estado não pode proporcionar diretamente tal tratamento aos autistas, deve promover e financiar este cuidado essencial por outros meios, ou seja, às suas expensas, inclusive sob pena de multa suficientemente alta para inibir e desencorajar o Estado em descumprir mandamento judicial, porquanto fosse ela fixada de forma menos gravosa aos cofres públicos, haveria o risco de deixar o autista entregue ao criminoso critério do custo-benefício quando o valor da multa pelo descumprimento for inferior a uma diária em obra adequada ao tratamento especializado, o Estado certamente estará tentado a descumprir a decisão judicial.

Conforme cópias que acompanham a presente (fls. 08/17) já foi ajuizada, visando resguardar os direitos de autista, ação ordinária de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de tutela, contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Em decisão judiciosa e lúcida o Eminente Magistrado da 2a. Vara da Fazenda Pública deliberou:”(…) 2. Defiro a antecipação da tutela requerida. Em conseqüência fica a Fazenda do Estado de São Paulo obrigada a arcar com os custos de tratamento e internação do autor em entidade especializada, próxima a residência do mesmo, até que sejam construídas unidades especializadas no tratamento, acompanhamento e internação especializado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 3. A tutela antecipada é concedida na forma acima exposta pois há verossimilhança nas alegações ofertadas, tendo em vista os documentos juntados com a petição inicial, e considerando os seguintes dispositivos Constitucionais e legais: artigos 6o., 23, II, 196, 197 e 198 da Constituição da República; e artigos 219, parágrafo único, “2”, e 223, I e II, alínea “f”, e inciso IX, da Constituição Bandeirante. Acrescente-se que o sentido da expressão ‘acesso universal e igualitário’, inserido nos artigos 2o., parágrafos 1o. e 7o., inciso IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90) é precisamente o de garantir à população o acesso aos serviços e ações de saúde, de forma indireta, sem privilégios de qualquer espécie. 4. Além disso, existe também o ‘fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação’ (artigo 273, inciso II, do CPC) em face das características da enfermidade do autor. 5. Observo, ainda, que não há perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. (…)” (fls. 18 e fls. 07).

Por fim, cabe asseverar que a tutela jurisdicional à saúde tem sido considerada tão ampla que até tratamentos médicos especializados no exterior têm sido objeto de ações que geraram a obrigação do poder público em ressarcir o particular. Para exemplificar, de mencionar-se o “AC 96.01.10504-2/MG — Apelação Cível, Juiz Hilton Queiroz — Quarta Turma do TRF”, nos seguintes termos: “A indenização por gastos efetuados com tratamento de saúde de filho menor, no exterior, funda-se no cumprimento do artigo 196 da Constituição Federal, ficando afastada a alegação de ofensa aos artigos 2o. e 167-II da mesma Constituição, pois o Juiz apenas decidiu o caso concreto, no exercício de jurisdição contenciosa, nem, com sua sentença, elaborou lei orçamentária”.


C — Licitação e previsão orçamentária, em face do pedido de tutela antecipada a ser realizado.

Por primeiro, apenas por excesso de zelo, deve ser referenciado que a Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000, estabelecedora de normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, não impede qualquer atuação judicial tendente a reparar a situação de perigo à vida e à saúde, já que tal possibilidade encontra nascedouro e amparo diretamente na Constituição Federal. Assim, considerando que a lei em comento foi idealizada para defender as finanças públicas dos administradores irresponsáveis, ela visou obviamente a lisura administrativa para a consecução do bem comum, porquanto as finanças não constituem um valor em si. Desta forma, toda a discussão sobre eventual impossibilidade de realização de despesa cai por terra. Ora, na hipótese, são direitos constitucionais os que estão sendo aqui discutidos. Devido à existência de tais direitos é que se pretende a tutela (à vida, à saúde, à assistência), isto é, a própria razão de ser da lisura administrativa. Caso contrário, situação fática levada a Juízo cuja decisão teria como conseqüência a vida ou a morte do interessado, encontraria a absurda resposta da impossibilidade da tutela.

O debate sobre licitação e prévia previsão orçamentária, o que envolve também a Lei de Responsabilidade Fiscal, é importante principalmente tendo em vista o pedido de tutela antecipada que será realizado.

Sobre o tema, em questões semelhantes, já se manifestaram os Tribunais:

“O Judiciário não desconhece o rigorismo da Constituição ao vedar a realização de despesas pelos órgãos públicos além daquelas em que há previsão orçamentária; este Poder, todavia, sempre consciente de sua importância como integrante de um dos Poderes do Estado, como pacificador dos conflitos sociais e defensor da Justiça e do bem comum, tem agido com maior justeza optando pela defesa do bem maior, veementemente defendido pela Constituição — A VIDA — interpretando a lei de acordo com as necessidades sociais imediatas que ela se propõe a satisfazer” (Apel. Cível n. 98.006204-7, Santa Catarina, Rel. Nilton Macedo Machado, 08/09/98).

Mais adiante, neste mesmo decisório: “Com relação à previsão orçamentária para o custeio dos medicamentos específicos, basta relembrar que já há, no orçamento do Estado, dotação apropriada; da mesma forma não pode o apelante pretender eximir-se de suas responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios problemas financeiros, em face da escassez de recursos, o que soa falso em face dos gastos publicitários que se vê nos meios de comunicação, apregoando obras e realizações governamentais (…)”. Citando Celso de Mello em caso também relativo à saúde: “A singularidade do caso (…), a imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (…) e a impostergabilidade do cumprimento do dever político constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à saúde (CF, art. 6o., c.c. art. 227, Parágrafo 1o.) constituem fatores, que, associados a um imperativo de solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (…). Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5o., caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo — uma vez configurado esse dilema — que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida”.

Destaque-se que a atual ausência de estabelecimentos adequados para tratamento dos autistas afetam seus direitos indeclináveis à saúde e à vida, posto que, desamparados, permanecem, sabe-se lá como, no interior de casas, de favelas ou pelas ruas sem qualquer tratamento que gere pelo menos uma esperança de um futuro melhor, com a adaptação ao meio social e físico de forma gradativa.

Ainda no que respeita à necessidade ou não de licitação, para o cumprimento da tutela preliminar pretendida (e mesmo, ao final), tem-se que a própria Lei de Licitações (n. 8666/93) dispensa a necessidade de licitação, sempre que caracterizada a urgência do caso. É o que prescreve o Art. 24, inciso IV, do referido diploma legal: “(…)é dispensável a licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo à segurança da pessoa”. Sobre tal tema, assim se posicionou Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 4a. ed., Aide Editora, pág. 152): “o dispositivo enfocado refere-se aos casos onde o decurso de tempo necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse concluída a licitação, o dano já estaria concretizado. A dispensa de licitação e a contratação imediata representam uma modalidade de atividade acautelatória do interesse público”.


Aliás, acertadamente, em todos os casos ajuizados por este Grupo de Atuação perante os Excelentíssimos Juízes da Fazenda Pública não houve decisões contrárias a tais preceitos.

Irrelevante se mostra eventual falta de prévia dotação orçamentária que possibilite o cumprimento da antecipação da tutela. Consoante enfatiza com lucidez João Angélico (Contabilidade Pública, Ed. Atlas, pág. 35): “Durante a execução orçamentária, o Poder Executivo pode solicitar ao Legislativo, e este conceder, novos créditos orçamentários. Eles serão adicionados aos créditos que integram o orçamento em vigor. Por essa razão, denominam-se créditos adicionais. Os créditos adicionais aumentam a despesa pública do exercício, já fixada no orçamento”. De qualquer forma, a obrigação de não excluir os autistas de serviços especializados de saúde e educação é dever do Estado, já que assim deve agir indistintamente, para com todos os cidadãos (AI n. 96.010901-3 — TJ-SC).

Importante o decidido com total propriedade pelo Des. Xavier Vieira, no V.Acórdão referente ao agravo de instrumento n. 96.012721-6: “sendo a saúde direito de todos e dever do Estado (CF, art. 196, CE, art. 153), torna-se o cidadão credor desse benefício, ainda que não haja serviço oficial ou particular no País para o tratamento reclamado. A existência de previsão orçamentária própria é irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa, uma vez que o executivo pode socorrer-se de créditos adicionais. A vida, dom maior, não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu o sentido da solidariedade, num mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível. Contudo, o reconhecimento do direito à sua manutenção (…), não tem balizamento caritativo, posto que carrega em si mesmo, o selo da legitimidade constitucional e está ancorado em legislação obediente àquele comando. Além do mais, não há necessidade de procedimento licitatório em casos de emergência, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras e serviços” (vide também Apelação cível n. 98.001145-0 e 98.001146-9, Santa Catarina, Relator Des. Newton Trisotto).

José Cretella Júnior, na obra “Comentários à Constituição de 1988”, vol. III, pág. 4331, citando Zanobini asseverou que ”nenhum bem da vida apresenta tão claramente unidos o interesse individual e o interesse social, como o da saúde, ou seja, do bem-estar físico que provém da perfeita harmonia de todos os elementos que constituem o seu organismo e de seu perfeito funcionamento. Para o indivíduo saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade econômica e especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado de doença não só constitui a negação de todos estes bens, como também representa perigo, mais ou menos próximo, para a própria existência do indivíduo e, nos casos mais graves, a causa determinante da morte. Para o corpo social a saúde de seus componentes é condição indispensável de sua conservação, da defesa interna e externa, do bem-estar geral, de todo progresso material, moral e político. As pessoas doentes representam ônus e perigo contínuo para a sociedade: ônus, na medida em que não lhe trazem nenhuma contribuição de trabalho e exigem cuidados e assistência que comprometem meios econômicos e atividades de outras pessoas; perigo, pela possibilidade da propagação da doença a outras pessoas e, em alguns casos, à propagação rápida, de caráter epidêmico”. Nota-se, pois, o interesse até mesmo econômico do Estado em regularizar as situações relativas à saúde. Autista sem atendimento especializado não progride, adoece em “cercadinhos” como se fosse um animal, o que, com o tempo, implica na realização de outros gastos por parte do Estado.

O Supremo Tribunal Federal, reitere-se dada a importância, através do eminente Ministro Celso Mello, apreciando pedido de suspensão de liminar formulado pelo Estado de Santa Catarina, em petição n. 1246-1, concluiu: “Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5o., caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo — uma vez configurado esse dilema — que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível ação: o respeito indeclinável à vida”.

Assim, a mais elevada Corte de Justiça do país considerou que as decisões judiciais na área da defesa da saúde e da vida contra a omissão do Estado, longe de caracterizar ameaça à ordem pública e administrativa, traduz-se em gestos digno de reverente e solidário apreço à vida dos destinatários dos serviços de saúde como os autistas (vide Agravo de Instrumento n. 97.002948-9, Santa Catarina, Des. Relator Gaspar Rubik).


Eventuais alegações do Estado, de forma cômoda defendendo intransigentemente o respeito à previsão orçamentária elaborada pela Casa Legislativa, no sentido de que não possui verbas para custear as despesas advindas dos pedidos liminar e principal, carecem de fundamento. Com efeito, a previsão orçamentária é passível de alterações.

Interessante também é referir que a ação civil pública e a ação popular são meios à disposição de entidades, do Ministério Público e dos cidadãos para fiscalizar o orçamento e sua execução. De outra parte, vale dizer, a lei orçamentária é norma programática. Mesmo sendo lei, como visto, não possui coerção típica de uma lei. É possível o seu não cumprimento, já que o interesse público não é estático e pode ser modificado. Sobre a utilização da ação civil pública para adequar a conduta do administrador, ressalte-se novamente que isso não representa ingerência alguma, porquanto é a própria Constituição Federal (Art. 129, inciso III) e as leis que lhe especificam que admitem tal proceder. Colocadas tais premissas mostra-se inviável se acenar com falsos argumentos como a falta de previsão orçamentária. Aliás, neste aspecto, importante é trazer à colação parte do V. Acórdão proferido no Agravo de Instrumento n. 82.036-5, da Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Rel. José Santana, tratando sobre o fornecimento de medicamento especial em ação intentada em face da Fazenda Pública: “A respeito, cabe ver que a Portaria n. 21, de 21.3.95, do Ministério da Saúde, já recomendava a utilização da combinação de novos medicamentos com o então conhecido AZT, de modo que, somente atribuível à incúria da Administração não ter ela já licitado, — inclusive com previsão orçamentária — de modo a permitir, de modo continuado, o fornecimento de tais medicamentos aos dele necessitados, em quantidades adequadas. Portanto, não socorre a agravante o argumento de necessidade de licitação prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe colocar em dúvida a eficácia dos remédios em questão, os quais, aliás, são sempre receitados pelos médicos”.

III — Da Discricionariedade Administrativa

O Estado sempre procura safar-se de suas obrigações alegando que o Poder Judiciário ao conferir as medidas necessárias para regularizar a situação caótica, está em verdade invadindo a discricionariedade administrativa, não respeitando a divisão de poderes, não observando os critérios da conveniência e oportunidade do administrador.

Sem razão, porém. A teoria clássica da repartição de funções estatais dentre vários órgãos independentes, cujos contornos iniciais surgiram com Aristóteles, reservou ao Poder Executivo as funções de gerenciamento da “res” pública e prestação de serviços à comunidade. Contudo, para o bom desempenho dessas funções e o alcance efetivo de suas finalidades, a Administração Pública tem assegurada uma posição de supremacia em relação aos administrados com a existência de diversos poderes da administração. Essa posição hierarquicamente superior da Administração Pública deve coadunar-se com as regras básicas de um Estado de Direito e vislumbra, sempre, o interesse público, não podendo confundir-se com arbítrio.

Relevante ponderar que a Administração Pública deve, assim como todos os administrados, total obediência ao primado da Constituição e da legalidade.

Dessa maneira, os poderes exercidos pelo administrador público são norteados e regrados pelas normas constitucionais e legais, mesmo nas hipóteses em que o ordenamento jurídico permite uma maior interação da vontade subjetiva da administração na formação do ato administrativo.

Segundo lição de Hely Lopes Meirelles, poder discricionário não se confunde com poder arbitrário. Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, quando autorizado pelo direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido (Direito Administrativo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, 1991, página 98). Ademais: “só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo” (obra citada).

O que é aqui tratado, pondere-se de passagem, não cuida de mera opção do administrador, mas total omissão que afronta as normas constitucionais e legais. O administrador, por óbvio, não pode optar pelo nada fazer e observar passivelmente o sofrimento alheio, agindo de forma omissa e ineficiente.

Quando o Magistrado em sua função jurisdicional determina a observância das condições necessárias para reverter quadro prejudicial à saúde da população, não se encontra à evidência exorbitando. O Estado sim, é que exorbita, ao negar até o básico. Com certeza, repise-se, não se encontra no âmbito da conveniência e oportunidade do administrador dar ou não o básico, ou seja, fazer ou não permanecer situação que pode levar ao dano irreparável à saúde e à vida de várias pessoas! O pedido na espécie, pois, visará o básico necessário para evitar ocorrências lesivas à saúde e ao progresso dos autistas, destinatários também dos serviços de saúde pública, assistenciais e educacionais, pelo menos deveriam ser.


Não tem sido outro o posicionamento jurisprudencial: “não pode ser aceita a alegação da agravante, de que não tem condições imediatas de resolver o problema e que a ação significa indevida intromissão do Judiciário no Poder Executivo. Após a concessão da liminar, algumas providências foram adotadas pela Municipalidade, o que demonstra que de fato havia uma situação de perigo e que impossível não é a solução do problema. E, convenha-se, o direito à saúde e ao saneamento é garantia constitucional e sua preservação pelo Judiciário não significa interferência no Executivo” (g.n.) (Agrav. de Instr. N. 204.059-1 — Terceira Câmara do Tribunal de Justiça — Relator Gonzaga Franceschini).

Pondere-se ainda que “dúvida não sucede no tocante às limitações do conteúdo discricionário da Administração a fim de harmonizá-lo com o superior princípio constitucional da moralidade, e possibilitar-lhe a missão de servir ao bem comum do povo. Enfim, a opção que cabe ao administrador adotar é a tendente a alcançar soluções enquadradas na legalidade, com vistas postas no interesse público, máxime se difusos e correlacionados com incontornável interesse social, ad instar da espécie sob exame. Vale dizer: a execução do ato administrativo é vinculada à obrigação legal imposta ao Poder Público” (g.n.). (Agrav. de Instr. n. 221.677-1 — 2a. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo — Rel. Vasconcellos Pereira).

De referir-se também o Acórdão da Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Agravo de Instrumento n. 86.815-5 — São Paulo): “Sequer se pode falar em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, consagrado na Constituição da República. É que, por força de preceito constitucional, é assegurado a todos o acesso à Justiça, impondo-se ao Judiciário o dever de apreciar todas as questões que lhe forem apresentadas. Assim sendo, como bem decidiu o eminente Desembargador Nigro Conceição, ´se é assegurado a todos, indistintamente, o acesso à Justiça, a fim de assegurar direitos postergados ou violados, inegavelmente, não tem o Judiciário, para cumprir sua sagrada missão de julgar, outra alternativa senão a de apreciá-los, em face das normas que os concedem ou asseguram, para garantir-lhes o exercício ou eficácia. Limitar a atuação do Judiciário, nesse campo, data maxima venia, é obstar o próprio cumprimento da Lei Maior quando assegura o acesso à Justiça, sempre que exista um direito violado ou na iminência de o ser`”.

Aliás, o executivo não tem o poder de vida e de morte sobre os administrados, de forma que não lhe cabe a opção entre realizar ou não obras e serviços que minimizem os riscos à saúde, que propiciem serviços especializados à parcela necessitada da população. Assim, o Judiciário não só pode, como deve, impedir que a atividade administrativa ou a omissão, reveladoras de um descaso ou esquecimento, sejam nocivas à saúde pública, à assistência social e aos direitos dos deficientes.

Não se pode negar que a Administração, na implementação de seus desideratos ligados ao bem comum, tem obrigações e deveres variados, da mesma forma que é investida de direitos e faculdades. Quando atua ou se omite, o administrador, por vezes, equivoca-se, divorciando-se do bem comum, mantendo-se na contemplação distorcida da verdade social, omitindo-se e negligenciando uma situação grave. Aí é que surge a possibilidade de correção da omissão ou do desvio praticado por intermédio dos mecanismos de controle da administração, entre os quais destaca-se o Poder Judiciário. A tutela jurisdicional, repise-se, não representa uma interferência indébita que contraria a regra da divisão de Poderes. É cediço que a harmonia entre os Poderes exige uma interdependência recíproca. Sob tal ângulo de apreciação, os norte-americanos construíram a teoria dos freios e dos contrapesos (“checke and balances) que permite a ingerência de um Poder na vida do outro de maneira a propiciar o necessário equilíbrio do Estado. Ora, ante a inviabilidade de exclusivismo e isolamento, não há negar a interdependência dos poderes, em virtude do que a teoria dos poderes pode e deve, técnica e cientificamente, ser caracterizada como a teoria da interdependência dos poderes (vide Aderson de Menezes, in Teoria Geral do Estado, 1984, p. 258).

Assim, quando o Poder Judiciário atua na avaliação de determinados interesses públicos, o faz na condição de revisor da violação de direitos subjetivos e coletivos que deles derivam, impedindo omissões e desvios administrativos. Desnudados os limites da discricionariedade, não pode o Judiciário, a pretexto de garantir o equilíbrio do Estado, furtar-se de sua função de órgão revisor da violação de direitos, mas deve pronunciar a cada caso o Direito. A Carta Federal, pondere-se, estabeleceu o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. A ação civil pública, em tal contexto, busca a submissão da Administração à legalidade.


O direito à saúde e à vida, bem como a tutela de tais bens, devem ser tratados com prioridade, inclusive porque a Constituição em seu Art. 197 colocou, de forma singular, as ações e serviços de saúde como de relevância pública, ou seja, estabeleceu-se, constitucionalmente, a prioridade com que deve ser tratada a questão.

Em suma, o caso cuida de inércia injustificável, não se trata de poder de eleição pelo autor ou pelo Judiciário de diretrizes governamentais, mas de reverter situação calamitosa e dramática. Portanto, não há ingerência indébita no poder executivo. Não há violação ao disposto no Artigo 2o. da Constituição Federal.

Como salientado por Tomás-Ramón Fernández deve-se “conceder à administração — nos limites casuisticamente permitidos pela Constituição — tanta liberdade quanto necessite para o eficaz cumprimento de suas complexas tarefas” (Arbitrariedad y discrecionalidad. Barcelona: Civitas, 1991, p. 117).

Ora, o administrador não tem a discricionariedade, em conseqüência, para deixar de cumprir suas tarefas constitucionalmente previstas, não existe liberdade neste aspecto mas dever do Estado e direito do cidadão.

Verifica-se, portanto, a necessidade do Poder Judiciário (CF, art. 5o., XXXV), em defesa dos direitos fundamentais e serviços essenciais previstos pela Carta Magna — vida, dignidade da pessoa humana, saúde — garantir a eficiência dos serviços prestados, inclusive responsabilizando as autoridades omissas, porquanto conforme leciona Alejandro Nieto: “quando o cidadão se sente maltratado pela inatividade da administração e não tem um remédio jurídico para socorrer-se, irá acudir-se inevitavelmente de pressões políticas, corrupção, tráfico de influência, violências individual e institucionalizada, acabando por gerar intranqüilidade social, questionando-se a própria utilidade do Estado” (La inactividad material de la administración. Madri: Documentacion administrativa n. 208, 1986, p. 16).

Consigne-se, por fim, que o tratamento ao autista constitui serviço essencial de saúde e assistencial, pelo que deveria ser contínuo. A prestação devida à sociedade pelo Estado, coloca-os na condição de consumidor e prestador (vide Art. 2o. da Lei n. 8078/90). Ora, nos exatos termos do Art. 22 dessa mesma Lei os órgão públicos são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos, sendo que nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações mencionadas, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados.

V — Do Autista como pessoa portadora de deficiência — da Criança e do Adolescente Autista

A “Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiências”, realizada na Guatemala, quando da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos — OEA (Convención Interamericana para la eliminación de todas las formas de discriminación contra las personas com discapacidad, apobada em la primera sesión plenária, celebrada el 7 de junio de 1999), firmou que “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais à vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Nos termos de tal Resolução os autistas vêm sofrendo certa discriminação em nosso âmbito porque se estabeleceu que esta atitude contra “as pessoas portadoras de deficiência significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais”. Ora, a discriminação no caso ocorre de forma institucionalizada porque, apesar de ser do conhecimento do governo o problema dos autistas, muitos deles vivendo como animais completamente desamparados, sem quaisquer perspectivas, jogados à sua própria sorte, não ocorre a disponibilização dos serviços, ensejando sérios prejuízos à liberdade fundamental do indivíduo. Especificamente, neste contexto, a tutela Constitucional é ampla, inclusive determinando a prestação assistencial objetivando sua integração à vida comunitária (art. 203, IV), sendo que o art. 208, inciso III, prevê o dever do Estado de prestar educação especial aos portadores de deficiência. Segundo já foi assinalado anteriormente, a Lei n. 7853/89, principalmente em seu art. 2o., estabelece a obrigação do Estado fornecer tratamento prioritário, educação especial e serviços de saúde aos portadores de deficiência, estabelecendo como uma garantia o oferecimento de estabelecimentos de saúde para os cuidados adequados (“sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados”).

Veja continuação da ação

Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2002.

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