Ação e reação

Enquadramento da legítima defesa deve ser aprimorado no país

Autor

  • Lélio Braga Calhau

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Professor de Direito Penal da Universidade Vale do Rio Doce.

4 de maio de 2002, 19h22

Como regra geral, ninguém pode fazer valer o seu direito pela força. Se todos fizessem isto, voltaríamos a um estado primitivo onde vigoraria a lei do mais forte. O Direito Penal proíbe tal tipo de conduta, prevendo inclusive o crime de exercício arbitrário das próprias razões nesses casos.

Todavia, nem sempre as pessoas podem recorrer ao Estado para a proteção de seu direito, sendo então, nesses casos, permitida a autotutela. A legítima defesa se enquadra nessa situação. Permite o Estado que a vítima, utilizando-se moderadamente dos meios necessários, rebata injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (artigo 25 do Código Penal Brasileiro).

A ordem jurídica visa a proteção dos bens juridicamente tutelados. E não só punir a agressão, mas preveni-la. Quem defende, seja embora violentamente, o bem próprio ou alheio injustificadamente atacado, não só atua dentro da ordem jurídica, mas em defesa dessa mesma ordem. Atua segundo a vontade do Direito. O seu ato é perfeitamente legítimo e exclui, portanto, a hipótese de crime. (1)

O reconhecimento da faculdade de autodefesa contra agressões injustas não constitui uma delegação estatal, como já se pensou, mas a legitimação pela ordem jurídica de uma situação de fato na qual o direito se impôs diante do ilícito. (2)

E claro é que o reconhecimento de um direito de legítima defesa, cujo exercício logo formalmente afasta a antijuridicidade do fato, tem na sua base a prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o Direito não tem que recuar ou ceder nunca perante a ilicitude (3)

Hermes Vilchez Guerrero ensina que ao regular os limite da legítima defesa, muitos legisladores e até vários autores preferem a utilização de critérios abrangentes e genéricos. Esses autores entendem que melhor seria se a excludente não sofresse restrições do texto legal, concedendo ao magistrado o poder de decidir se, no caso concreto, houve ou não a ocorrência de justificante. (4)

A análise da atuação da vítima no caso concreto é de suma importância para o perfeito enquadramento da legítima defesa. Ela não será possível se a vítima se pôs na situação de agredida, para utilizando a lei, alcançar seu objetivo de consumar a agressão ao pretenso ofensor. Por força disso, o duelo é uma prática não permitida no Brasil, e as partes não poderão alegar estarem protegidas pela excludente de ilicitude.

Não pode alegar legítima defesa quem deu causa aos acontecimentos e quem invoca uma agressão finda ou pretérita, pois não estará protegido pela norma permissiva, não enquadrando também a agressão contra a vítima que dormia, dentre outra regras básicas.

O professor de Criminologia na Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Delegado Guaracy Moreira Filho, entende que algumas alterações devam ser feitas na legislação processual penal pátria em face da ocorrência de legítima defesa e que preservem os direitos das vítimas. Entende ele que o cidadão que reagiu a um assalto não pode ser submetido a toda espécie de humilhações que o cárcere oferece. A lei que faculta somente ao juiz averiguar sobre as causas excludentes de crime não atende, ao seu ver, os interesses da sociedade. O agente que reagiu a um ataque injusto deve se sentir estimulado, protegido desde o início de sua ação e não acovardado. (5)

Para Moreira Filho, o delinqüente sabe que na maioria das vezes não encontra obstáculos em sua empreitada. As estatísticas policiais comprovam que suas vítimas não reagem e efetivamente não devem fazê-lo. Mas, por outro lado, quando há chances absolutas de reação, também não o fazem, agora por medo do Poder Público, pois se o fizerem poderão ser presas porque leis vigentes estão envelhecidas, isto é, não se coadunam com o atual estágio da nossa civilização. (6)

Finaliza o professor Moreira Filho no sentido de que se faz necessário alterar a lei processual penal para impedir que a autoridade policial autue em flagrante aquele que reagiu a uma agressão injusta, matando seu ofensor.

Se o próprio delegado de polícia ao ouvir a vítima, verificar que o mesmo agiu em legítima defesa, deveria a legislação processual penal autorizar que a autoridade policial, e não só o juiz de direito, após a sua oitiva o liberasse para responder ao processo em liberdade.

Nesse ponto, estou de acordo com a tese sugerida de modificação da legislação processual penal pelo professor Moreira Filho por vários motivos:

1. Por política criminal é uma situação injusta recolher na cela uma pessoa que agiu em legítima defesa, já que a mesma não cometeu delito.

2. Por questão dogmática, como explicar o recolhimento de uma pessoa nesse caso na prisão se a legítima defesa, como causa de exclusão de ilicitude, não concretiza o crime pela teoria do delito.

3. A justificativa de que poderia haver abuso por parte de alguns delegados não pode ser utilizada, pois a imensa maioria trabalha na honestidade e o ato posteriormente irá passar pela fiscalização do Ministério Público e, em caso de cometimento de crime, o delegado que errou seria processado criminalmente e na esfera cível pelo cometimento de ato de improbidade administrativa.

* O tema e outros relativos às vítimas criminais estão abordados no livro “Vítima e Direito Penal”, que será lançado em maio de 2002, pela Editora Mandamentos, Belo Horizonte, MG, Brasil -www.mandamentos.com.Br.

Notas de rodapé:

(1) BRUNO, Aníbal. Direito Penal – parte geral, tomo I, 2 ed, Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 360.

(2) TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5 ed, São Paulo, Saraiva, 1994, 192.

(3) CORREIA, Eduardo. Direito Criminal – com a colaboração de Figueiredo Dias, Coimbra, Almedina, 2000, p. 35-36.

(4) Bem se vê que não é esse o sistema adotado pelo nosso direito positivo, que preferiu se valer de um critério mais rígido e preciso sobre os limites da excludente. GUERRERO, Hermes Vilchez. Do excesso em legítima defesa. Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 45.

(5) MOREIRA FILHO, Guaracy. Vitimologia – o papel da vítima na gênese do delito, São Paulo, Jurídica Brasileira, 1999, p. 75.

(6) MOREIRA FILHO, op. cit, p. 76.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Professor de Direito Penal da Universidade Vale do Rio Doce.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!