Obliteração jurídica

Advogado do Rio critica explícita ingerência entre os Poderes

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9 de maio de 2002, 13h15

O Brasil, enquanto sociedade constituída e país independente, possui como poucos no mundo uma história permeada de particularidades quanto ao seu desenvolvimento. No campo jurídico, especificamente no direito formal, ou seja, da constituição das normas legais, é de se verificar um sem-número de altos e baixos, avanços e retrocessos, institutos benéficos e outros equivocados.

Desde a primeira constituição republicana foi estabelecido, tendo se constituído uma das nossas cláusulas pétreas, o equilíbrio e a harmonia entre os poderes constituídos, onde cada um tem seu campo de atuação. Todos eles, conjuntamente, ao menos teoricamente, visam o avanço de nossa sociedade, a partir da valorização equânime dos indivíduos, enquanto pessoa e cidadão, detentor de direitos e deveres. Esse relacionamento entre os poderes constituídos, calcado no chamado “sistema de freios e contrapesos”, tem, originariamente, a finalidade de criar um círculo virtuoso entre ditos poderes de forma a que se busque o melhor para o país como um todo.

Contudo, em nossa história mais recente, o que tem se visto é um contexto de total desequilíbrio e explícita ingerência entre aqueles ditos poderes constituídos, de uma tal forma que, diuturnamente se vê um Executivo que legisla e julga; um Legislativo que executa e julga; e um Judiciário que legisla e executa, gerando, em muitas situações, uma imbricação de forças e competências que mais tem prejudicado que ajudado a democracia.

Para fazermos uma localização no tempo-espaço, vamos avaliar aquele contexto a partir da edição da Constituição de 1988; aquela cantada, decantada e ovacionada como a constituição-cidadã, que veio para redemocratizar nosso país, depois daquele período ditatorial onde o direito e a própria justiça quase se tornaram apenas um eco na memória do nosso povo.

Naquela Carta Política, explicitado no artigo 2o, temos a reiteração do princípio de freios e contrapesos que administra os poderes constituídos (Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário). E, mais à frente, em sendo delimitada explicitamente a competência de cada um daqueles poderes, estabelece a letra da lei: Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da república, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: I (…) XV(…)// Art. 49. É de competência exclusiva do Congresso Nacional: I (…) XVII (…)// art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: I (…) XXVII (…) // Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I (…) III (,,,)// Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I (…) III (…)// Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais: I (…) II (…)// Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I (…) XI (…)// Art. 114. Compete à Justiça do trabalho (…). Isso apenas para demonstrar como está perfeitamente clara e bem delineada a competência daqueles poderes, com explícita delimitação de qual é a obrigação de cada um deles.

Ora, mesmo com esse explícito detalhamento, se formos verificar a realidade dos fatos, constataremos que o Executivo, para cumprir o seu papel de governar e administrar o Estado, executando efetivamente as leis para que se mantenha a ordem jurídica e o estado de direito, tem optado por práticas pouco recomendáveis, especialmente no campo político-partidário.

Todos os dias são noticiados, de forma aberta, as chamadas “composições” do Executivo, tanto com o Legislativo, como com o Judiciário, as quais se constituem, na verdade dos fatos, em autênticos conchavos, em trocas de favores, em apadrinhamentos, em relacionamentos espúrios que, no final criam uma situação na qual o próprio Poder Executivo se vê, cada vez mais, preso nessa teia que ele mesmo teceu e, sem a qual, instaura-se a ingovernabilidade.

No caso do Legislativo, para exercer seu “munus” de elaborar as leis e normas jurídicas reguladoras de todas as ações do Estado e daqueles que o integram – os cidadãos – verifica-se que, sem sombra de dúvida, contaminado pela prática do Executivo, habituou-se a agir somente sob o pálio dos conhecidos “acordos” que, para em bom Português significa a prática do “toma-lá-dá-cá”.

Exemplo disso foi o ocorrido recentemente, no qual a votação de mais de vinte Medidas Provisórias, as quais estavam trancando a pauta do Congresso nacional, apenas se efetivou após a concessão – ou cessão – pelo Poder Executivo de algumas benesses para deputados federais, senadores e respectivos funcionários do congresso; benesses essas que envolvem, necessariamente, melhorias pecuniárias muito particulares.

E, quanto ao Judiciário, ao qual incumbe a administração da justiça, por meio da interpretação do sentido da lei – sentido esse que, às vezes, mesmo sendo claro e literal, requer uma carga interpretativa para cada caso -, verifica-se uma hipertrofia do mesmo que, em não se furtando a julgar, o faz conforme seus próprios interesses e não os interesses sociais e o que determina a letra da lei.

E tanto isso é verdade que medidas judiciais, geralmente contra o Executivo ou o Legislativo, que se eternizavam, por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, como um passe de mágica são julgadas quando se fala em diminuição de orçamento do Poder Judiciário que, brandindo sua autonomia administrativa e financeira, fina pé naquilo que entende se seu por “direito”.

Nesse quadro, que não pode ser ignorado em nosso país, constata-se uma autêntica obliteração de todo o arcabouço jurídico-legal do país, pois o dito “sistema de freios e contrapesos” deixa de existir, passando a ser substituídos pelos “sistema de trocas, composições e acordos” mais vantajosos, sendo que na maioria das vezes essa vantagem não reverte para a sociedade como um todo, mas apenas para uma ínfima parcela da mesma.

Essa obliteração, segundo nos consta, palpavelmente presente no seio de nossos poderes constituídos se deve, dentre outros fatores, a uma total ausência de politização daqueles indivíduos que integram os ditos poderes, demonstrando um certo despreparo e uma sensível falta de educação – aqui não tida como alfabetização -, de muitos que tem o poder de executar, legislar e julgar.

Mas, se isso está ocorrendo, em muito se deve à própria sociedade brasileira como um todo, que se submete, às vezes sem qualquer tipo de manifestação contrária, a fatos que demonstram essa obliteração, impondo a triste conclusão de que também aí, no seio maior de nossa sociedade, há uma visível ausência de politização, somado a um evidente despreparo para exercitar seus direitos, tudo isso como resultado de uma explícita “falta de educação que, neste caso, se manifesta também pela ausência de alfabetização”.

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