O ônus da prova

Repetição de pequeno delito afasta aplicação da insignificância

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25 de maio de 2002, 10h28

O juiz substituto da 8ª Vara Criminal da Comarca de Salvador (BA), Cássio Miranda absolveu uma acusada de furtar dois frascos de perfume em uma farmácia. Na ocasião, Edilene da Silva Ferreira foi presa em flagrante.

Para o juiz, “não tendo o Ministério Público se desvencilhado do seu ônus de provar os fatos alegados contra a acusada, e sendo defeso ao magistrado prolatar sentença condenatória arrimada somente em elementos provindos do inquérito policial, resta inviabilizada a pretensão punitiva deduzida na peça vestibular”.

Na sentença, Miranda discute questões como a inconveniência da aplicação do princípio da insignificância. Diante das indicações de que a ré praticava pequenos delitos com regularidade, o juiz entendeu que acatar a tese da bagatela seria um estímulo ao pequeno furto.

Optou-se pelo exame do ônus da prova, não cumprido pelo Ministério Público no Processo Penal, examinando os limites do princípio da verdade real e impossibilidade de proferir decreto condenatório fundamentado apenas em elementos oriundos do inquérito policial.

Amparado em autores como o ministro do STF Celso de Mello e o estudioso Luiz Flávio Gomes, Cássio Miranda, em atitude incomum, autorizou a divulgação do crédito ao estagiário de Direito que, sob sua orientação, o auxiliou na formulação da sentença.

Veja artigo sobre delito insignificante

* a sentença foi elaborada pelo juiz substituto da 8ª Vara Crime da comarca de Salvador em parceria com o estagiário de Direito, Márcio Ferreira Rodrigues Pereira, aluno da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador.

Leia a decisão

JUÍZO DE DIREITO DA 8ª VARA CRIME DA COMARCA DE SALVADOR (BA)

PROCESSO N.º: 7853439/00

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

RÉ: EDILENE DA SILVA FERREIRA

SENTENÇA

1. Vistos etc.

2. O órgão do Ministério Público Estadual, lastreado no inquérito policial acostado aos autos, ofereceu denúncia contra EDILENE DA SILVA FERREIRA, já devidamente qualificada, dando-a como incursa nas reprimendas do art. 155, caput, combinado com o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal.

3. Narra a inicial acusatória (fls. 02/03) que na tarde do dia 22 de outubro de 2000, por volta das 14 horas e 40 minutos, na farmácia Estrela Galdino, situada na Alameda Marquês de Caravelas, Bairro da Barra, nesta capital, a denunciada tentou subtrair para si 02 (dois) frascos de perfume, um de nome “eternity” e outro de nome “aziano”.

4. De acordo com a peça vestibular, a denunciada, após apoderar-se dos referidos frascos de perfume, que se encontravam expostos à venda em prateleiras, escondeu-os dentro de uma sacola plástica que trazia consigo. Entretanto, no instante em que a denunciada se preparava para deixar a farmácia sem efetuar o pagamento da mercadoria ocultada, um funcionário do estabelecimento, atento à atividade criminosa que era ali perpetrada, deu-lhe voz de prisão em flagrante, impedindo, assim, a consumação do delito.

5. Por fim, a denunciada foi conduzida por agentes policiais até a Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos desta capital, onde, perante a autoridade policial, foi lavrado o auto de prisão em flagrante (fls. 06/08).

6. Em cota separada (fl. 04), a ilustre representante do Ministério Público justificou que não propôs a suspensão condicional do processo em favor da denunciada (art. 89 da Lei 9.099/95), em razão desta estar sendo processada pela 3ª Vara Crime desta capital, consoante atesta a fl. 29.

7. O douto Defensor Público requereu a liberdade provisória da ré com base no art. 350 do Código de Processo Penal (fls. 08/09 dos autos em apenso), a qual foi ao final concedida (fl. 11 dos autos em apenso).

8. Via juízo de deliberação sumária, a inicial penal foi recebida (fl. 26).

9. Apesar de citada validamente (fls. 27 e 31, verso), a acusada deixou de comparecer à audiência de qualificação e interrogatório sem motivo justificado, razão pela qual a sua revelia foi decretada nos moldes do art. 367 do Código de Processo Penal (fl. 33).

10. Na oportunidade da defesa prévia, o Defensor Público se reservou a arrolar 03 (três) testemunhas (fl. 35).

11. Tanto o membro do Ministério Público como o Defensor Público desistiram da inquirição das testemunhas por eles arroladas (fl. 45).

12. A fase do art. 499 do Código de Processo Penal transcorreu in albis (fl. 45).

13. Em sede de alegações finais, o representante do Ministério Público invocou a aplicação do princípio da insignificância para que se absolvesse a acusada (fl. 45).

14. A defesa, a seu turno, apoiou, na íntegra, a tese esposada pelo representante do Ministério Público, pugnando também pela absolvição da ré com base no princípio da bagatela (fl. 45).


15. Vieram-me os autos conclusos (fl. 45, verso).

16. É O RELATÓRIO. EXAMINADOS. DECIDO.

17. Inicialmente, cumpre salientar que a tese proposta pelo Ministério Público e sufragada pela defesa, acerca da absolvição da ré com arrimo no princípio da insignificância, não merece ser acolhida, pelos motivos que passo a expender.

18. Decerto, poder-se-ia admitir a aplicação do princípio da bagatela, afastando-se, por conseguinte, a tipicidade material do delito perpetrado pela ré, se não fossem as circunstâncias dos autos.

19. É correto que o valor econômico da mercadoria subtraída pela acusada não chega a ser expressivo a ponto de justificar uma sanção penal com todos os seus efeitos nefastos. Além disso, ressalte-se que o patrimônio da empresa-vítima não veio a ser efetivamente desfalcado, uma vez que, tendo a ré sido presa em flagrante logo após a subtração dos frascos de perfume, estes foram, imediatamente, recuperados pelos funcionários da farmácia, impedindo, desse modo, a consumação do delito.

20. Entretanto, não obstante estar caracterizada a escassa lesividade da conduta praticada pela ré – o que, em tese, poderia autorizar a incidência do princípio da insignificância -, urge esclarecer que o crime sob análise não se tratou de um fato isolado na vida da ré, vez que esta responde a outro processo criminal (fl. 29), pela prática de delito da mesma espécie que a dos presentes autos (contra o patrimônio). Vale lembrar que foi por conta deste motivo que a representante do Ministério Público deixou de propor a suspensão condicional do processo em prol da acusada (fl. 04).

21. Somado a isso, registre-se que a própria ré, no curso do procedimento inquisitivo, ao ser perguntada pela autoridade policial acerca dos seus meios de vida, respondeu, categoricamente, que o seu sustento provém das mercadorias que furta. Declarou, ainda, que há mais de 02 (dois) anos vem cometendo essa espécie de delito e que, em outras ocasiões, obteve êxito praticando furtos contra a mesma vítima deste processo (fl. 07).

22. Outrossim, atente-se para a seguinte questão. Embora a acusada tenha sido beneficiada com a liberdade provisória, impondo-se, conseqüentemente, o seu comparecimento perante este juízo todas as vezes que fosse intimada, a ré, apesar de ter sido validamente citada, deixou de apresentar-se à audiência de qualificação e interrogatório sem motivo justificado, o que revela, sem dúvida, um certo descaso para com a Justiça Criminal.

23. Em virtude do quadro apresentado, pode-se afirmar que a aplicação do princípio da bagatela à hipótese dos autos representaria o reconhecimento de um verdadeiro “salvo-conduto” em favor da ré para que esta continuasse a delinqüir sem sofrer qualquer sanção penal. Vale dizer, para que permanecesse impune, bastaria à ré continuar furtando bens de inexpressiva economicidade.

24. Na realidade, creio que a adoção do referido princípio serviria de estímulo à indiciária habitualidade criminosa da acusada.

25. Com efeito, o princípio da insignificância deve ser aplicado para corrigir as injustiças que adviriam da adoção de uma tipicidade estritamente formal e não para salvaguardar a impunidade de delinqüentes contumazes.

26. Dessa forma, não obstante a escassa lesividade do delito em apreço, ao que tudo indica, a ré vem praticando pequenos furtos reiteradamente, razão pela qual a aplicação do princípio da insignificância revela-se imprópria.

27. Todavia, mesmo sendo inaplicável o multicitado princípio, a absolvição da acusada se impõe tendo em vista os motivos adiante indicados.

28. Compulsando o inquérito policial acostado ao presente processo, vislumbram-se presentes elementos mínimos para imputar à acusada o delito em tela. Assim, diante desse suporte probatório mínimo, o órgão do Ministério Público ofereceu denúncia contra a ré, tendo a inicial penal, conseqüentemente, sido recebida.

29. Ocorre que, apesar de o inquérito policial apontar para a acusada como sendo a autora do crime em questão, o certo é que, durante a instrução criminal, o membro do Ministério Público não se desincumbiu do seu ônus de provar as alegações formuladas na exordial acusatória.

30. Em juízo, o ilustre representante do Ministério Público além de desistir da inquirição das testemunhas arroladas na denúncia, não produziu qualquer prova acerca da imputação formulada na inicial penal contra a acusada.

31. Como cediço, a primeira parte do art. 156 do Código de Processo Penal estabelece que: “A prova da alegação incumbe a quem a fizer“. Desse modo, tendo o Ministério Público imputado à ré o delito previsto no art. 155, caput, combinado com o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal, cumpria-lhe demonstrar a veracidade das afirmações feitas, provando, assim, o fato constitutivo do seu direito. Acerca da necessidade da acusação comprovar as afirmações efetuadas, vale transcrever a lição do mestre Afrânio Silva Jardim:(1)


“(…) exige-se que tudo fique cabalmente demonstrado no processo penal, pois todos os fatos relevantes são objeto de prova, mesmo os não impugnados pela parte contrária (…)”.

32. A moderna doutrina processual penal exige que à parte autora, para que possa ver satisfeita a sua pretensão punitiva, demonstre, de maneira sólida, ter o acusado praticado um fato típico, ilícito e culpável. Em contrapartida, à defesa é suficiente que se oponha à pretensão punitiva da acusação, não sendo necessário fazer prova da sua inocência. A respeito, vale invocar mais uma vez os precisos magistérios do professor Afrânio Silva Jardim:(2)

“O crime é um todo indivisível e o Estado somente poderá, processualmente, ver acolhida a sua pretensão punitiva se provar que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável, vale dizer, este ‘todo indivisível'”.

33. A regra do ônus da prova tem íntima ligação com o princípio constitucional da presunção de inocência, esculpido no art. 5º, inciso LVII, da Magna Carta, uma vez que todo o indivíduo é presumido inocente até que se prove legalmente a sua culpa. Desse modo, não restando, contundentemente, provado ter o réu praticado um fato típico, ilícito e culpável, a absolvição se impõe. Em conseqüência disso, é que se afirma que a situação de dúvida milita em prol do acusado, pois este é presumidamente inocente, e tal presunção, sendo relativa, somente pode ser afastada com uma produção probatória que retire a incerteza do magistrado. No que tange à forte relação existente entre a presunção e inocência e a regra do ônus da prova conclui o eminente Luiz Flávio Gomes:(3)

“(…) as partes acusadoras são as obrigadas a alcançar o convencimento do juiz sobre a existência dos fatos e sua atribuição culpável ao acusado; a presunção de inocência é uma presunção iuris tantum, isto é, pode ser afastada por prova em sentido contrário (da culpabilidade); a prova, no entanto, deve ser suficiente para convencer o juiz, valendo o princípio do in dúbio pro reo.”

34. Como já foi dito, o ônus da prova, hodiernamente, recai por inteiro sobre o órgão do Ministério Público. Todavia, para espancar qualquer dúvida a respeito do tema, apesar de longo, oportuno transcrever alguns trechos do brilhante acórdão do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal (HC-73338/RJ, DJ 19.1296), citado pelo professor Paulo Rangel:(4)

“A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro, e com exclusividade sobre o Ministério Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de liberdade que se reconhece às pessoas em geral.

Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado, já não mais prevalece em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência”.

35. De outro lado, é sabido que no processo (principalmente no penal) vigora o princípio da verdade real ou material, segundo o qual deve o juiz esgotar todas as possibilidades ao seu alcance para tentar alcançar a verdade real dos fatos. Este princípio pode ser vislumbrado em inúmeros dispositivos do Código de Processo Penal, como, por exemplo, no art. 156, in fine : “o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.

36. Entretanto, o princípio em comento não é absoluto, pois, além de comportar exceções dentro do próprio Diploma Processual Penal (v. g. art. 406 do CPP), é vedado ao magistrado assumir por inteiro o ônus da prova pertencente à acusação, sob pena de quebra da sua imparcialidade e, por tabela, arranhura ao sistema acusatório, adotado por nós no art. 129, inciso I, da Lei Maior.

37. Desse modo, vê-se que a produção de provas pelo juiz deve se dar de forma supletiva e cautelosa. Vale dizer, após a produção probatória impulsionada pelas partes, apenas no caso de alguma dúvida persistir no espírito do magistrado, deverá este dirimi-la.

38. Pelo que foi dito, in casu dos autos, diante da total inércia do membro do Ministério Público no campo probatório, fica claro que a este julgador não cabia a produção de provas, visto que, assim agindo, estaria abandonando a sua posição de órgão superpartes.


39. Por fim, ressalte-se que, no âmbito do procedimento inquisitivo, a ré confessou a prática do crime em análise. Todavia, como já foi dito, a audiência de qualificação e interrogatório não ocorreu em virtude da ausência injustificada da acusada, motivo pelo qual a revelia foi decretada. Logo, a confissão efetuada na fase policial não foi, em juízo, ratificada ou refutada pela acusada.

40. Sendo assim, apesar da investigação preliminar apontar para a acusada como sendo a provável autora do delito narrado na inicial penal, sobretudo em razão da sua confissão e dos depoimentos prestados pelos funcionários da farmácia, como cediço, não pode o juiz proferir decreto condenatório com base apenas em elementos constantes do inquérito policial, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, ambos previstos no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Nesse sentido, a jurisprudência pátria tem se manifestado de forma pacífica:

“O inquérito é peça meramente informativa, destinada tão-somente a autorizar o exercício da ação penal. Não pode, por si só, servir de lastro à sentença condenatória, sob pena de se infringir o princípio do contraditório, garantia constitucional” (JTACrimSP, 70/319).

“Os subsídios ministrados pelas investigações policiais, que são sempre unilaterais e inquisitivas – embora suficientes ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público -, não bastam, enquanto isoladamente considerados, para justificar a prolação, pelo Poder Judiciário, de um ato de condenação penal. É nula a condenação penal decretada com apoio em prova não produzida em juízo e com inobservância da garantia constitucional do contraditório” (STF – HC 73338/RJ – Rel. Celso de Mello – 19.12.96).

41. Por tudo isso, não tendo o Ministério Público se desvencilhado do seu ônus de provar os fatos alegados contra a acusada, e sendo defeso ao magistrado prolatar sentença condenatória arrimada somente em elementos provindos do inquérito policial, resta inviabilizada a pretensão punitiva deduzida na peça vestibular.

42. Ex positis, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO FORMULADO NA DENÚNCIA para ABSOLVER a ré EDILENE DA SILVA FERREIRA, devidamente qualificada nos autos, com fundamento no art. 386, inciso II (não haver prova da existência do fato), do Código de Processo Penal.

43. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

44. Salvador-BA, 28 de fevereiro de 2002.

Cássio Miranda

JUIZ DE DIREITO

Notas de rodapé

1- JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 9ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 205.

2- Ob. cit., p. 207 e 214.

3- GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito Penal e Processo Penal. 1ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 113.

4- RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 2ª edição revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2000, pp. 28/29

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