Cenário patético

É preciso deixar de aplaudir as pequenas corrupções cotidianas

Autor

  • Hamilton Rangel Júnior

    é doutor cum laude em Direito Constitucional pela USP assessor científico da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP e professor de Lógica Jurídica Introdução à Ciência do Direito Direito Constitucional Teoria do Estado e Ciência Política

24 de junho de 2002, 12h03

Vivemos uma época lindamente polêmica a respeito dos caminhos éticos a tomarmos, mas somos obrigados a conviver com argumentos institucionalmente imorais do chamado politicamente correto (um outro nome para o contigencialmente conveniente). Como o tema é dos mais palpitantes do que se poderia denominar mundo-fashion-da-simpatia-televisiva, estaríamos perfeitamente bem, se nos dedicássemos, agora, a declinar um tratado lacrimejante sobre a necessidade da retomada da moral e dos bons costumes; algo impressionante pela abstração e pudicícia; que comovesse pela retórica vestalina, ou fizesse presumir, por detrás deste texto, a existência de um sacerdote desconsolado com os descaminhos mundanos de – imagine o quê? – o mundo.

Mas fugiremos a essa moda, felizes como somos com as possibilidades que temos de, planetariamente jovens como instituições, revertermos esse quadro de grandes corrupções: do indecoro parlamentar, da parcialidade de magistrados, da improbidade administrativa, do abuso do empresário contra o consumidor, do dano moral das invasões de privacidade. Possível? Se não fosse, qual a razão de viver de um professor como este?

Contudo, essa felicidade de professor nasce na consciência de que tais grandes corrupções somente se eliminarão quando deixarmos de aplaudir o cenário patético de pequenas corrupções cotidianas, camufladas sob o discurso do politicamente correto. Pequenas corrupções? Pequenas, porque, sorridentes, sob a suposta defesa de uma causa, tornam-se quase invisíveis. Isso, desde o homem mais obscuro à autoridade mais evidente. Sim, coisas do tipo:

1 – seu guarda, uma cervejinha pro senhor!;

2 – ninguém está me vendo (fazer uma conversão proibida, no trânsito)!; 3 – meu bem, é só um cocozinho de cachorro (na calçada)!;

4 – esconde, esconde (o pacote de biscoito que meu filhinho furou, pra dar uma experimentadinha…, só que eu não vou pagar);

5 – sai do armário (e revela que ‘tu é gay’)!;

6 – guerra aos fabricantes de cigarro (produto enojante, apesar de insignificantemente…lícito; paga um tremendo tributo, contudo…, hoje em dia, pega mal; só é consumido por quem quer, sabendo que é nocivo…, mas…sei lá)!!!!.

Não há pior arbitrariedade do que aproveitar-se da piedade popular sobre os flagelos que a história, os fatos ou nossas escolhas nos impuseram, para, a título de angariar uma perversa credibilidade, massacrar esse mesmo povo com a vitória minoritariamente lucrativa da demagogia e a derrota majoritariamente perniciosa da liberdade.

É tempo de entendermos que a moralidade, quando deixa o âmbito

profundo da Filosofia Prática e alcança o universo paroquial de nossa existência coletiva somente pode ser entendida como Moralidade Institucional. Esqueçam-se, então, todas as reflexões hedonista, utilitarista, platonista, pragmaticista, intuicionista, estóica e que tais! Elas servem para a nossa construção interior; para a consecução de nossa pessoal concepção de felicidade, algo cuja definição Aristóteles já dizia não ter a mínima chance de ser uma unanimidade.

Tudo o que se pode é ver o que há de comum entre os diversos sistema éticos – a intenção de provocar o bem-estar entre os três mundos da vida em sociedade: o individual (o homem), coletivo privado (entidades particulares, em geral) e o coletivo público (as entidades nas quais o Estado é o grande titular). Ou seja, por exemplo, é imoral toda tentativa de o interesse pessoal do indivíduo prevalecer em situações nas quais o legítimo seria a prevalência do público, e vice-versa. Essa opressão de um interesse sobre aquele que, entre o público, o privado e o individual, constitucionalmente se convencionou deva preponderar: isso é institucionalmente imoral.

Falarmos, assim, da moralidade institucional é refletirmos não sobre a moral do pastor, ou a do garoto de programa, mas sobre como a Ordem Jurídica manipulou o assunto, de forma que ambas as realidades da vida possam conviver, licitamente, sem que uma massacre a outra. Não pode ser, de forma alguma, o discurso sobre qual moral deve prevalecer, mas de como podem conviver as diversas manifestações de moral. E isso implica necessariamente, além da obviedade de eliminarem-se as grandes corrupções, abrirmos os olhos para aquelas pequenas que nos permitimos cometer a cada inocente saída à rua, a cada solene entrevista que damos, a cada oportuna medida governamental.

Evidentemente, trazer o assunto para o universo técnico-jurídico poderia assustar o leitor, derrubando toda a literatura de Kant a Kelsen, de Bakunin a Marx, dos Hauriou a Lowenstein, com tecnicismos como uma conceituação jusontológica de moralidade institucional (a dialética da não-arbitrariedade entre subsidiariedade estatal, autonomia privada e autonomia individual); ou, na mesma linha auditivamente indigesta, uma descrição jurídico-hermenêutica da Constituição Federal, para demonstrar que tal conceito não é um devaneio teorético, mas um fato técnico.


Teríamos de fazer um passeio medianamente ininteligível pelos meandros processuais de aplicação de leis anti-imoralidade – a 1.521/51, a 1.079/50, a 8.429/92, a 8.884/94, a 8.078/90, a 4.898/65 e outra meia dúzia delas.

Mas, não! Vamos à prática. E a prática da moralidade institucional implica imediata superação de alguns mitos e transparente resposta a algumas questões polêmicas, as quais, por um didatismo exagerado nosso, talvez, vamos declinar em parágrafos na seqüência da enumeração já iniciada.

É valida a alegação do pode ser imoral, mas é legal? Não. Se é institucionalmente imoral, é inconstitucional a lei, e , portanto, nula. É a arbitrariedade do interesse individual de ser desonesto sobre o legítimo interesse público de que todos ajam com honestidade. Há muito, sabe-se, é superado aquele não-citável (talvez, até, mal entendido) provérbio romano de Paulo.

Advogado bom é aquele que, mesmo à moda da fraude à lei, consegue para o seu cliente a absolvição? Não. Se a lógica da Justiça não convencer, bastam os artigos de 1º a 7º do Código de Ética da Advocacia, para provar que advogado bom é aquele que é competente até mesmo para convencer seu cliente dos limites de suas razões e dos perigos de uma causa temerária. De outra forma, sua essencialidade à administração da justiça seria uma constante ameaça à Ordem Pública. É o interesse particular de, sob a debochada desculpa da sobrevivência financeira, auferir lucros sendo arbitrário sobre o legítimo interesse coletivo de que a justiça seja feita. Precisamos citar nosso amigo Rui Barbosa?

É institucionalmente imoral defender-se o direito de ter preconceito? Não. Se não satisfatória a transparência do art. 5º, VI da Constituição (em nada prejudicado pelo art. 3º da mesma Carta), imoral é induzirem-se as pessoas a acharem que preconceito e discriminação são sinônimos (inverdade lamentada pela coerência entre os incisos VI e XLI do art. 5º) e que elas são obrigadas a gostar do que lhes causa repulsa – aumentando-se, diga-se, seu ódio e transformando-o em sectarismo. É a arbitrariedade do interesse privado de algumas ideologias sobre o legítimo interesse público de que toda forma de consciência seja respeitada (desde que não se torne discriminatória). E veja: este articulista é negro.

O que há de imoral na união entre pessoas de mesmo sexo? Institucionalmente, nada; inclusive, não bastasse a Constituição, desde 1988, já dizer isso (artigos 226, § 3º e 5º, I), os tribunais já se acostumaram com a idéia. O que é imoral é a ostentação da intimidade humana como arma para agredir, transformando a afetividade em bandeira ideológica, quando a Constituição determina que a intimidade humana só é legítima quando ela se mantém… íntima. É verdade: a grande batalha de todos nós – homo-hetero-bi-simpatizantes-skinheads seres humanos – deveria ser pela ressureição do saudoso direito à intimidade. É a arbitrariedade do interesse individual de auto-realização afetiva sobre o legítimo interesse público de que os demais não sejam constrangidos a disso participar. Afinal, Mário de Andrade não foi fascinante por causa do tipo de ser com quem preferia fazer amor (até porque, amar, para ele, era verbo sem objeto).

Reserva de vagas universitárias para minorias sociais: institucionalmente moral? Não. Algo fracassado nos EUA e no Brasil (na década dos 70, quanto às vagas de agronomia e veterinária, para filhos de agricultores), as chamadas ações afirmativas produzirão o mesmo efeito que, em 1884, Joaquim Nabuco, em seu O Abolicionismo, já previa para a lei Áurea: deixa-se a escravidão do não-acesso à liberdade, em direção à escravidão do não-acesso ao emprego. É a arbitrariedade do interesse privado de determinadas ideologias sobre o interesse público de que nenhuma, mas nenhuma, discriminação seja cometida.

A retórica empolada e arrogante de alguns juristas é institucionalmente moral? Não. A ampla defesa (art. 5º, LV), não o é em prejuízo da clareza quanto à mensagem do que seja équo. É a arbitrariedade do interesse individual de, por meio da estética ininteligível, exercer poder, em detrimento do legítimo interesse público de que todos – juristas ou não – saibam como acessarem o justo. Afinal, Voltaire já nos avisou: é preferível a virtude à Ciência.

O trottoir dos prostitutos: uma imoralidade? Para as instituições, absolutamente não! Dispensável dizer-se que, excluídos os casos de assédio agressivo do prestador ao presuntivo consumidor, se trata a prostituição de uma modalidade lícita de convenção privada de serviços, já que são consentimentos não viciados (do cliente e do prestador), no qual o objeto é a intimidade sexual e a privacidade patrimonial de ambos, invioláveis por qualquer de nós (art. 5º, X). Cabe, então, apenas, evitar a arbitrariedade do interesse privado de algumas religiões sobre o legítimo interesse público de que cada um cuide de sua privacidade e intimidade como bem preferirem. A Constituição não é pedra, nem as prostitutas de hoje têm o glamour de Maria Madalena!


Seriam os programas televisivos tidos como de gosto duvidoso manifestação de imoralidade institucional? Pelo contrário, além de exemplo de liberdade de expressão, cujo potencial ofensivo é questionável pela barulhenta audiência, eles estão aí para que nosso interesse privado esteticamente diverso não seja arbitrário sobre o legítimo interesse público de que eles sejam vistos como estímulo a nossos talentos para que criem programas de melhor qualidade e… com a mesma audiência. Ou teremos de trazer de volta à vida Orson Welles?

A proposta governamental de restringir-se (leia-se: proibir-se) a publicidade de cigarro, dado o índice alarmante de enfermidades com as quais as conseqüências desse maldito vício têm atolado o sistema de saúde: exemplo de moralidade institucional? Jamais. Aliás, toda vez que se tenta transferir para a lei as funções da Educação, está-se diante de arbitrariedade. Arbitrariedade das conveniências governamentais sobre o que autoriza a Constituição (boa ou ruim, é nossa única verdadeira certidão de segurança), a respeito de produtos lícitos expostos à livre consciência do consumidor (artigos 1º e 170). Arbitrariedade de uma política sanitária educacionalmente apática sobre a legítima expectativa do eleitor de que seu governante tenha competência para criar campanhas educacionais eficazes, hábeis, não a reprimir o empresário, para que deixe de ter lucro com o que lhe é licito, mas para ensinar o consumidor a optar pelo que não lhe é nocivo. Ou voltaremos aos tempos em que o Estado se atribuía o poder de escolher por nós? Isso é ou não é matéria-prima para Hobbes?

O empresário é obrigado a contratar quem ele considera de aparência ruim? Não. Somente uma leitura torta da lógica comum aos artigos 5º, VI e 7º, XXX sustenta uma tese como essa, estimulando o candidato a emprego a expor-se ao ridículo de pleitear a convivência profissional em ambiente no qual é indesejado. Amanhã dirão que somos obrigados a detestar giló, casarmo-nos com mulher bonita e não sermos fãs dos “sertanejos”. Chaplin teria nessa ditadura estética o mote para uma nova expressão de genialidade.

Bem, as coisas, como estão indo, não nos surpreenderão se, com o apoio de alguma ONG, a família de um suicida que tenha se lançado de um vigésimo andar qualquer abrir um processo indenizatório contra Deus, por que não fez o adequado marketing da Lei da Gravidade. Para que tanto não ocorra, paragrafemos uns últimos tópicos.

Abandonemos o sarcasmo cético de achar que a ética é um delírio filosófico impraticável, já que, num mundo cruel e inescrupuloso, isso não enche barriga. Essa idéia derrotista, além de desavisada, quanto à Filosofia, se esquece de que, nos mais de 6 bilhões de humanos no planeta, a maioria se presume honesta; dos milhões de indivíduos judicialmente processados, todos têm de se presumir inocentes, sob pena de, pela presunção de culpa, compensar mais fazermos justiça de mão própria. O homem é melhor do que o press release que dele se transmite!

Aposentemos, também, a neurose moralista de imaginar que, como todo mundo é, em princípio indecente, a convivência institucional exige que os agentes públicos sejam incomunicáveis, os empresários sejam filantrópicos e os indivíduos monacais. Não. A imoralidade institucional também não se presume; o que se presume é a boa-fé, em nada impeditiva de que, por exemplo, uma associação de magistrados possa pleitear patrocínio de empresas privadas, para congressos e seminários. Ora, atreva-se ela a estar se deixando beneficiar do patrocínio, para favorecer partes em processos judiciais, e, aí, sim: sanções administrativas, civis, políticas e criminais contra todos, magistrados e empresas.

De outra forma, teremos de surrealisticamente impedir o juiz de fazer amizades, por presumirmos que, um dia, poderá ter de julgar o infeliz do amigo; risivelmente exigirmos que nenhum juiz seja católico, pois, de outra forma, jamais julgará procedente uma ação de divórcio; enfim, que todo juiz, pelo menos, deixe de respirar porque, um dia, terá de julgar processos de fábricas de poluentes. Novamente, moralidade é um fato técnico, não um sintoma esquizofrênico.

Esqueçamos, de vez, o folclore de que precisamos de mais leis para bem aplicarmos o princípio da moralidade institucional. Ora, além das já citadas, poderíamos mencionar partes da Lei 4.717/65, do Decreto-Lei 201/67, ou aspectos da Lei 6.404/76, da Lei 7.492/86, bem como elementos da Lei 8.112/90, da Lei 8.137/90, da Lei 8.666/93, ou, ainda, a íntegra do Decreto 1.171/94. Qual a serventia de novas leis? Para aumentar o rol de casos de imoralidade? A Constituição Federal já diz que as possibilidades de tais situações são infinitas e, portanto, não cabe à lei torná-las exaustivas, até porque sua punição não é apenas criminal. Mais burocracia? Sabe-se que, se tem coisa que a burocracia atual favorece, isso é a corrupção. Mais processos administrativos e judiciais? Temos juristas competentes o suficiente para usar das técnicas jusintegrativas, aproveitando as leis já vigentes.

Construamos, enfim, um sistema de controle de moralidade no qual, além de agilizar a via repressiva das comissões processantes e tribunais, privilegie o caminho preventivo da Educação para a Moralidade Institucional. E vejamos que isso não tem nada de lírico, escolar, nefelibático, pois não falamos da educação formal, da sala de aula, mas da informal, da sala de casa. É a grande mídia a responsável por direcionar seus formadores de opinião, com a adequada precisão conceitual, apresentando incessantemente as posturas e imposturas de moralidade institucional, para que nosso universo cotidiano elimine as corrupções, não por bandeira, mas por total inadequação ao nosso caráter. É possível ser mais claro? Sim, a começar pelo nosso cada vez melhor jornalismo, perpassando os talentosos artistas que idolatramos, aproveitando os esportistas que nos deslumbram, os apresentadores que admiramos, os publicitários que nos encantam, para respondermos cotidianamente algumas prozaicas questões institucionalmente morais.

Ah!, antes que digam algo, este articulista teria razões para manter-se calado, usufruindo confortavelmente dos benefícios do discurso demagógico: 1. já disse: é negro; 2. é de origem pobre; é filho de professora e músico; 3. repudia o cigarro; 4. gosta de samba-canção e…, vejamos, não é uma pessoa maravilhosa. Então, um preocupado amigo perguntaria: o que é isso, Hamilton, revolta?

Não, amigo, trata-se da satisfação de uma pausa para respirar!! Respirar para sobreviver até o momento muito próximo em que a não-corrupção deixará de ser um discurso político de verão, para ser uma obviedade cívica, refletindo nossa vocação, não para Macunaíma (dele só temos o lirismo), mas para Nise da Silveira, Fernanda Montenegro, Miguel Reale, ou, se preferir, o Guga que vemos, o Popó que aplaudimos e…, certamente, esse generoso leitor a quem nos abrimos!

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    é doutor cum laude, em Direito Constitucional, pela USP, assessor científico da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP e professor de Lógica Jurídica, Introdução à Ciência do Direito, Direito Constitucional, Teoria do Estado e Ciência Política

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