Crimes sexuais

Código Penal impede Ministério Público de processar pedófilo

Autor

16 de maio de 2002, 14h58

O crescimento da violência não poupou os crimes sexuais. A cada dia, surgem novas notícias de pedofilia ou estupro. A preferência por infantes na prática de abusos sexuais tem sido um dos maiores escândalos da atualidade. Não bastasse a exploração de crianças e adolescentes na prostituição, há sérias acusações envolvendo padres católicos, professores, treinadores esportivos, médicos e outros profissionais, que sempre foram respeitados pela sociedade, em violências sexuais contra seguidores, alunos, pacientes. A situação é de extrema gravidade e deve levar a uma reflexão.

O problema da Igreja Católica é a desmedida repressão sexual a que são submetidos seus membros. Uma instituição que procura ignorar a natureza humana e impõe regras de abstinência sexual impossíveis de serem cumpridas somente pode gerar deturpações. Em todo o mundo, tem havido denúncias de padres pedófilos, homossexuais e heterossexuais. Evidentemente, esse não é um problema que surgiu agora, já existe há muito tempo. No entanto, o preconceito e o temor de denunciar tais práticas por parte das vítimas, bem como o esforço para abafar os casos por parte da hierarquia católica garantiram a impunidade dos transgressores.

Há poucos dias, em reunião no Vaticano sobre os casos de pedofilia que estão sendo investigados nos Estados Unidos, o Sumo Pontífice declarou que “um pai não entrega seu filho”. Podemos considerar que isso é um direito que lhe assiste, realmente os pais não costumam entregar os próprios filhos à Polícia. Mas, para a Instituição, isso gera um tremendo desgaste. Por sua vez, o Estado não tem nada que ver com essa postura e deve continuar investigando. Quem vai fazer a diferença, de verdade, são as vítimas, pois a elas compete levar os fatos ao conhecimento das autoridades competentes.

Existe, ainda, muito preconceito em torno da sexualidade. Pessoas que são violentadas, por vezes, têm medo de denunciar o agressor, julgando que sofrerão discriminação ou serão alvos de chacota ou depreciação. É isso que precisa mudar. A vítima não tem culpa pela agressão que sofreu e pode enfrentar a Polícia e a Justiça com a cabeça erguida, sem temer ser responsabilizada por seu próprio infortúnio. Somente o culpado pela violência deve ser punido.

É verdade que, no passado, algumas pessoas sofreram muito com a falta de preparo de nosso sistema repressor para casos de crimes sexuais.

Hoje já não é mais assim. A Polícia está aparelhada para atender a essas ocorrências com profissionalismo e o máximo de cuidado com a situação traumática das vítimas. A Justiça também se modernizou, procurando evitar as discriminações de antigamente. A sociedade mudou.

As denúncias de pedofilia têm sido tantas que podemos supor que a atitude de algumas vítimas que denunciaram esses crimes incentivaram outras a fazer a mesma coisa. Pedófilos nunca se contentam com um único delito, sempre atacam uma quantidade grande de crianças. É importante denunciá-los imediatamente, a fim de interromper as agressões. A mudança de atitude dos ofendidos possibilitou a descoberta de um desvio de comportamento que parece transcender o indivíduo – é uma patologia social.

Outra mudança que precisa ocorrer o quanto antes refere-se ao Código Penal. Nossa lei prevê, como regra geral, que em casos de crimes contra a liberdade sexual a ação penal será privada (art.225 do Código Penal). Isto significa que o Ministério Público não pode processar o estuprador, o pedófilo, o violador. Cabe à vítima fazer isso contratando advogado, coisa que não acontece na maioria esmagadora dos demais crimes. Quem sofre assalto, furto, estelionato, sequestro, não tem o ônus de perseguir seu agressor judicialmente. Esse papel cabe ao Estado, por meio de suas instituições.

O dispositivo de exceção que afeta os crimes sexuais, datado de 1940, resulta do preconceito. É do tempo em que um contato físico, mesmo que violento e contrário à vontade de vítima, poderia depreciá-la aos olhos da sociedade. Além disso, o sistema patriarcal não tinha nenhum interesse em facilitar os processos por estupro e atentado violento ao pudor e procurou dificultá-los ao máximo, criando regras que obrigavam a vítima a promover e custear o processo contra seu agressor. Trata-se de uma distorção que impede o Ministério Público de agir para “lavar a alma” do agredido e proteger a sociedade do criminoso. É urgente, pois, revogar o art. 225 do Código Penal, apagando, junto com ele, os resquícios de preconceito que envolvem os crimes sexuais.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!